«Todos vimos filmes com comboios, faz parte do nosso imaginário e história cinematográfica. E há partes do meu livro muito cinematográficas”, assumia Paula Hawkins, 44 anos, escritora britânica nascida no Zimbabue, cujo livro de estreia vendeu mais de 6,5 milhões de exemplares no mundo, tendo escalado os tops de livros mundiais. Um exemplar de A Rapariga no Comboio foi vendido a cada 18 segundos na Grã-Bretanha, e a cada seis nos EUA. Em Portugal, o romance, editado pela Topseller, esteve 13 semanas consecutivas como número 1. Esta ex-jornalista que escrevera sobre taxas de juro e mercados durante 15 anos, e passara pela revista TIME, até a recessão a obrigar a saltar da estação, e empurrado para a escrita veloz deste primeiro romance, tinha o seu final feliz. Este ano, a Forbes já a admitiu na sua lista dos escritores mais bem pagos do mundo: Paula Hawkins está em nono lugar (uma posição acima de George R.R. Martin, o criador de A Guerra dos Tronos). E como Hollywood nunca perde oportunidades, a Dreamworks Pictures comprou os direitos do romance, um ano antes da sua publicação, tão impressionados ficaram os seus executivos com as cenas fortes e os personagens cheios de falhas.
Esta quarta-feira, 5, a aguardada adaptação cinematográfica de A Rapariga do Comboio chegou às salas nacionais. Realizado por Tate Taylor, é protagonizado por Emily Blunt, atriz capaz de ‘roubar’ a atenção do ecrã tanto em dramas como em comédias. Acompanham-na Lisa Kudrow (Phoebe da série de tv Friends), Luke Evans (O Hobbit), Justin Theroux (mais conhecido pela série de tv The Leftovers), Allison Janney (a premiadíssima atriz que desempenhou o papel de porta-voz da Casa Branca na série The West Wing/Os Homens do Presidente). Mas as críticas americanas não poupam elogios à protagonista no papel de Rachel, uma alcoólica cuja vida descarrilou e que, todos os dias, observa da janela do comboio pendular outras vidas aparentemente perfeitas: a da nova vida do ex-marido que a trocou por uma mulher fértil, grávida, e o contos de fadas conjugal dos vizinhos. O guião segue o romance, apenas transferindo a ação de Londres para Nova Iorque: um thriller negro turbinado por um pecadilho cometido por todos os que andam diariamente de transportes públicos. O descarrilamento sucede quando o paraíso doméstico dos outros, avistado pela janela, não é o que parece.
Há um ano, Paula Hawkins declarava à VISÃO que tinha preferido ficar de fora desta aventura cinematográfica: “Sou uma escritora, e nunca trabalhei em cinema. Creio que é muito difícil fazer um filme de um romance, é preciso ter muita experiência. E eu estou envolvida na escrita do segundo romance. Mas parece-me que A Rapariga no Comboio será uma adaptação muito fácil, e estou ansiosa por ver o que vão fazer com o meu romance. …».
Um comboio em movimento, um suspeito de homicídio, uma testemunha pouco confiável. Hitchcock criou filmes com estes ingredientes. Foi uma inspiração direta para este seu livro?
Pensei em Hitchcock quando tive a ideia de escrever sobre alguém que testemunha algo num comboio. O filme A Janela Indiscreta surgiu-me imediatamente na mente. Gosto muito de Hitchcock, da maneira como ele cria aquela atmosfera de paranoia, de dúvida, de incerteza, em que os personagens creem que estão a enlouquecer ou a ser manipulados. E, obviamente, há muito de tudo isso em A Rapariga no Comboio. Mas não foi uma estratégia usada conscientemente.
Hoje, temos de enfrentar medos novos. Mas este livro prefere regressar a velhos modelos do thriller. Tem razão, eu estou a explorar os velhos receios. Mas o sentimento de vulnerabilidade que as pessoas têm é uma experiência universal forte: sentimo-lo em diferentes épocas, de diferentes maneiras.
A Rapariga no Comboio levanta maiores questões do que a do simples whodunnit. Resolver o crime não é o seu objetivo?
A violência é uma questão essencial no livro, mas não era o que me interessava mais. Interessa-me sobretudo a dimensão psicológica, a sua presença na interação dos personagens e na forma como eles chegam a certas situações. Acontece algo terrível, e interrogamo-nos sobre como é que pessoas normais chegaram ao ponto em que se comportam de forma extraordinária.
Uma das protagonistas, Rachel, é alcoólica, depressiva, solitária. Evita descrevê-la como vítima. Quer assustar o leitor com o medo do «poderia acontecer-me a mim»?
Sim. Rachel tinha uma vida normal: era feliz, tinha um parceiro, um trabalho. O que é interessante e assustador é ver quão rapidamente a vida fica virada do avesso. Basta que algumas coisas mudem, como aconteceu com Rachel e a dependência do álcool. Isso c0nfronta o leitor: «Podia ser eu.» A maioria das descrições de personagens com problemas de dependência, tanto nos livros como na televisão, são um cliché, sem profundidade. Rachel é uma alcoólica funcional. Eu queria mostrar o quão terrível esta realidade é, o que nos faz à consciência e ao corpo, como nos torna fáceis de manipular. É um poço sem fundo.
Protagonistas femininas complexas, complicadas, ambíguas, não são tão frequentes assim na literatura. De onde vem o seu interesse por estas figuras?
Todos nos interessamos por personagens complicados, são vibrantes. Não me interessa particularmente ler sobre pessoas que são ou boas ou más… Todos temos defeitos, problemas, segredos, e a maneira como lidamos com isso é que nos torna interessantes. É sobre eles que quero ler, é sobre eles que escrevo.
Crescemos com esta visão cristã: Eva expulsa do paraíso por causa dos seus defeitos. Rachel, Megan, Anna, são Evas caídas em desgraça? O paraíso, por estes dias, é o amor conjugal e a casa bonita?
Essa é uma perspetiva interessante. Rachel sente-se expulsa da sua «vida perfeita». Mas, outra questão interessante: tanto Rachel como Megan e Anna sabem que essa vida não era perfeita. Procurar a perfeição por intermédio de outra pessoa, como os maridos, não é a melhor via. Nunca devemos confiar, nem ficar dependentes de outro. Para encontrar a felicidade, é importante procurá-la dentro de nós.
Essa afirmação feminista é uma das mensagens do livro?
Sim. Algumas pessoas disseram que este não era um romance feminista, mas eu penso que é. Eu própria sou feminista. Ser autossuficiente e não ser emocionalmente dependente de outra pessoa é essencial.
Numa certa cultura, as pressões sociais sobre as mulheres assentam na obrigatoriedade de serem jovens e bonitas para sempre. A Rapariga no Comboio, um thriller, denuncia pressões maiores: maternidade, infertilidade, violência doméstica…
Começo sempre um livro pelas personagens. Ao explorar quem elas são, esses temas manifestam-se. Aqui, perguntei-me: «Porque é que Rachel é assim?» Essa interrogação conduziu-me à perceção das pressões a que as mulheres, numa dada altura das suas vidas, são sujeitas. Aos 30 anos, a maternidade torna-se uma questão inevitável. Dizem-nos constantemente: «Não esperes, pode ser demasiado tarde…» Ter ou não ter filhos, ou quando os ter, torna-se um tema público quando, de fato, é uma decisão muito privada. E devemos falar sobre estes temas.
Este livro deve algo ao novo realismo, ou pessimismo social, que os thrillers escandinavos trouxeram ao género?
Não li muitos thrillers escandinavos, mas gostei muito das séries de televisão. E gostaria de ser considerada nessa tradição realista, porque é o que eu quero escrever: criar livros sobre coisas que acontecem às pessoas. Consigo perceber porque é que os leitores acham entusiasmantes, e viciantes, as histórias sobre serial killers e espiões. Mas a maioria de nós não experiencia o crime ou o perigo dessa forma: é tudo muito mais mundano e normal.
Quando decidiu escrever o livro, estava desempregada. Escrever foi um exorcismo contra o seu próprio medo?
Não sei… Escrevi o livro sob uma grande pressão. Estava infeliz, separada, sentia-me insegura… Muitas dessas emoções e circunstâncias refletiram-se na escrita. É um romance sombrio, com acontecimentos deprimentes. Mas é assim que se escreve, não é? Muito do que vivemos acaba na página.
Como é que vê a questão do próprio voyeurismo do leitor?
Uma das coisas que os leitores gostam em A Rapariga no Comboio é precisamente a universalidade do impulso voyeurístico: todos olhamos para dentro das casas alheias e imaginamos como são as vidas dos outros. Esse tipo de curiosidade parecia fora de moda. Agora, desenvolve-se de novas maneiras: todos espreitamos a página de Facebook de um ex-namorado, por exemplo.
Sente-se confortável na gaveta do chamado «domestic noir»?
Sim, mas… [Pausa] Nunca tenho a certeza sobre o que é que esses rótulos realmente significam. Falámos sobre a tradição realista nórdica: sinto-me feliz por ser arrumada aí. Mas, por vezes, há uma tendência para rotular as mulheres escritoras, o que não acontece com a mesma intensidade com os autores masculinos. Esse rótulo não é ofensivo, há semelhanças entre os livros e as autoras a quem tem sido aplicado o rótulo de «domestic noir»: centram-se até certo ponto em relações domésticas. Mas as relações domésticas é quase tudo o que é a nossa vida.
O «domestic noir» demonstra que nunca conhecemos verdadeiramente ninguém, nem mesmo maridos ou esposas…
O que é interessante é que estamos a escrever sobre a vida de pessoas que são como nós: não são extraordinárias, não têm um emprego perigoso ou estão envolvidos em trabalho policial. São normais. E o que acontece quando algo corre mal?
Regressemos ao universo hitchcockiano: casas e jardins e casamentos perfeitos, mulheres de vestidos cor de rosa… Da janela do comboio, a vida é uma sucessão de frames. Tendo treinado a escrita no jornalismo, preocupou-a a questão dos efeitos estilísticos?
Escrevo num estilo bastante económico e jornalístico. Tento sempre cortar palavras, não coloco muitos adjetivos, porque é isso que aprendi no jornalismo. Depois de 15 anos a funcionar dessa forma, essa economia torna-se parte do estilo. Não sou uma escritora particularmente lírica. Não vou atrair todo o tipo de eleitores. E esta é uma noção bastante realista de escrever.