Um caixão no centro do palco do Rivoli. Dentro dele, Paulo Cunha e Silva, o homem que devolveu aquele teatro à cidade. Como cenário de fundo, a projeção fotográfica dele mesmo, em vida, numa varanda da câmara, a deixar a vista escorrer até ao fundo da Avenida dos Aliados, o coração da baixa. E ele a olhar-nos a todos, no seu jeito desafiador, bem de frente para nós. Depois, o seu sorriso, cheio, largo, a puxar-nos para o tanto que a vida tem para dar e que ele absorveu com tanta intensidade e entusiasmo.
Os lugares da plateia todos ocupados, os corredores também. Gente sentada em silêncio numa sala escura. Gente a observar quem subia ao palco para presenciar a morte. A morte, deitada. A vida, de pé. E os simples mortais a digerirem esta coisa de estar vivo, sabendo que vão, um dia, morrer.
E se não fosse ele, Paulo Cunha e Silva, 53 anos, a estar no caixão? E se ele estivesse ali sentado no meio de nós, a presenciar a morte de um outro? Que teorias, filósofos, escritores iria ele citar para desconstruir os rituais da morte e desdramatizar o horror da nossa mortalidade? E se tudo fosse ficção, a ficção em palco da tragédia real que é o fim da nossa existência?
Mas não. Era ele e a sua morte. Que chegou sem aviso prévio depois de ele ter inaugurado o Grande Plano, que nos vai mostrar a obra completa de Manuel Oliveira. E depois de ter ido a um velório, do pai de um seu colega na
vereação. Sim, assistir a um velório foi o seu ultimo ato público. E a morte foi a sua última performance.
Ontem, quinta-feira, foram centenas e centenas as pessoas que passaram pelo Rivoli. Ouviram Pedro Abrunhosa cantar e Álvaro Teixeira Lopes a tocar António Pinho Vargas no piano. Ouviram ainda um poema. Depois, marcharam em cortejo até à Igreja da Lapa, atrás de um carro funerário que ia colhendo aplausos. O Bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos, estava lá para celebrar a missa. “Dificilmente alguém morre por um valor bom, um valor justo”, disse, apaziguando tanta incapacidade de aceitar o que não se compreende. “O Professor Doutor Paulo Cunha e Silva devolveu a cultura à cidade” e também “o carácter, a convicção e o desígnio de missão para todos nós portuenses”, frisou, apontando o seu “dinamismo incansável”.
Sim, estavam lá muitos portuenses. Mas não só. Também estava António Costa, Guta Moura Guedes, Pedro Mexia, Fernanda Câncio… o ministro da Defesa, a ministra da Cultura.
A cremação foi restrita à família. Da carne se fez cinza. Que da cultura não se faça pó.