Tati é muitas coisas para muita gente, e é também um cromo gráfico: uma criatura pernalta, entrincheirada numa gabardina, chapéu posto e cachimbo esticado, movendo-se numa coreografia toda ela feita de ângulos e pontas. Tati camuflado como Hulot: jovial, curioso, perplexo perante um mundo em mudança, os tiques da burguesia consumista, os absurdos tecnológicos, a desumanização da cidade. Não surpreende que a figura tenha inspirado os seis ilustradores portugueses, convidados pela Leopardo Filmes para criarem novos cartazes para os seis filmes do comediante francês, agora apresentados em versões digitalmente restauradas – num ciclo que estreou na quinta-feira, 20, no Espaço Nimas. E é também aí que vai estar a exposição com as ilustrações de André Letria (Trafic – Sim, Sr.Hulot), João Fazenda (Play Time), Madalena Matoso (Parade), Marta Monteiro (As Férias do Sr. Hulot), Catarina Sobral (O Meu Tio) e Sara-a-Dias (Há Festa na Aldeia).
“Play Time“, percebeu Madalena Matoso quando lhe lançaram o desafio de recriar um cartaz de cinema para Tati. Afinal, era Parade, “um filme que eu nunca tinha visto”, confessa a ilustradora. Partiu à descoberta, e encontrou um filme “muito diferente” dos que já conhecia, sem a muleta dos cenários cativantes ou de um guião com princípio e fim. “Sabendo a história de Jacques Tati, este filme sobre o circo, realizado como se fosse um espetáculo de circo, com o público feito de papelão, quando ele próprio estava desiludido com o seu público, é triste e muito bonito”, diz. Mas Madalena criou a sua ilustração de cores vivas, com silhuetas de animais e acessórios circenses, evocando uma sensação de leveza, imitando o próprio Tati: “Um faz de conta de que tudo era alegre.”
No cartaz imaginado por João Fazenda, o chapéu de chuva de Hulot ganha automóveis e aviões pendurados. O ilustrador tinha esta ideia: “Utilizar a ideia do chapéu e transformá-lo quase num brinquedo, dar o lado lúdico da personagem.” João escolheu o filme que o marcou mais, e que viu num anterior ciclo de cinema dedicado ao comediante francês: Play Time. “Continuo a achá-lo um filme muito bonito, forte, hilariante, que aborda questões também recorrentes no meu trabalho: a impessoalidade da cidade, o tratamento do espaço público como uma coreografia, os quadros enormes em que está muita coisa a acontecer, a mímica em torno dos objetos e as suas mudanças de perspetiva…”, descreve.
Grande figura
Está lá o mesmo Hulot de que Jacques Tati nunca conseguiu despir a gabardine e os maneirismos quando quis fazer outras coisas. E a personagem habita a maioria dos cartazes criados pelos portugueses. Mas há exceções à regra gráfica: Sara-a-Dias retratou o carteiro François no centroda sua ilustração, refletindo a personagem ingénua e trapalhona, impressionada pelas modernices americanas, que cria confusões na sua pequena aldeia entretida na organização da festa local noa película Há Festa na Aldeia. E André Letria criou um cartaz de forte impato visual, sem cachimbo à vista: “A figura não aparece porque não achei necessária para transmitir a essência do filme. Num dos cartazes originais também não aparecem as personagens, o que me deixou à vontade para seguir este caminho. Um cartaz de cinema (ou a capa de um livro) deve ser contido naquilo que revela da história”, defende este ilustrador. A sua escolha recaíu em Trafic – Sim, Sr. Hulot, a história de uma viagem a uma feira de automóveis, em que Sr. Hulot quer apresentar uma roulotte com acessórios, digamos, originais. No cartaz branco, os carros lembram formigas agitadas: “Vi o filme como uma paródia à relação que as pessoas tinham com os carros e a estrada, e quis explorar a ideia de caos, que até pode originar uma experiência lúdica: podemos sempre tentar identificar as formas dos carros do filme naqueles que desenhei”, explica André. Há ainda outra narrativa possível, que lembra as próprias películas de Tati: “Os carros vão-se amontoando do lado direito da imagem, à medida que o lado esquerdo vai sendo ocupado pela amálgama de outros veículos e condutores infelizes. Onde estão os protagonistas? No meio da confusão, mais à frente, não terão entrado?”
Quem se lembre dos cartazes originais, encontrará pontos de contato – nem que seja a figura esguia. “Esse Hulot deambulante é um personagem fácil. Mas a intenção foi sempre essa: a figura é tão iconográfica que a encontramos, por exemplo, na banda desenhada”, defende João Fazenda. Ou em livros, como é o caso de O Meu Avô, volume infantil criado por Catarina Sobral. A ilustradora assumiu este jogo de auto-referenciação no seu próprio cartaz, dedicado ao clássico O Meu Tio – o primeiro filme de Tati que Catarina viu, estava já na universidade, aluna entretida com um projeto de mobiliário para a casa do futuro. “Temos sempre autores de que gostamos mais, e com quem nos identificamos. Tati é pouco intrusivo para o espetador: encontramos muitas camadas nos seus filmes – tal como eu faço nos meus livros”, defende. “Ele tem uma ironia particular – não é uma ironia reacionária, não é um sarcasmo. É como se Tati dissesse: “Isto parece-me um pouco ridículo, mas se calhar sou eu”. E eu sou uma rapariga do campo e, se calhar, identifico-me mais com esse deslumbramento e estranheza e crítica subtil, muito ingénua”, descreve Catarina Sobral. A ilustradora reconhece pontos comuns nos seus parceiros nesta aventura: “O personagem de Tati é muito iconográfico, apetecível, com aquela postura toda inclinada, as linhas retas… [Os ilustradores escolhidos] temos uma linguagem modernista, de que fazem parte as referências aos anos 1950 e 60”. Admiradora do cartaz original, seguiu, diz, o mesmo tipo de linguagem: os sombreados, os recortados com aquele fundo de cor…
A herança de Tati
A importância da imagem não se resume à sombra Hulotiana. Os seus filmes são prodígios de planos e imagens, que não passam despercebidos aos ilustradores. “Tati faz um humor muito visual, recorrendo à imagem para contar, e fazer avançar, a história”, sublinha Fazenda. Catarina Sobral encontra esse cuidado “na arquitetura, nos planos, o design dos objetos, o som – que é quase só ruído.”. E há, é claro, as metáforas visuais. “Nas cenas finais de Play Time, a imagem da rotunda que é um carrossel, por exemplo. É todo um jogo de sentidos e de silêncios, que também está presente na ilustração”, defende João Fazenda.
O ciclo de cinema que estará no Espaço Nimas e no Teatro de Campo alegre (aqui, a partir de 1 de setembro) é um reencontro com um universo do comediante a quem poucos sonegam a designação de génio. Que herança é a sua para a contemporaneidade? “Tati é um humorista, mas é também outras coisas: é um criador, um realizador de cinema que tinha coisas para contar, e que as contava daquela forma. E ele tem uma forma olhar para o mundo, terna, que mistura ironia com uma visão curiosa, lúdica. Algo que ainda faz falta”, lembra João Fazenda. Madalena Matoso corrobora: “Espreitei os filmes e não estão nada datados. Hoje em dia, aquele fanatismo pelas máquinas e pelos gadgets, que ele espelha nos filmes, continua muito atual. Ele olhava com uma visão de fora, e que faz sentido hoje. A imagem dele é só uma forma de entrar no universo cómico, mas também tem a ver com o rimo-nos de nós próprios.” André Letria tem uma opinião lapidar: “Tudo o que é bom permanece moderno, relevante, quanto mais não seja pela capacidade que tem de nos divertir.” E o ilustrador acrescenta esta reflexão: “O que me agrada muito nesta figura é a crítica social à mudança, a dificuldade de absorver as mudanças do tempo. Como trataria hoje Tati o tema das redes sociais e a velocidade – e superficialidade – na comunicação entre as pessoas?”
Para quem esqueça as dimensões mais complexas da obra de Jacques Tati, como a crítica à sociedade de consumo, à proliferação das tecnologias, à cidade como um deserto de vidro e aço, aos absurdos da burguesia deslumbrada, há sempre o cromo gráfico – o humor pouco adepto da gargalhada, mas tão reconhecível e epitomizado na figura pernalta. A palavra a Madalena Matoso: “O cromo gráfico fica porque é o mais forte. Mas espero que não seja como aqueles que usam t-shirts dos Ramones e que nunca ouviram a música deles: espero que as pessoas vão ver os filmes de Tati.”