Quem o procurou, sempre o encontrou. Isto é, quem não esqueceu Vergílio Ferreira (1916-1996) sempre teve acesso aos escritos deste escritor português, nascido em Melo, concelho de Gouveia, arrumados nas livrarias, nas bibliotecas, nas estantes de bons leitores. Uma amostra estatística, esse desporto contemporâneo dos cientistas sociais e dos media, provaria certamente que há sempre alguém no meio de cem distraídos que evocaria a história de Manhã Submersa (1954), o impacto profundo causado por Para Sempre (1983) ou por Em Nome da Terra (1990), que se recorda de ter lido Aparição (1959) nos tempos de escola (quando o romance ainda fazia parte dos programas curriculares…) ou que espreitou Conta-Corrente (1981-1994), a produção diarística que Vergílio iniciou apenas aos 53 anos. A esta probabilidade, também ajudaria o facto de Vergílio Ferreira ter sido um escritor prolífico, acumulando um precioso espólio de 19 romances, um punhado de livros de contos, uma dúzia de escritos ensaísticos, os ditos diários e os nove volumes dos diários, além de um ou outro volume avulso, como foi o caso de Pensar (1992) e o póstumo Escrever (2001). Dito de outra maneira, deixou provas que demonstram como o autor construiu uma obra literária e ensaística fundamental no panorama do século XX em Portugal – primeiro marcada pelo neorealismo e posteriormente influenciada pelos existencialistas franceses como André Malraux e Jean-Paul Sartre, cultivadora de uma lucidez sem Deus nem pátria. Prémio Camões 1992, o autor de “romances de ideias”, como dizia o próprio, teve sempre presente uma reflexão filosófica sobre esta coisa da condição humana, tão frágil, tão só.
E, no entanto, Vergílio Ferreira parece, por vezes, suspenso nessa bruma dos que são evocados nas datas importantes, mas esquecidos no quotidiano. Esse apagamento vai ser desafiado: até final de 2016, ano em que se assinalam os 100 anos do seu nascimento, a editora Quetzal vai disponibilizar todos os títulos vergilianos. A começar por estes três, já disponíveis em banca: O Caminho Fica Longe (1943), romance de estreia há muito desaparecido de circulação, e que agora inclui as alterações feitas pelo autor sobre a primeira edição apreendida pela censura; Aparição (1959), obra emblemática escrita na primeira pessoa, em torno de um alter ego, o professor Alberto Soares, que vive um ano trágico em Évora; e Rápida, A Sombra (1974), romance também esgotado, em que o narrador arenga nos epígonos de todos os poderes, no rescaldo de um aparente abandono da sua mulher (que voltará, para surpresa do leitor).
A versão em papel de O Caminho Fica Longe, com um prefácio escrito por Hélder Godinho, será acompanhada pela publicação de uma edição crítica e genética da professora da Universidade Nova de Lisboa e investigadora dos manuscritos originais do autor, Ana Isabel Turíbio, mas em formato digital.
Também já chegado às livrarias, um livro que permite uma diferente revisitação diferente deste universo: 1000 Frases de Vergílio Ferreira, ou “pequenos furtos isolados”, como os carateriza o organizador Luís Naves. Trata-se de uma ampla coleção de citações, organizadas em torno de dezasseis temáticas presentes quer na ficção quer na prosa ensaística, como o amor, a passagem do tempo, Deus, a morte.
As reedições seguintes contemplam obras póstumas, editadas pela primeira vez em 2011: a novela Curva de Uma Vida (1938), escrita quando Vergílio Ferreira tinha apenas 22 anos, e Promessa (1947), romance que narra o confronto entre um intelectual passivo e um militante idealista que quer mudar o mundo. Em formato digital, serão igualmente disponibilizados os cinco volumes de Espaço Invisível , em que Vergílio deixa opiniões fortes sobre a escrita e a arte, e ainda toda a produção diarística de Conta-Corrente.
Em finais de Março, chegam mais dois volumes: Cântico Final (1960), esgotado há muito tempo, é resgatado para novos e velhos leitores. Neste romance de tensão entre religião e arte, o seu protagonista, Mário, um professor de desenho, doente, que regressa à sua aldeia natal, divide-se entre o restauro de uma capela e a procura de um sentido de vida, e as memórias do tempo de descoberta artística, quando conheceu a bailarina Elsa. “Mário regressava à sua obsessão, à solidão do homem, à procura alucinada de um valor que a povoasse”, lê-se. Junta-se-lhe, apenas em formato digital, o primeiro ensaio escrito por Vergílio Ferreira: Sobre o Humorismo de Eça de Queirós (1943).
No final do ano, quando a edição genética estiver pronta, a editora conta ainda reeditar Onde Tudo Foi Morrendo (1942), segundo romance do autor, cujas primeiras linhas rezam assim: “Pela janela aberta vem a poesia da dispersão. Tudo se calou naquela hora sombria. E longa. As árvores quedaram-se, transidas de frio, de braços nus erguidos ao céu.” Tendo o Alentejo como cenário, o livro, parte de uma trio de pendor neorealista, foi então apreendido pela policia. E Vergílio Ferreira confessaria, em Um Escritor Apresenta-se, que, na segunda edição, o mutilou “sem dó”. “Assumir conscientemente a nossa personalidade é o termo habitual do ciclo de uma evolução.”
A par da reedição completa da obra de Vergílio Ferreira, o programa das comemorações é também abrangente, e contempla o ciclo Vergílio Ferreira e Mário Dionísio: Literatura, Pensamento e Arte , com coordenação de Maria Alzira Seixo (a ter lugar no Centro Cultural de Belém, em Fevereiro) e a realização de dois colóquios internacionais dedicados à sua figura e obra: o primeiro, organizado pela Universidade de Évora (29 de fevereiro a 2 de Março); o segundo, da responsabilidade da Faculdade de Letras do Porto e Câmara de Gouveia (entre 18 e 21 de maio). Em Gouveia, terra natal de Vergílio, haverá atividades diversas nos próximos três dias (28, 29 e 30 de Janeiro), que contam com a presença do Ministro da cultura, João Soares (no dia 29), e de outras individualidades que conheceram o escritor português. A saber, a inauguração da exposição Vergílio Ferreira: os caminhos da escrita ou o fascínio da arte no Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta (de 29 de Janeiro até 26 de Março); a reposição do busto de Vergílio Ferreira na Praça de S. Pedro, o colóquio Vergílio Ferreira: Evocação, Evocações, a ter lugar na Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira (30 de janeiro); a apresentação, no Teatro cine de Gouveia, do monólogo Em Memória ou a Vida Inteira dentro de Mim, interpretado por Pompeu José e baseado no romance Até ao Fim. Há ainda o lançamento de um selo comemorativo, conversas, visitas guiadas… Todo o Vergílio Ferreira recordado, mas, mais importante, todo um Vergílio Ferreira à espera de ser lido.