Ilha de Bali, Indonésia, meados da década de 2000. Francisco Capelo fica vidrado num ritual de cremação, em que o corpo e o caixão eram já consumidos pelo fogo. Mas o que lhe captou mesmo a atenção, costuma contar, foi o objeto para dentro do qual o cadáver fora atirado: a figura de um imenso boi, com seis metros de comprimento e dois de altura, orelhas pintadas a ouro e focinho vermelho. Ainda o fascinaram mais as labaredas que acabaram por consumir o insólito forno crematório. Tinha de encomendar um boi igual. Não foi fácil – mas conseguiu. O exemplar pode ser visto hoje no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, onde Francisco Capelo o colocou em depósito.
Já as máscaras do Mali, além do preço que por elas pagou, implicaram nove viagens do colecionador àquele país africano, para pesquisas, filmagens e aquisições. É por estas e por outras que Francisco Capelo se movimenta à vontade entre as elites da arte, em Nova Iorque, Paris, Londres ou Tóquio. Na capital britânica tem hoje o seu quartel-general, e apenas fugazmente passa pela casa que possui em Alfama, Lisboa, em julho ou agosto. Em junho de 2000, furioso com o que considerava serem as entropias do País, partiu para uma viagem de dois meses que, afinal, durou 18. Agora, em Londres, a mecânica mantém-se: compra um bilhete de avião para um qualquer recanto do mundo sem data de regresso.
A museus portugueses sob tutela pública, Capelo já doou ou colocou em depósito (sem custos para as instituições) milhares de peças das suas coleções (ver caixa Marca Capelo). Tem dois filhos diletos: os museus de etnologia e da marioneta. Também planeou doar ao Centro Cultural de Belém (CCB) o seu valioso espólio de design e moda. Conflitos com a administração do CCB fizeram-no, porém, mudar radicalmente de ideias, diligenciando para a vender no estrangeiro. A coleção seria resgatada, em última instância, pela Câmara de Lisboa, mas a troco de mais de seis milhões de euros.
“Os portugueses têm uma grande dificuldade em dizer obrigado, é muito difícil”, argumentou numa entrevista à Máxima, em 2015. A sua zanga com o País, no entanto, tem o epicentro no jogo político-partidário. “Para serem eleitos, vivem a vender sonhos e a contar histórias que não são verdadeiras, por isso é que o nosso país está neste estado”, dizia. “Todos contam uma história que evidentemente é impossível.”
Torto e festivo
Antes do colecionador, há o economista, formado na Católica, que ao longo de uma década trabalhou na banca e finança (Banco Português do Atlântico, Totta, Banif e corretora de Pedro Caldeira), sendo tido como “fazedor de dinheiro”. Principal beneficiado: Joe Berardo, cujos negócios geriu durante seis anos, entre 1993 e 1999. Mas os primórdios da ligação, ainda informais, podem ser sinalizados a partir de fevereiro de 1991, quando Capelo ingressou na corretora de Pedro Caldeira. Aí trabalhou até maio de 1992, e a sociedade faliu, com grande escândalo, dois meses depois. Embora se tratasse de uma gota no mar de destroços da corretora, foi detetado que Capelo, à revelia de Caldeira, fez a Berardo um desconto de 60 mil contos (300 mil euros), em comissões de corretagem, na negociação de títulos do investidor madeirense. Capelo negou-o até ao fim, mas a irregularidade seria comprovada em tribunal. Por outro lado, em 1999, andou de boca em boca o caso da alienação de uma participação acionista de Berardo, que Capelo conseguiu vender por dez milhões de euros, quando o empresário esperava, na melhor das hipóteses, arrecadar metade desse valor.
Francisco Capelo escolheu e comprou, para o também comendador, 594 das 862 peças do acervo inicial da coleção de arte moderna e contemporânea que constitui o Museu Berardo (ou seja, 69%), desde 2007 instalado no CCB, e que a leiloeira Christie’s então avaliou em 316 milhões de euros. Além do mais, Capelo conferiu a Berardo, logo em 1997, com a inauguração do Sintra Museu de Arte Moderna, em que esteve presente o Presidente da República Jorge Sampaio, o reconhecimento social que o empresário há muito almejava. Mas os dois homens entrariam em rutura. Capelo considerava que a coleção devia ser construída para posterior venda ao Estado, passando-a para o domínio público. Berardo sempre se recusou a fazê-lo. O colecionador ainda não desistiu dessa guerra contra o investidor. Aliás, a sua estratégia de ataque é agora muito mais agressiva, como adiante se verá, incidindo sobre as vultuosas dívidas do comendador à banca.
E, desde 2014, está em conflito aberto com a direção do MUDE – Museu do Design e da Moda, criado a partir da venda que fez à Câmara de Lisboa, em 2002, por 6,6 milhões de euros, de 1 362 peças, todas modelos únicos. “Estão a assassinar uma coleção”, disse na entrevista à Máxima. Voltaremos ao assunto.
Hoje com 62 anos, bem conservados, Francisco Capelo é duro nas negociações de venda das suas obras de arte, pelas quais nutre uma paixão assolapada e um conhecimento profundo. “Tenho como princípio que o que é bom é raro e tem que custar dinheiro”, cita-o Adelaide Duarte, investigadora e professora de História da Arte na Universidade Nova de Lisboa, no seu livro Da Coleção ao Museu (ed. Caleidoscópio, 427 págs., €19,61), publicado em fevereiro último. Nas aquisições em leilão, também se lê, comporta-se como um adepto ferrenho de um clube de futebol (modalidade que, já agora, detesta). “Quando não consigo comprar uma peça que acho fantástica para [a] coleção, fico furioso, largo uivos e apupo quem a comprou.” Vê-lo descontraído e no seu melhor, só nas festas monumentais que adora organizar para os amigos.
Triunfo e dissabor
No final do verão de 2016, uma ideia assaltou a mente de Santana Lopes. Telefonou a Francisco Capelo, apanhou-o em Tóquio, e solicitou-lhe um encontro. O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) não lhe referiu o assunto e o colecionador disse-lhe que combinariam uma reunião “quando passasse” pela sua casa de Alfama. Falaram em setembro, e o que Santana Lopes queria era convencer Capelo a “pegar” na Fundação Ricardo Espírito Santo, que integra um Museu de Artes Decorativas e uma escola de ofícios tradicionais, e que atravessa grandes dificuldades desde a queda do BES e do GES, universo em que se inseria. O colecionador declinou logo a incumbência. Mas a conversa não acabou aí. No final, ficou apalavrado que a SCML compraria, por três milhões de euros, um quarto do espólio de mais de 1 200 peças, que datam dos séculos III a.C. a XX, e que o colecionador reuniu nos últimos 20 anos. Nascia assim a futura Casa da Ásia – Coleção Francisco Capelo. Apesar de já existir em Lisboa um Museu do Oriente, tutelado pela Fundação Oriente, de Stanley Ho e Carlos Monjardino, o processo decorreu rapidamente, como Capelo gosta. Em 12 de abril deste ano foi assinado o contrato: 75% das peças são incorporadas no património da SCML (Capelo pode usufruir de um terço destas obras quando não estiverem em exposição); as 25% restantes custaram os referidos três milhões de euros. Antes, para se certificar da qualidade artística da coleção, a Santa Casa submeteu-a à avaliação de sete especialistas (cinco internacionais e dois nacionais), que a aprovaram. Para instalar a Casa da Ásia – Coleção Francisco Capelo, com inauguração prevista para o primeiro semestre de 2018, está a ser reabilitado o Palácio de S. Roque, num investimento a rondar 2,5 milhões de euros. Contas feitas, a SCML gastará mais de cinco milhões de euros neste novo museu.
Longe vão os tempos (a partir de 1999) em que Capelo tinha a sua coleção de design e de moda em depósito no CCB, após a assinatura de um protocolo entre o colecionador, o Estado e a Fundação Centro Cultural de Belém, com uma duração de dez anos, e que contemplava a futura doação do espólio. Houve conflitos com a administração do CCB, a qual decidiu, por exemplo, que apenas seriam expostos os objetos de design de produto, deixando de fora as peças de moda, entre as quais modelos únicos de Lacroix ou Jean-Paul Gaultier. Mas a gota que fez transbordar o copo de Francisco Capelo aconteceu no dia em que levou convidados estrangeiros a verem a sua exposição e lhe exigiram o pagamento de bilhetes para entrar.
No momento seguinte, estava a contactar a Phillips, uma das principais leiloeiras internacionais de obras de arte contemporânea, para lhe vender esta coleção. Pouco depois, sobressaía um interessado: o Departamento de Cultura da Região francesa Rhône-Alpes, que pretendia negociar as mais de 1 300 peças para as instalar no Museu da Arte e da Indústria, em Saint-Étienne. Estávamos em 2002, e o então embaixador de Portugal em França, António Monteiro, deu o alerta a Lisboa.
Agraciado e ‘guerrilheiro’
O destino que se desenhava para a sua coleção agradava a Capelo. Em junho de 2002, o Governo de Paris, através do seu embaixador em Lisboa, Pierre Brochand, agraciou o colecionador como Cavaleiro das Artes e das Letras – um reconhecimento que nunca teve em Portugal. No discurso em que justificou a condecoração, o diplomata (que nesse mesmo ano deixou a capital portuguesa para se tornar diretor-geral da secreta francesa) elogiou em Francisco Capelo o “mérito excecional de reunir coleções de arte não movido por um motivo egoísta, mas por uma ambição cívica rara”.
E Santana Lopes também entrou nesta história, então como presidente da Câmara de Lisboa. É quando, após o alerta do embaixador António Monteiro, em 2002, resgata a coleção de Capelo, pelos tais 6,6 milhões de euros, para criar o MUDE. No entanto, 12 anos depois o colecionador entrou em conflito com a direção do museu. “Estão a assassinar uma coleção, e isso é irreversível”, pormenorizou na entrevista de 2015 à revista Máxima. A falta de cuidado com peças de alta-costura, limpas com aspiradores e deixadas em cruzetas durante anos, e a inexistência de qualquer tipo de seguro foram algumas das denúncias que fez. Mas também aludia ao MUDE como “um universo promíscuo, de conivência, e onde a confusão entre interesse público e considerações de ordem privada é total”. Contactada pela VISÃO, a diretora do museu, Bárbara Coutinho, recusou-se a responder às acusações. Presidente vitalício, pelo protocolado, do conselho de gestão da associação que tutela o MUDE, Capelo mantém o conflito em lume aceso, com consequências imprevisíveis – e numa altura em que a autarquia investe 6,4 milhões de euros na reabilitação do edifício do museu.
E se, a 23 de novembro último, o ministro da Cultura, Castro Mendes, e Joe Berardo rubricaram um acordo de extensão do comodato do Museu Coleção Berardo no CCB por mais seis anos, renovado automaticamente (exceto se for denunciado seis meses antes), Capelo, por seu lado, coassinou com Raquel Henriques da Silva, historiadora de Arte e ex-diretora do Instituto Português de Museus, e a investigadora Adelaide Duarte um manifesto, publicado na revista Sábado, que visa passar para o domínio estatal boa parte do espólio. Os signatários dizem ser “do conhecimento público” que Berardo deu 75% do valor da sua coleção (embora o empresário o negue) “como garantia da dívida” de “pelo menos mil milhões de euros” que contraiu na CGD, Novo Banco e BCP. E tomam “apenas como exemplo” o banco público, ao qual Berardo deve “pelo menos 400 milhões de euros”. Assim, à CGD “corresponderá 30% da coleção”, com um valor de mercado de 95 milhões. Este montante “é superior ao encontrado para a coleção redesenhada”, após “renúncias cirúrgicas” de “obras troféu”. Se, “legitimamente, executar a garantia pelo empréstimo não pago”, como propõem, o banco público “será o interlocutor para uma solução de Estado, encabeçada pelo Governo português”. Já se está bem longe das simples acusações cruzadas entre Berardo e Capelo, de dívidas de um ao outro…
Aristocrata e budista
A verve contestatária chegou-lhe, talvez, do pai, o engenheiro Francisco Rosário, que participou no fracassado “golpe da Sé”, em 1959, que se propunha derrubar a ditadura de Salazar. Valeu-lhe seis meses de prisão na cadeia do Aljube, em Lisboa, a falhada intentona. Francisco Rosário morreu cedo, aos 37 anos, vitimado por uma fuga de gás quando tomava banho em casa.
O lado materno estava nos antípodas: era monárquico e conservador, com uma longa linhagem de oficiais de Guerra da Marinha. Por exemplo, é seu tio-bisavô Hermenegildo Capelo, o explorador que, com Roberto Ivens, realizou ao serviço da Coroa a viagem de Angola ao Índico, entre 1884 e 1885.
Francisco Capelo, esse, revelou-se precoce na faceta “liberal” com que se identifica. Aos 11 anos vendia pinturas suas. Aos 12 foi pivô de um programa infantil da RTP e ator em peças juvenis de teatro. Costuma dizer que, já nessa altura, “conseguia ganhar mais dinheiro” do que a sua mãe, Maria dos Santos Capelo (hoje nonagenária), que era professora de Latim e Grego. Dando um salto para a atualidade, lê-se no livro de Adelaide Duarte que Capelo, “inscrevendo publicamente o seu nome na história da formação de coleções, encontrou uma forma de contrariar a ‘angústia da passagem do tempo e da morte’”. Viúvo e sem filhos, o colecionador já decidiu, aliás, não deixar em herança à família quaisquer obras de arte. Tudo será doado ou vendido. Mas também pediu a parentes e amigos que, quando morrer, organizem a cremação do seu corpo num ritual budista. E espera, claro, que cumpram o seu desejo.
Marca Capelo
A influência do colecionador nos museus portugueses
Museu Coleção Berardo – Entre 1993 e 1999, definiu a arquitetura do espólio. Escolheu e comprou 594 das 862 peças do acervo inicial da coleção (ou seja, 69%), desde 2007 instalada no CCB, e que a leiloeira Christie’s avaliou em 316 milhões de euros.
Casa da Ásia – Com inauguração prevista para o primeiro semestre de 2018, no Palácio de S. Roque, em Lisboa, reúne mais de 1 200 peças, dos séculos III a.C. a XX, um quarto das quais a Santa Casa adquiriu por três milhões de euros. O espólio restante é incorporado no património da instituição, “sem custos”.
MUDE – Em 2002, a Câmara de Lisboa comprou-lhe, por 6,6 milhões de euros, 690 peças de moda e 672 de design de produto (1 362, no total), que deram origem a este museu.
Museu Nacional de Etnologia – Doou 116 peças, e tem 43 colocadas em depósito, dos sécs. XIX a XXI.
Museu da Marioneta – Tem 1 400 peças colocadas em depósito, dos sécs. XIX, XX e XXI.
Museu do Azulejo – Doou seis peças, todas do séc. XX.
Museu Nacional de Arte Antiga – Doou uma obra de Cyrillo Volkmar Machado, de 1813, intitulada Última Ceia. A Instituição da Eucaristia. Estudo final. Desenho a pena de tinta castanha e pincel a tinta nanquim.
(Artigo publicado na VISÃO 1275, de 10 de agosto, de 2017)