Ainda se lembram do tempo em que brincavam aos impossíveis na sala de ensaios. Imaginavam-se a tocar no palco dos maiores festivais de verão ou das salas mais exclusivas. Hoje, as portas estão escancaradas para os receber onde quer que vão.
Os irmãos Pedro da Silva Martins (compositor e guitarrista) e Luís José Martins (guitarrista) fundaram os Deolinda juntamente com a prima Ana Bacalhau (vocalista) e o seu marido, José Pedro Leitão (contrabaixista), há dez anos. Esta primeira década de música será celebrada com concertos nos coliseus de Lisboa (28 de janeiro) e do Porto (4 de fevereiro).
À VISÃO, confortavelmente instalados no Salão Nobre do Teatro da Trindade, em Lisboa, revelaram alguns dos segredos da longevidade da banda, o que os fãs lhes dizem sobre a sua música e, também, o que mudou no mundo da música durante a última década (quem diria que o autógrafo deixaria de ser importante?).
A Deolinda, personagem criada pelo ilustrador João Fazenda que representa o espírito da banda, quer continuar a mexer com a música popular portuguesa. Sem hesitações, ficou agendado novo encontro para daqui a dez anos. Afinal, ainda há histórias por contar.
Até que ponto é importante terem algum tipo de envolvimento cívico?
Ana Bacalhau: Eu sinto que tenho de retribuir aquilo que de bom a vida me tem dado. Contribuir para tornar a vida das pessoas um bocadinho melhor, pelo menos enquanto estamos em palco, é muito bom. Fazê-lo de forma desinteressada, para que alguém possa beneficiar do que um espetáculo pode oferecer, não só a nível artístico mas também material, é muito especial.
Como escolhem as causas que apoiam?
José Pedro Leitão: É muito difícil. Infelizmente, há muitas solicitações e a nossa agenda é limitada. Fico sempre com a sensação de que podíamos ter feito mais. A sorte de ter salas cheias, e fazer o que gosto, nunca fica completamente retribuída.
A música tem o poder de mobilizar as pessoas, por exemplo, para uma causa solidária, ou isso é uma ilusão?
Luís José Martins: Pela nossa experiência, acho que sim. Aconteceu-nos tanto com o Parva Que Sou, como com o Movimento Perpétuo Associativo, esses temas tornaram-se, de certa forma, hinos do momento. É incrível como canções que ensaiamos os quatro, no início timidamente, saem das nossas mãos e tornam-se de toda a gente.
Já perceberam o que criou o fenómeno Parva Que Sou, que se tornou o hino da chamada “geração à rasca”?
AB: As pessoas. Nós fizemos uma canção e as pessoas acolheram-na de uma maneira tão à flor da pele que fizeram com ela o que se conhece… A canção serviu para um grupo de pessoas se unir e gritar contra algo que não era justo para as suas vidas.
A edição especial do Outras Histórias tem um disco ao vivo, mas não está lá a Parva Que Sou.
JPL: Aí há uns três anos que não a tocamos. Estava a ficar um bocadinho mecânico. A reação do público e mesmo a nossa performance já estava a ser um bocado automática. As pessoas ouviam os versos, possivelmente já os conheciam, e reagiam em conformidade. Não nos demitimos da canção mas, se calhar, estar sempre a puxá-la estava a diminuí-la.
LJM: E podíamos correr o perigo de nos reduzirem a uma só canção.
Os aniversários redondos costumam servir para fazer balanços. Já fizeram o vosso?
Pedro da Silva Martins: O balanço é o melhor. A Deolinda tomou-nos a vida durante este período de forma muito intensa. Isso é marcante, vale por si.
AB: É muito engraçado haver miúdos de 16 ou 18 anos que nos ouvem desde que eram pequeninos. São gerações que estão a crescer connosco.
A maneira como as pessoas vivem a música, hoje, é muito diferente?
PSM: Fomos assistindo, degrau a degrau, à evolução tecnológica. No início, tirar fotos era muito mais rudimentar. Primeiro com máquinas analógicas, depois digitais, a seguir os telemóveis.
JPL: A importância da fotografia na vida das pessoas é completamente diferente. O autógrafo tornou-se quase secundário, as pessoas querem é fotos.
A forma de consumir música também se alterou.
AB: Estamos a voltar ao tempo do single. Nos anos 50 os artistas lançavam um single e iam para a estrada, depois tinham um álbum, mas o mais importante era o single. E o single voltou a ter uma importância maior para as novas gerações.
JPL: Por outro lado, damos muitos concertos. As pessoas estão predispostas a comprar bilhetes e cada vez com mais antecedência.
AB: Uma coisa importante que eu sinto, e que na nossa geração não era tanto assim, é que hoje não há qualquer distinção entre ir ver um concerto de música portuguesa ou internacional. Coloca-se tudo no mesmo patamar, são experiências ao mesmo nível.
Sentem que contribuíram para isso?
PSM: No início era difícil chegarmos a um sítio e dizermos que fazíamos música popular portuguesa. As pessoas nem sequer queriam ouvir. Passado um ano, depois de as coisas nos correrem bem, foram essas mesmas pessoas que nos contactaram para irmos lá tocar. [risos]
AB: Cumprimos o papel que era o nosso. Tínhamos a nossa proposta, defendemo-la com unhas e dentes, e nunca traímos a ideia original da Deolinda. Nós demos a nossa contribuição mostrando às pessoas algo em português, contávamos coisas do nosso dia a dia que uma pessoa que não morasse em Portugal nunca poderia contar.
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Os Deolinda aturaram no concerto solidário promovido pela VISÃO Solidária e pela Associação Mutualista Montepio no Teatro da Trindade, em Lisboa, e ajudaram a angariar quase uma tonelada de alimentos para a Comunidade Vida e Paz
António Bernardo
A Deolinda, enquanto personagem, também mudou muito?
AB: Era um desafio giro pedir ao [João] Fazenda para desenhar a Deolinda em 2016 para vermos o que ele ia imaginar para ela…
JPL: A personagem perdeu um bocadinho de preponderância, e a banda, em grupo e individualmente, ganhou-a. É natural, porque somos nós que andamos na estrada e as pessoas conhecem-nos. De início, a personagem ajudou-nos muito, era um conceito agregador.
Em dez anos a vossa música também ficou diferente. Ao início estavam mais colados ao fado.
PSM: Lisboa já é muito diferente daquilo que a Deolinda cantou. O que pode ser a música popular feita pela Deolinda, hoje? Esse foi sempre o nosso fio condutor. É sempre um desafio.
JPL: Se calhar, a nossa distância ao fado mantém-se a mesma, mas no início puseram-nos ao lado do fado. Hoje em dia põem o fado ao nosso lado. Acabamos por estar em paralelo, sempre à mesma distância.
PSM: Estamos sempre a fugir ao fado, mas ele anda atrás de nós! [risos]
A vossa carreira também tem um lado internacional. Como corre essa aventura?
JPL: Já fomos a quase 30 países. A Europa toda, EUA, Canadá, México, Brasil. Este ano foi mais Bélgica e Espanha.
LJM: Na Galiza é como tocar em casa.
AB: A música portuguesa, se calhar, tem mais preponderância na Galiza do que a espanhola. O Zeca Afonso é um herói para os galegos.
Estão habituados a tocar para pessoas que não conhecem a vossa música?
AB: Sim, é uma conquista. Quando vamos para o palco sabemos que as pessoas estão à descoberta. Se sabem que somos de Portugal esperam que seja fado e nós temos de os convencer a entrar no nosso concerto. Nos primeiros espetáculos da Deolinda em Portugal era igual. Havia um sentimento de familiaridade e estranheza ao mesmo tempo.
Os fãs já vos disseram coisas inesperadas sobre o papel da vossa música na vida deles?
LJM: Epá, já nos disseram coisas assustadoras! [risos]
PSM: Mas também coisas maravilhosas… Houve um rapaz que nos veio contar que o pai tinha tido um AVC e a forma de comunicarem com ele era através da nossa música.
Vão-se dividindo em projetos paralelos e colaborações. É uma forma de terem saudades de trabalhar juntos? É um dos segredos da vossa longevidade?
PSM: É tudo isso. Também vamos ganhando, assim, outras experiências e visões que depois se refletem naturalmente no que fazemos em conjunto. Conhecemos pessoas que podem colaborar connosco. Essas experiências ajudam-nos a crescer.
Às vezes refreiam o vosso impulso de experimentação?
JPL: Houve uma audição do Outras Histórias na nossa editora para uns fãs ainda antes do álbum sair e um senhor não gostou nada d’A Velha e o DJ. É natural que não sejamos unânimes e isso é bom.
AB: Se tivéssemos esse medo A Velha e o DJ nunca teria acontecido. O pacto que temos com o nosso público é ir até onde as canções nos permitem ir. As pessoas ouvem e identificam-se ou não, mas o nosso compromisso primeiro é com as canções e com a proposta da Deolinda.
JPL: Não nos podemos tornar um daqueles emuladores do ZX Spectrum. [risos]
Até que ponto as vossas ligações familiares influenciam a dinâmica da banda?
AB: A química inicial foi muito ajudada por esse conhecimento pessoal e musical. A nossa banda começou já com relações pessoais muito bem estabelecidas. Uma banda que não é família demora dez anos a tornar-se família, a nossa já era família à partida.
PSM: Nós demorámos dez anos a tornarmo-nos estranhos! [risos]
Mas têm regras? Não se fala de trabalho ao jantar?
PSM: Às vezes custa um bocado, e falo por mim, estamos tanto tempo juntos que quando nos encontramos fora deste contexto parece que nem temos conversa.
Viver só da música em Portugal é muito complicado?
JPL: Não nos podemos queixar, mas se olhar para o meu percurso anterior à Deolinda, posso… Tinha de ter outra profissão para poder fazer música. Se se trabalhar nas franjas, se calhar, não se consegue viver só da música.
![jc deolinda 05.jpg](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/10/9986573jc-deolinda-05.jpg)
A década de carreira dos Deolinda será festejada com concertos nos Coliseus de Lisboa (a 28 de janeiro) e do Porto (a 4 de fevereiro). Uma edição especial do disco Outras Histórias, que inclui um CD ao vivo, também assinala a efeméride
José Caria
AB: Para quem se posicione no chamado mainstream, e trabalhe para um público alargado, dos 8 aos 80, é possível, tanto que nós largámos os nossos empregos e somos músicos a tempo inteiro.
Há alguma coisa que ainda fantasiem fazer em palco?
AB: Talvez trabalhar com alguns músicos…
PSM: Mortos.
AB: Isso é mais difícil. Eu gostava muito, era um par interessante para a Deolinda… o Bob Dylan!
JLM: Ele não é um tipo fácil.
AB: A Deolinda era miúda para lhe dar a volta!
JPL: O problema é que ele não atende o telemóvel. [risos]
Aconteceram-vos muitas coisas na carreira que inicialmente pareciam impossíveis?
JPL: A começar por estarmos aqui hoje a falar da maneira como estamos a falar.
PSM: Há dez anos estávamos aqui a gaguejar e a tremer.
AB: E quando brincávamos nos ensaios a dizer “e a Deolinda no Sudoeste?” Daí a um ou dois anos, Sudoeste, toma lá!
JLM: E irmos à ZDB? Tumba, Deolinda na ZDB! [risos]
Ainda têm o mesmo entusiasmo de há dez anos?
AB: Eu estou cada vez com mais pica!
JLM: No palco estamos mais coesos, antes andávamos ali a mastigar as canções para elas crescerem e, hoje em dia, as coisas vão-se ajustando com mais facilidade.
PSM: Antigamente, a Ana sofria mais um bocado porque tinha de encher muitos chouriços. Não tínhamos canções suficientes para um concerto.
AB: Quando nos pediam encores tínhamos de repetir canções. Hoje quase não falo! Já não preciso de enquadrar nada, está tudo enquadrado. Agora é só andar ali de um lado para o outro. Eu sou a única que anda a correr, estes desgraçados estão presos às cadeiras. Eu corro por eles todos!
PSM: Por isso é que estás mais magrinha! [risos]
AB: Tens de arranjar uma guitarra wireless! Antes não gozava tanto porque ainda estava muito verdinha, o palco ainda me dominava, agora ele pode pregar-me umas rasteiras, mas eu já sei o que ele tem no bolso.
Marcamos encontro para 2026?
AB: Marcamos! Estou cheia de curiosidade para saber como será a Deolinda daqui a dez anos. Isso também me dá pica! Quero saber como estará a Sr.ª D.ª Deolinda.
JLM: E como é que nós estaremos…
PSM: O público já deve estar velhote à brava.
JLM: Nessa altura voltamos aos miúdos e às novas gerações.
AB: As nossas vénias vão ser um bocadinho mais lentas.
JPL: Daqui a dez anos tenho 47, e os quarenta são os novos 15! [risos]