Há uns 40 anos, na sala de jantar de um hotel algures no Norte da Europa, dois jornalistas nascidos a dez mil quilómetros de distância um do outro conversavam casualmente acerca de Fernão Mendes Pinto. O mais entusiasta não era o que tinha barba, nariz proeminente e olhos esbugalhados, mas o glabro com nariz discreto e olhos estreitos. O japonês sabia mais do que qualquer português de mediana cultura acerca dos contactos luso-nipónicos nos séculos XVI e XVII. E, no seu país, ele não constituía uma exceção. A época em que os namban, os “bárbaros do Sul”, exerceram uma forte influência política e cultural no Japão pertence ao núcleo de conhecimentos básicos dos filhos do Império do Sol Nascente. Os namban somos nós.
A conversa do hotel travou-se, talvez, à roda de 1970. A data não é relevante. Outra, bem mais recuada, é que importa reter, pois é a ela que remonta esta espécie de comunhão laica mas transcendente entre dois povos geográfica e culturalmente tão afastados.
Fixemos, pois, essa outra data numa manhã de agosto de 1549, quando um desengonçado junco chinês de mastros de bambu entrou, dando aquela falsa aparência de navegar para trás, no porto nipónico de Kagoxima. Imaginemos os armazéns com telhados de colmo, os fardos de mercadorias, o templo pontiagudo no alto da colina arborizada. No cais, dois guardas de afiadas catanas à cintura andam para trás e para diante, com as suas armaduras saídas das Star Wars. O junco, comandado por um pirata alcunhado de O Ladrão, teria passado quase despercebido se não fossem os três estranhos passageiros de cara vermelhusca que levava a bordo. Não eram os primeiros europeus a desembarcar no Japão, pois a estreia absoluta dera-se meia dúzia de anos antes, quando um grupo de comerciantes aventureiros de que fazia parte Fernão Mendes Pinto (pelo menos, a crer no relato que o próprio faz na sua Peregrinação) arribou a Tanaguexima e logo maravilhou e aterrorizou os locais ao atingir mortalmente um pássaro com o disparo de uma espingarda. A partir daí, a imagem dos “bárbaros” e o próprio conhecimento da sua existência vinham assombrando os sonhos e as vigílias dos habitantes das ilhas meridionais do arquipélago do Sol Nascente. “Comem com os dedos em vez de usarem os pauzinhos e manifestam os seus sentimentos de forma descontrolada”, lê-se num documento nipónico da época acerca dos recém-chegados. “Além disso”, prossegue a crítica, “são incapazes de entender a escrita”.
Mas estes recém-chegados no junco de O Ladrão não eram maltrapilhos vestidos ao acaso: envergavam do pescoço aos pés uma longa veste negra, falavam com voz suave e chamavam-se Francisco Xavier, Cosme de Torres e Juan Fernandez. Espanhóis os três, membros da Companhia de Jesus (Societas Iesu em latim) fundada 15 anos antes pelo seu alucinado e misógino compatriota Inácio de Loyola sob o lema da propaganda fide (propaganda da fé), apresentavam-se como religiosos portugueses porque atuavam na esfera de influência lusa segundo a partilha do mundo acordada em 1494 em Tordesilhas – e já então começada a ser posta em causa pela “intrusão” de outras potências ocidentais que ironizavam com a falta de um “testamento de Adão” que avalizasse essa partilha.
Xoguns, dáimios e samurais
Francisco Xavier, que a História apodaria de “Apóstolo das Índias”, chamara aos seus estreitos ombros a tarefa de converter ao cristianismo de Roma a imensa Ásia. Confirmado nessa missão pelo rei português D. João III, empurrara voluntariamente para um canto da memória a parte mais complexa dos seus estudos humanísticos na Sorbonne e rejeitava o próprio testemunho dos seus olhos quanto estes lhe expunham o esplendor da riqueza múltipla das civilizações asiáticas. Limitando-se a brandir um crucifixo e um breviário, espalhava à sua volta, de uma forma rudimentar mas serena, através de histórias simples e edificantes, aquilo a que os padres chamam o “verbo divino”. Para ele, todas as religiões que não fossem a cristã eram idolátricas, todos os sacerdotes que não usassem sotaina eram uma corja, não existiam a seu ver metafísicas orientais, civilizações milenares, mundividências exóticas – nada era admissível para além da sua crença inabalável e do seu bem definido conceito de caridade. O objetivo de Xavier e de todos os membros da sociedade a que pertencia era “colher frutos”, converter pela rama, batizar, mesmo que para isso fosse necessário prescindir de sacramentos e de rituais impossíveis de levar ali à prática, como o da confissão, que podia exigir o impossível contacto direto e a sós entre o padre e uma mulher oriental em sociedades ainda mais machistas do que a europeia.
Se na Índia as conversões eram particularmente difíceis (à exceção de pequenas comunidades onde os missionários obtiveram sucesso, como a goesa), no Japão elas foram facilitadas por uma geografia e uma conjuntura política mais propícias. Penetrar nos vastos hinterlands da Ásia era problemático, mas o facto de as terras no Japão nunca ficarem muito distantes das costas facilitou a tarefa; por outro lado, as ilhas onde o Sol nascia estavam na época a ser palco de uma espetacular transição do caos feudal para a centralização do poder. Neste quadro, sendo o imperador um mero símbolo, o governo passou a ser exercido de facto por um xogum (literalmente, condestável, ou general), que exercia a sua supremacia sobre os dáimios (equivalente aos barões ocidentais) e os samurais (cavaleiros nobres). Os europeus, com destaque para os comerciantes e religiosos portugueses (sobretudo os jesuítas) desempenharam papel importante nesta fase decisiva da história nipónica, não só como fornecedores de novas ideologias e tecnologias revolucionárias à fação centralizadora, mas também facilitando o enriquecimento do país através de uma reativação do comércio estrangeiro, sobretudo através da troca da prata nacional pelas sedas chinesas e outros artigos requintados.
É que o Japão – de cuja existência o Ocidente tinha uma notícia vaga a partir do testemunho do famoso viajante veneziano Marco Polo (que no século XIII vivera longos anos na China) – vivia isolado desde que, no século IX, interrompera os contactos com o exterior e entrara em conflito com o Império do Meio, de cuja cultura é, na essência, herdeiro. Ao desbloquearem essa situação, os portugueses – comerciantes e padres – fizeram com que o ar do exterior entrasse no arquipélago do Sol Nascente. Mas seria uma lufada de ar fresco? Pelo menos, o suficiente para facilitar a mudança de página, e por isso os japoneses estão tão reconhecidos ao papel dos nossos antepassados narigudos, os tais namban, por mais “bárbaros” e feios que estes fossem.
Se os portugueses influenciaram o curso dos acontecimentos no Japão, beneficiaram também do facto de terem chegado no tal momento propício do advento do xogunato. A ascensão política de um pequeno senhor local, chamado Oda-Nobunaga, provocara o descontentamento dos budistas, favorecendo indiretamente a propagação das ideias religiosas veiculadas pelos jesuítas católicos. Na verdade, foi uma troca de favores: o xogum protegia os padres e usava-os a seu favor contra os seus inimigos. Disto ressaltou que, em 1581, havia já cerca de 150 mil cristãos no arquipélago e – espante-se o leitor – qualquer coisa como duas centenas de igrejas, duas dezenas de colégios ou residências com mais de 80 padres e frades e dois grandes seminários frequentados por muitos alunos naturais da terra.
‘Turistas’ exóticos
É nesta fase de euforia que se realiza a pomposa embaixada de cristãos japoneses ao Papa. Transportados, como não poderia deixar de ser, em navios portugueses, os nipónicos despertaram curiosidade e causaram espanto em Lisboa, em Madrid e em Roma, onde foram recebidos por Gregório XIII. Na zona da capital portuguesa, passeando com os seus quimonos como turistas exóticos, apreciaram sobretudo o então moderno Mosteiro dos Jerónimos e o já vetusto palácio da vila de Sintra.
Mas, para mal dos pecados dos cristãos do Oriente, quando os viajantes regressaram à sua terra a situação tinha ali sofrido uma reviravolta radical. Oda-Nobunaga, o protetor dos jesuítas e amigo dos portugueses, morrera, e o seu sucessor, Hideioxi, suspeitando de que a atividade dos missionários seria preparatória de uma anexação política do país (fosse por Portugal, pela Espanha ou por outra potência ocidental), pegara no pincel e assinara um decreto que ordenava a expulsão dos religiosos.
Estes procuraram ainda salvar a honra do convento esforçando-se por manter separadas as atividades missionária e comercial, mas de nada lhes valeria a tentativa, traduzisse ela, ou não, um sentimento sincero.
É verdade que o sectarismo católico, imagem forte daqueles tempos de Contra-Reforma, não ajudava. A destruição de templos budistas de Nagasáqui serviu de pretexto para pôr cobro à influência dos missionários no Japão. Para carregar as tintas deste quadro desfavorável à Igreja romana, as potências coloniais europeias emergentes – as protestantes Holanda e Inglaterra – ajudaram à festa acirrando as rivalidades entre jesuítas, franciscanos e agostinhos.
O xogum Togukawa Ieyasu, já muito influente nos tempos de Oda Nobunaga e de Hideioxi, unificara entretanto o Japão, com o aval do fraco imperador Go-Yozei. Sucedeu-lhe o filho, Hidetada, continuador do prestígio da casa de Togukawa, a quem por sua vez se seguiu Iemitzu, o terceiro de uma dinastia de 15 senhores que sucessivamente governariam o país até à segunda metade do século XIX. Desta galeria de nomes “bárbaros” – embora aos olhos nipónicos os bárbaros fossem os namban, ou seja, nós –, pouco reteremos na memória que não seja o crescendo de hostilidade contra os estrangeiros e um cada vez maior fechamento do arquipélago. Perseguições e martírios de cristão marcaram este período de extrema violência. Depois de uma primeira ordem de despejo, a expulsão definitiva dos europeus ocorreu em 1637. Inconformados, os cristãos de Ximabara ainda se rebelaram contra o xogum, mas a revolta foi afogada em sangue. Alguns missionários expulsos tentaram depois entrar clandestinamente nas ilhas governadas pelos Togukawa, mas foram, na sua maioria, martirizados. Fosse para escapar aos sofrimentos atrozes, fosse para proteger comunidades, alguns renegaram publicamente a fé cristã. É este tema da apostasia que serve de leitmotiv ao romance de Endo e ao filme de Scorsese.
A ordem negra
Poucos temas da cultura ocidental suscitam tanta controvérsia como a Companhia (ou Sociedade) de Jesus. Padres instruídos como poucos, verdadeiros homens de Cultura, os jesuítas foram um dos alvos prediletos dos ataques do Iluminismo do século XVIII e do anticlericalismo do século XIX. Ora apoiando-se nos reis contra os povos ora nestes contra aqueles, seriam os soberanos “esclarecidos” – para usar a linguagem dos enciclopedistas franceses – os seus juízes, quando, em 1773, a ordem foi extinta por decisão do Papa Clemente XIV, influenciado pelos poderes temporais. O Marquês de Pombal foi um dos primeiros estadistas a dar o exemplo, logo em 1762, ao banir de todos os territórios portugueses a SJ. Neste particular da queda em desgraça, eles fazem lembrar os velhos Templários. Mas os descendentes de Inácio de Loyola e de Francisco Xavier regressariam passados 41 anos, já não com o papel de primeiro plano que lhe coubera desempenhar no passado, mas como revivescência intelectual e ponderada de um outrora temido esplendor.
Teria mesmo esta congregação, que não admite mulheres no seu seio, desfrutado do grande poder que tradicionalmente lhe é atribuído? A resposta é difícil de dar, sobretudo antes de definirmos o conceito e os limites daquilo que é designado pela palavra “poder”. Mas uma coisa é certa: em dois mil anos de História da igreja de Roma e em quase meio milénio de crónicas jesuítas, nunca nenhum Papa tinha pertencido à SJ antes do atual. E não deixa de ser um paradoxo que o argentino Jorge Bergoglio tenha sido escolhido para se sentar na cadeira de Pedro com o nome de Francisco, inspirando-se não no seu correligionário Francisco Xavier mas no seu homónimo Francisco de Assis, fundador dos franciscanos, um homem despojado que, conversando com os animais e tratando o lobo por irmão, ofereceu ao espelho poliédrico do cristianismo uma das suas facetas mais límpidas.
Couraçados e locomotivas
Um dia, em 1853, uma esquadra americana comandada pelo comodoro Mathew Perry fundeou na baía de Tóquio e lançou um ultimato para terra, exigindo a reabertura dos portos japoneses ao comércio internacional. A nova era do vapor exigia o estabelecimento nas costas de abundantes pontos abastecedores de carvão. As águas do Japão, essas eram desde há dois séculos temidas pelos viajantes ocidentais, que corriam risco de vida se fossem aprisionados por marinheiros ou simples pescadores nipónicos. Mas o temor inspirado pelas bocas dos canhões e pelos próprios costados negros dos navios colocou um ponto final nos dois séculos e meio do xogunato Togukawa, ou Período Edo, e desencadeou o mecanismo (e nunca uma palavra foi tão apropriada) que pôs em marcha o Japão moderno. Também os filhos do Sol Nascente ambicionaram possuir navios e canhões como aqueles e esse pensamento transformou-se em realidade sob a égide do novo imperador Meiji. O fim do feudalismo e a centralização da administração pública permitiram uma acelerada industrialização, que na aparência se pode confundir com ocidentalização, e no fim do século XIX e princípios do século XX o velho reino dos xoguns e dos samurais era já uma potência militar emergente e poderosa, que derrotou primeiro a velha rival China e, depois, a gigantesca Rússia, numa guerra que deixou o mundo de boca aberta e fundou o mito fin-de-siècle do “perigo amarelo”. A ascensão militarista nipónica terminaria porém em 1945, com a capitulação face aos EUA, no termo da II Guerra Mundial, e depois de a velha Nagasáqui “dos portugueses” ter sido – tal como a vizinha Hiroxima – aniquilada pelo maior crime do Homem contra o Homem jamais praticado em frações de segundo: o lançamento de bombas atómicas contra populações. Permanece hoje a imagem de um Japão civilizado, educado, solidário, cordato e tecnologicamente desenvolvido, produtor além disso de uma indústria que faz sonhar crianças e adolescentes em todo o mundo: a narração figurativa da manga e as imagens vivas do anime.
Voltemos à conversa travada num hotel da Europa do Norte, há 40 anos. O leitor já há muito reconheceu no interlocutor namban o autor destas linhas. Era de noite e as gotas de chuva brilhavam nos impermeáveis de quem vinha da rua. Despedimo-nos um do outro no lobby com um aperto de mão e uma pequena vénia. “Sayonara!”, disse o namban. “Arigato!”, respondeu o descendente dos samurais.
Planisfério jesuíta
Logo após a sua fundação, no século XVI, os jesuítas espalharam-se pelo mundo, a fim de disseminar o que entendiam ser a verdadeira fé e combater a reforma protestante. Refletindo essa velha expansão por todos os continentes, a Companhia de Jesus é a organização religiosa masculina católica mais numerosa, possuindo ou controlando mais de 200 universidades em todos os continentes (ver mapa) e contando com cerca de 20 mil membros. É dirigida por um superior geral, eleito perpetuamente por representantes das 85 “províncias” em que está organizada. Presentes em cerca de 130 países, é nos EUA e na Índia que existem mais jesuítas, com a curiosidade de tanto num como no outro destes países o catolicismo ser minoritário.
A abertura de colégios para educar jovens nos seus princípios foi, aliás, a prioridade da organização desde que foi criada. Tradicionalmente instruídos, os jesuítas cultivam a arte da palavra, e daí que se use a expressão “argumentação jesuítica” como sinónimo de habilidade verbal.
No Brasil, os jesuítas estiveram entre os fundadores da cidade de Salvador. Mais a sul, implantaram uma rede de missões entre os povos Guaranis, criando laços administrativos com os povos locais, que defendiam de serem escravizados pelos colonos. Sobretudo por isso, entravam muitas vezes em choque com os poderes coloniais espanhol e português. No Oriente, da Índia ao Japão, foram os mais ativos propagandistas do catolicismo e estiveram em muitos locais antes de outros europeus lá terem chegado (por exemplo, no Tibete).
(Artigo publicado na VISÃO 1244, de 5 de janeiro)