Desde há duas semanas que Alexander Search, o primeiro heterónimo de Fernando Pessoa, criado durante a sua adolescência, tem um novo ortónimo (ortónimo é o nome dado ao criador do heterónimo), Júlio Resende. Júlio Resende, pianista com três discos de jazz publicados, já desafiara convenções ao gravar «Amália», um trabalho com fados reinventados ao piano. (Há mês e meio, quando o descobriu, o escritor espanhol António Munoz Molina escreveu-lhe um rasgado elogio no jornal El País: «O que Júlio Resende faz com o fado recorda-me o que Keith Jarrett faz com os standards de jazz».) Na altura em que conheceu Salvador Sobral – de quem viria a produzir o disco «Excuse Me» – Júlio tinha na mesa de cabeceira um livro de poesia inglesa de Fernando Pessoa. E daí nasceu uma ideia que tem tanto de genial como de louca: num jogo musical que cruza estilos entre o rock, o pop e a eletrónica, compor música para as palavras inglesas de Pessoa e criar uma banda com gente vinda do jazz, em que cada um escolhesse um heterónimo de Pessoa e inventasse, a partir daí, a sua biografia. O disco, com o mesmo nome, composto por 14 temas com letras de Alexander Search (Fernando Pessoa) e música de Júlio Resende, está em terceiro lugar no top nacional. Eis uma conversa polifónica, a cinco vozes, com uma pontinha de esquizofrenia.
De quem foi a ideia de musicar poemas ingleses de Fernando Pessoa?
Júlio Resende: Tive a ideia quando, há cerca de dois anos e meio, comprei um livro com a poesia inglesa de Pessoa, No Matter What We Dream. Inspirado nesses poemas, escritos durante a adolescência, com uma carga juvenil muito forte, decidi começar uma banda rock, um desejo que já há muito tempo ia no meu espírito. Comecei a fazer uma canção e depois outra, e depois outra… e aconteceu ter um bloco coeso de canções para começar a pensar no esqueleto.
Qual a definição do projeto, em termos musicais ? Pop rock, eletrónica?
Júlio: Foi pensado a partir do pop rock e com cariz eletrónico acentuado, mas não gosto muito de catalogar. Pop rock, indie, eletrónica, não sei bem como lhe chamar. Tentamos ser uma espécie de banda de garagem com muito conhecimento acumulado…
Daniel Neto: Banda de garagem por causa do cariz rock.
Joel Silva: Bem, de garagem não somos, porque ensaiávamos sempre em casa do Júlio e ele não tem garagem (risos)… E também por quando o Júlio nos convidou as músicas já estavam feitas, e nas bandas de garagem não é assim.
André Nascimento: Apesar dos temas já estarem compostos, houve momentos, ao criarmos os arranjos dos temas, em que invocámos esse espírito coletivo das bandas de garagem.
Júlio: Foi um trabalho intenso com esta malta toda. Eles ajudaram-me imenso a conseguir pôr o desenho rock nas canções. Estou muito feliz, porque seria difícil encontrar alguém que desenvolvesse o trabalho que o Salvador fez com estes poemas. Os poemas são super fortes e super belos e o Salvador adicionou-lhes ainda mais beleza com a voz. Estou maravilhado. Ainda podemos fazer melhor, mas por agora estou contente.
Porque escolheu a poesia inglesa de Pessoa?
Júlio: Primeiro, porque gostei muito. Depois, porque este senhor escreve tão bem, de todas as maneiras e em qualquer língua. Sabia que ele tinha escrito em inglês, mas não sabia que tinha sido tanto. É um génio e inspirou-me.
Podia ter feito musicado poemas de heterónimos mais conhecidos do Pessoa.
Júlio: Sim, podia, mas não tinha tanta piada.
Agradou-lhe o lado adolescente?
Júlio: As capacidades literárias de Pessoa, bem como a sua necessidade de escrita, já estão presentes no Alexander Search. Aquilo que ele diz em adolescente e em inglês repete, mais tarde, em português. Alexander Search é uma figura muito forte – aliás, de tal forma forte que Pessoa decidiu dar-lhe a sua data de nascimento. O que o torna um génio.
Todos os músicos da banda têm nomes de heterónimos de Fernando Pessoa, não apenas Alexander Search.
Júlio: Cada um escolheu o seu próprio heterónimo e construiu a sua biografia. O meu, Augustus Search, é um pescador de Provincetown, uma cidade dos EUA onde vivem muitos portugueses. Alexander Search morreu e deixou-lhe as letras para a sua banda.
Salvador Sobral: O Benjamin Cymbra nasceu na África do Sul e era uma menina, Charlotte Cymbra, que nunca se sentiu bem com o corpo que tinha. (É algo que eu não consigo imaginar, uma pessoa não se sentir bem no seu corpo, mas é o meu heterónimo.) Então, na sua adolescência foi para os EUA, onde podia fazer uma operação de mudança de sexo, e a seguir veio para Lisboa. Conheceu o Augustus aqui.
Júlio: O que tem piada é que os heterónimos do Pessoa nunca estavam acabados. Ele assinava um texto com um nome, depois decidia assinar com o outro porque achava que aquele texto pertencia mais àquele heterónimo. Isso também nos acontece a nós, enquanto banda. A vida também é assim, nós não somos sempre os mesmos.

Heterónimos de Pessoa: cada um dos músicos escolheu um heterónimo e inventou-lhe uma biografiaJúlio Resende/Augustus Search – Pescador de Provincetown, cidade dos EUA onde há uma grande comunidade portuguesaSalvador Sobral/ Benjamin Cymbra – Nasceu menina, com o nome de Charlotte Cymbra, mas nunca se sentiu bem no seu corpo. Na adolescência deixou a África do Sul e foi para os EUA, onde fez uma operação de mudança de sexoJoel Silva/Mr Tagus – Não sabe bem onde nasceu porque o pai trabalhava nos barcos e estava sempre a mudar de porto. Reservado, ainda há muito por descobrir sobre a sua históriaAndré Nascimento/Sargent William Byng – Militar reformado, nascido no Canadá, descendente de portugueses. Foi por trabalhar com aparelhos que meitem frequências que nascei o seu interesse pela músicaDaniel Neto/Marvel K. – Nasceu na Floresta Negra, Alemanha, e emigrou com a família para Melbourne, na Austrália,onde passou a juventude
E como é que se conheceram? Como é que se tornaram amigos?
Júlio: Augustus Search tem apreço por pessoas corajosas. Ele contou-me a sua história e eu achei que tinha muito a aprender com ele. É preciso muita coragem para se assumir o que se é, quando os outros não o querem.
Foi esse o magnetismo entre os dois? O que agradou ao Benjamin na figura do Augustus?
Salvador: Antes de mais, o projeto. Ele mostrou-me o projeto, as letras do Alexander, e as músicas, tão bonitas. Não havia como dizer não.
O Júlio Resende tem muitos heterónimos…
Júlio: Sim, musicais. Tudo música. O Fernando Pessoa também escrevia contos e policiais e romances e poesia.
E pensa, como o Pessoa, continuar a usá-los ao mesmo tempo? Ou alguns vão morrer pelo caminho, como aconteceu com Alexander Search?
Júlio: Penso usá-los ao mesmo tempo, sempre que me apetecer. Acho piada a isso. Mas é provável que alguns morram. Por enquanto não matei nenhum dos meus heterónimos, estão todos saudáveis.
O Salvador Sobral tem agora um ‘heterónimo’ inesperado, o de vencedor do Festival da Canção, que não existia quando este projeto foi gravado…
Salvador: Não o sinto dessa maneira. Fui ao Festival da Canção cantar uma canção lindíssima e fazer aquilo de que gosto. Em tudo o que faço, sou sempre eu. Até no que aconteceu no concerto «Juntos por Todos» fui eu, não há maneira de fugir às coisas. Se calhar, tinha sido mais fácil dizer que tinha sido um heterónimo.
Agora que não podem tocar descansadamente à noite em jam sessions, como fazem? A vossa vida mudou, não?
Salvador: É um bocado estranho, mas estamos a tentar lidar com as coisas… Às vezes eu meto a pata na poça. Estou a tentar perceber como é que é isto tudo.
Mas o sucesso do Salvador alterou a vossa relação?
Salvador: Minha e dele? Não.
Júlio: O que mudou a nossa relação tem sido trabalharmos juntos.
Salvador: Somos cada vez mais amigos. É o que eu sinto.
Júlio: Há uma grande cumplicidade, um grande respeito por cada um e pela música de cada um e uma grande vontade de desenvolver esta relação, que está ainda muito pouco desenvolvida. Há muitas obras para fazer, se for possível. O Salvador é um desafio para mim e pelos vistos eu também represento um desafio para ele.
O facto do Salvador ter ganho o Festival pode ajudar à internacionalização de Alexander Search, que ainda por cima é cantado em inglês?
Júlio: Pode ajudar, mas nada foi feito com esse intuito, é coincidência. Cantamos em inglês apenas porque a poesia que o Pessoa escreveu em inglês é maravilhosa e tem valor mundial.
O que vão fazer quando, num concerto de Alexander Search, vos pedirem para tocarem Amar pelos Dois?
Joel Silva: Isso não vai acontecer. Quer dizer, até podem pedir, mas não vamos tocar. O Benjamim Cymbra não conhece muito bem a canção.