Nuno Lopes, 38 anos, fez furou há cerca de cerca de seis meses: enchia os ecrãs com um troféu na mão, vencedor do prémio especial de melhor ator da secção Orizzonti, no Festival de Cinema de Veneza, pelo papel em São Jorge (com estreia marcada para novembro em Portugal). O ator português interpreta um anjo caído em desgraça, uma descida às trevas: Jorge, pai, boxeur, endividado, obrigado a fazer cobranças difíceis. Nas nuvens, o ator fala muitas vezes no plural – o realizador Marco Martins é o terceiro elemento omnipresente da conversa. “Isto vai muito para além dos meus sonhos. Nunca pensei entrar num filme que me desse um prémio de melhor ator em Veneza”, repete. Um milagre em que ele, generosamente, inclui outros sucessos cinematográficos nacionais. No palanque italiano, defendeu o gesto político deste “retrato da austeridade em Portugal”. E onde está, agora, o troféu de melhor ator? “Está em casa, numa prateleira. Ainda está na caixa.”
Peter Handke falava na angústia do guarda-redes antes do penálti. Como é a euforia do penálti marcado?
Estou sem palavras. Já é incrível ter o filme no Festival de Veneza, mas ganhar o prémio de melhor ator era algo que não me passava pela cabeça. Imaginava uma probabilidade do Marco [Martins] ser distinguido porque São Jorge foi muito bem recebido, com críticas boas. Desde o início, este filme foi feito em conjunto, e ainda estávamos na fase de ver só os defeitos do som, da montagem, de “o que é que poderíamos mudar…”. Faz parte: queremos que o filme seja o melhor possível. A primeira vez que vimos São Jorge em Veneza é que foi uma experiência parecida àquela que o filme é para as outras pessoas.
Ganhar o prémio parecia-lhe improvável porquê? Não são os protagonistas que carregam um filme?
Sim, mas havia muito bons filmes com bons atores na competição. Quase todos os que vi na secção Orizzonti tinham personagens fortes… O tema de São Jorge é universal: um pai que luta pelo filho. Mas tem a ver com Portugal e com a crise vivida no país. E, se calhar, parecia-me improvável porque, por natureza, não sou muito confiante sobre o que os outros acham do meu trabalho. Antes de irmos, disse ao Marco que estava muito feliz e orgulhoso com o filme que tínhamos construído. A partir daí, é um bocadinho indiferente se a crítica vai dizer bem ou mal. Claro que preferimos mil vezes que digam bem, e é maravilhoso receber um prémio. Mas o mais importante é sentires que fizeste um bom trabalho. O Ricardo Adolfo, coargumentista [e romancista], disse depois dessa primeira projeção: “Olha, estive a ver um filme que gostava de ter feito.” É isso: fizemos um filme que gostávamos de ter feito.
Este Jorge é um personagem criado para falar com o público?
Claro que sim. Mas eu sou contra aquela ideia de que se deve pensar no público, e que os autores não pensam no público e tudo o mais… Um autor não pode pensar noutra coisa que não seja o que ele próprio, enquanto espectador, gostaria de ver. Eu vejo filmes do Buster Keaton, e certamente ele não realizou filmes nos anos 1930 a pensar em mim. Essa entidade do “público do cinema” é subjetiva. Quando ouço: “Ah, este filme foi [feito] a pensar no público”, acho arrogante. Como é que podes saber o que as pessoas querem? Eu faço um filme à medida do meu gosto, e parto do princípio de que quem tenha um gosto semelhante ao meu, gostará dele.
Jorge é um daqueles papéis que só aparece uma vez na vida?
Sim. Sempre tive o sonho de interpretar um boxeur, fascinam-me os filmes de boxe no cinema, o seu lado quase decadente. Normalmente, são pessoas pobres que lutam pela vida, contra o sistema; por quem, à partida, ninguém daria nada e que conseguem superar-se a si próprias. O meu filme português favorito é o Belarmino (1964), do Fernando Lopes. A ideia para São Jorge surgiu-nos há cinco anos: eu e o Marco sentámo-nos a pensar que tínhamos feito o Alice (2005) há já sete anos, e que era altura de fazer algo novo no cinema, juntos. Nesse ano, tínhamos co-encenado Estaleiros ENVC 2012, um espetáculo nos Estaleiros de Viana do Castelo feito com os trabalhadores. Foi a primeira vez que abordámos um tema social, que trabalhámos com atores amadores, e que falámos sobre a crise. Perante o que se estava a passar, era-nos impossível pensar em qualquer outro tema que não a austeridade que estava a destruir o País.
A vida real está lá…
O filme tem um lado documental forte: estou rodeado de boxeurs, dos operários dos estaleiros, dos habitantes dos bairros da Bela Vista e Jamaica. Há três ou quatro atores, o resto são pessoas reais a fazerem delas próprias, dizendo o que lhes apetece naquele momento, e nós reagimos a isso. O meu maior desafio foi esse: como é que estás sentado a uma mesa com oito pessoas reais e não pareces um ator?
Defende que o impacto da crise sobre os atores foi igualmente forte…
Sim. O cinema esteve um ano sem subsídios, morto. É um dano que vai demorar décadas a recuperar. Toda a gente estava num desespero total. Tenho muitos colegas que desistiram: hoje são massagistas, trabalham em call centers…
Diz que o boxe era uma boa metáfora para a crise…
Era a metáfora perfeita, no sentido de ser sobre um tipo pobre que luta literalmente pela vida. Como muitos desportos em Portugal, infelizmente o boxe não é apoiado. Mesmo os boxeurs profissionais ganham miseravelmente, não é como em Los Angeles que ganhas um título e ficas milionário. Em São Jorge, por exemplo, participam um campeão de boxe, e um campeão de kickboxing que trabalhou como segurança no último Festival de Paredes de Coura…
Como foi o embate com a realidade?
Começámos a ir ver combates e galas de boxe. Nunca tinha ido a uma gala de boxe, e foi incrível. Na primeira vez, o Marco e eu fomos ver o combate de despedida do Guerreiro do Norte, o Nuno Cruz, num centro comercial na Rua de Santa Catarina, no Porto. Havia boxeurs a descerem por escadas rolantes para um ringue rodeado de gente com sacos na mão e crianças… Uma imagem fortíssima. Era uma apresentação glamorosa misturada com a tristeza da despedida de um campeão não ser feita numa arena digna. Descobrimos um mundo em que muitos boxeurs trabalham como seguranças, e alguns deles em cobranças difíceis. Aí sim, percebemos que havia “o” filme: um tipo com dívidas que arranja trabalho como cobrador de dívidas, a cobrar a pessoas que estavam na mesma situação. Na verdade, São Jorge não é sobre boxe: é sobre um tipo honesto, com moral, que luta pela vida. Algo comum no boxe.
Derrubou alguns clichés?
Sim. Impressionou-me o lado familiar entre os boxeurs. O boxe parece um desporto violento, mas não é tanto assim. “Ah, vão tirar-te a cana do nariz, vão partir-te todo, não te vais mexer, eles são uns brutos.” Isso é tudo mentira. São pessoas amorosas: no final de muitas galas vi tipos com a cara destruída, a abraçar o adversário e a dizerem “jogaste bem”. Aliás, eles não dizem “combater”, mas “jogar”. E é um jogo – como marcar golos. Se perdes a cabeça e a concentração por um segundo, perdes o combate. Essa ideia de que são apenas dois tipos à porrada, é completamente errada.
Teve medo de levar um soco, ferir a vaidade?
Ah, levei muitos socos, parti o nariz… Mas, lá está, foi um acidente: durante um treino, levei uma cabeçada. Mas eu disse ao Marco que teria que filmar um combate real e não algo coreografado. Há aí uma grande diferença: é o mesmo que pedir a um ator amador para dizer Shakespeare ou para falar da sua vida…
É a questão do famoso Método?
Não. Em cada trabalho, uso um método diferente. O [realizador] João Canijo estava sempre a dar este exemplo: se estiveres três meses no Porto, chegas a falar com sotaque. Acredito no processo de osmose. Quando estou com família, amigos, ou com os tipos da fábrica, falo e ajo de forma diferente: o ambiente muda-te. Comecei a treinar boxe dois anos antes das filmagens. Nos últimos cinco meses, treinava boxe e crossfit cinco horas por dia no Paulo Seco Team Lisboa Futebol Clube Boxe.
Vimos o seu discurso, emotivo, militante, em Veneza. Não é um novato a receber distinções…
Soube do prémio quando já tinha regressado a Portugal. Mas não pude contar a ninguém, fazem-nos assinar documentos para guardar segredos. Mas uma coisa é ser distinguido no teu país, que tem um valor imenso. Outra coisa é saberes que estás numa seleção com cinco mil filmes e o teu filme ser selecionado… A metáfora perfeita é esta: “És bom lá no teu bairro, de repente estás num combate com o Muhammad Ali, e eles dão-te o prémio a ti?!” Mas há um lado enorme deste prémio que não passa pelo meu trabalho. Falei depois com alguns membros do júri. Ser um retrato dos tempos da troika em Portugal tocou-os, teve influência na decisão.
Receber um prémio assim significa receber muitos telefonemas e propostas de realizadores sonantes?
Não tenho essa experiência. Perguntaram à [atriz brasileira] Fernanda Torres: “O que é que o prémio recebido em Cannes mudou a sua vida?” Ela respondeu: “Tive três dias fantásticos.” Eu tive uns dias fantásticos em Veneza. Será mais fácil à minha agente, em França, dizer: “Este ator é muito bom, e ganhou um prémio em Veneza.” Se vierem propostas, serão bem-vindas. Mas a internacionalização é uma falsa questão: não me interessa fazer maus filmes nos EUA ou em França, interessa-me fazer bons projetos em qualquer lado.
Teve muitos telefonemas de felicitações?
Imensos! Aliás, tive que colocar um post no Facebook a pedir desculpa por não conseguir responder a todos. [Agarra no telemóvel] Veja as mensagens que recebi nos últimos cinco minutos: tenho 23 mil emails por ler, e uns bons dez mil devem estar relacionados com o prémio.
Agradeceu aos bairros Bela Vista e Jamaica. Que efeito tem o prémio para eles?
São Jorge tem um importante lado documental, e eles são fundamentais no filme. Nós quisemos torná-los visíveis. Há falas que nunca poderíamos ter escrito no guião, dizem coisas com que não concordamos. Não houve censura. O filme expõe a situação em que eles viviam nos tempos da troika. O que nos levou a contar esta história é uma metáfora de oito mil histórias muito piores que existem nestes bairros – a história do Jorge comparada com a de muitos portugueses é uma comédia romântica. Este filme é um gesto político, eu não podia chegar lá e agradecer só à equipa e aos amigos.
Desejou também que os políticos deixassem de olhar estas pessoas como números numa página excel. Um filme tem esse poder?
Tem. Quer dizer, não sei se tem o poder de mudar a maneira como as pessoas veem, mas tenho essa esperança. Quando mostro fotos do Bairro da Jamaica, e digo que é no Seixal, a 20 minutos de Lisboa, ninguém acredita. É um mundo que nós, burgueses de classe média, não sonhamos que existe. Nesse sentido, um filme pode fazer as pessoas terem, pelo menos, consciência de que isto existe. Não fomos nós, confortavelmente sentadinhos num hotel, que inventámos uma história sobre uns tipos muito pobres. Filmámos um mundo que existe. Ouvíamos na rádio que vivíamos acima das nossas possibilidades e quando chegávamos aos bairros, víamos pessoas que não comiam há dias, que recolhiam sucata para vender.
Que fantasmas enfrentou por Jorge?
Tanto em Alice como em São Jorge, há um pai que lutava por defender os filhos, e eu não tenho filhos. Mas há um lado ingénuo, esperançoso neste boxeur, que tem algo a ver comigo: um acreditar que as pessoas são boas. Jorge é levado para o mundo do crime acreditando que eles não vão usá-lo para bater em ninguém. Esse é um lado que não quero perder: prefiro desiludir-me do que não ter a opção de me desiludir.
Regressou a correr, para fazer de DJ no Teatro D. Maria II. Controlar uma multidão dançante é como ter o público de teatro na mão?
Em parte, sim. Ocupamos o tempo livre das pessoas, o que é uma responsabilidade grande, e eu tento dar o meu melhor. Para mim, ser DJ funciona como uma bebedeira, esqueço-me de tudo. E divirto-me muito.
Muitos continuarão a associá-lo a cromos cómicos como o Chato d’Os Contemporâneos. Aborrece-o essa colagem?
Eu adoro comédia. Aborrece-me só quando entro num táxi e o motorista me diz: “Bem, você não trabalha há anos.” Lá tenho que explicar que estou a trabalhar fora da televisão. Na minha cabeça, já nem me lembro do Chato, e é estranho ver as pessoas a compararem trabalhos atuais com esse personagem.
O rótulo de Belarmino 2.0 agradar-lhe-ia mais?
Não, o filme não é tanto sobre boxe. Mas se ficasse também conhecido por este papel, era sinal de que as pessoas tinham ido ver o filme. O que me perturba nesta gigantesca quantidade de mensagens recebidas é pensar: “Metade destas pessoas está a dar-me os parabéns e não vai sequer ver o filme.” Parece que a apreciação exterior é mais importante do que o trabalho, e que haverá mais gente a ver o meu discurso do que a ver o São Jorge. Isso é triste.
Entevista publicada na VISÃO 1228, de 15 de setembro de 2016