Há 20 anos, Camané lançava o disco Uma Noite de Fados e abria, ao lado de José Mário Branco como produtor e diretor musical, um novo capítulo na história contemporânea do fado. O texto da VISÃO que dava conta dessa estreia numa grande editora, a EMI (“já tinha gravado discos antes, mas a carreira mais a sério começou aí”, explicará o fadista), tinha a mesma assinatura do que este. O jornalista quase estreante encontrou, então, um jovem tímido, absolutamente desconfortável na posição de entrevistado, com as mãos a tremer, muitos monossílabos e frases penduradas nas respostas. “Eu tenho sempre estado um bocado sozinho; a pouco e pouco fui criando um espaço meu”, dizia, anunciando o futuro todo. Essa timidez, diz, manteve-se, a lado de uma certa insegurança, mas aprendeu a lidar melhor com ela(s). Camané é, hoje, cinco discos e centenas de concertos depois, um excelente entrevistado. O tempo faz milagres?
Foi uma decisão prévia fazer um disco sobre a questão do tempo?
Não, foi uma coincidência. A Manuela [de Freitas] e o José Mário [Branco], como sempre, deram-me uma série de fados e poemas para eu fazer uma seleção dos que queria cantar. Intuitivamente eu sinto logo a musicalidade das palavras que leio. Há poetas, como o David Mourão-Ferreira, que são ultramusicais. E um dos primeiros poemas que escolhi para este disco foi o Infinito Presente, precisamente do David Mourão-Ferreira, que até acabou por dar nome ao disco. Depois, com a escolha d’Os Dois Horizontes, de Machado de Assis, e de um poema incrível do século XVII mas muito atual, o Conta e Tempo, de Frei António Chagas, tudo foi, aos poucos, ganhando essa dimensão… E mesmo algumas das letras novas da Manuela de Freitas, como o Lume, acabam por ter a ver com a passagem do tempo. Fomos fazendo um disco sobre o tempo, foi acontecendo. E identifico-me muito com esse “infinito presente” do David Mourão-Ferreira: pensamos muito no futuro e no passado mas a verdade é que estamos sempre no presente. A melhor maneira de viver a vida é saber viver o presente.
Faz pensar numa certa ideia de juventude, até muito rock’n’roll, de valorização do presente, o “live fast…”
Por acaso não acho… Para mim, agora, esse viver o presente tem mais a ver com serenidade e maturidade.
E o há “no future” dos punks…
Sim, mas essa abordagem dos punks não tem nada a ver com uma ideia de presente que ouvimos de pessoas mais velhas, com muita experiência e sabedoria… Agora associo mais o presente com não viver sobressaltado, não querer resolver os problemas todos num só dia… Na ideologia punk viver o presente tem outra interpretação; já experimentei e não é bem isso, não é bem isso… Já quis viver tudo no mesmo dia, mas isso não é viver o presente. Hoje, para mim, é importante fazer aquilo que é possível naquele dia, e fazê-lo da melhor maneira. Um dia de cada vez. Pelo menos tento, nem sempre é fácil. Aliás, por ser difícil é que tudo isto faz sentido, por ser difícil é que este disco existe desta maneira. Se estivesse sempre tudo muito bem nem era preciso cantar.
Pensei que o tema do tempo podia ter a ver com a necessidade de fazer balanços, 20 anos depois do disco Uma Noite de Fados…
Não. Nunca penso em datas, nem faço muitos planos. Mas em 2016 já vou fazer 50 anos, é uma coisa impressionante… Não me sinto nada com essa idade.
Há uma sinceridade tão grande na sua forma de cantar que cada disco reflete, necessariamente, uma fase da vida. Como estava o seu presente antes de partir para este Infinito Presente?
Nos últimos anos tenho trabalhado imenso, tenho feito muitos concertos em todo mundo, incluindo sítios onde nunca tinha ido antes, como a Argélia ou a Turquia. Tem sido uma fase muito boa da minha carreira, incluindo colaborações com pessoas de que gosto muito. Às vezes bloqueio algumas datas e tiro umas férias, mas têm sido anos muito intensos, com poucas pausas. Acho que estou a viver uma fase porreira, em geral, da minha vida e isso reflete-se em tudo.
O tal presente mais sereno, é isso?
Não… Sereno nunca é muito, quem me dera. Digamos que é uma fase de equilíbrio dentro do meu desequilíbrio. Continuo a ter muitas inseguranças e a ser uma pessoa tímida mas acho que aprendi a lidar com isso da melhor maneira possível para conseguir crescer como artista. Não faz sentido nenhum subir para o palco a pensar sobretudo em mim, isso prejudica-me a mim e ao meu trabalho. Normalmente sou tão insatisfeito e autocrítico que para me aproximar o mais possível do que eu acho que é cantar bem, dos intérpretes que eu mais admiro, tenho que subir para o palco e sair de mim, ter essa humildade. Só dá para ir por dentro do poema, entregar as palavras às pessoas com o registo emocional certo, se conseguires sair de ti, das tuas paranoias, dos teus fantasmas, defeitos de caráter… Se não fizeres isso, corres o risco de te servir das canções em vez de servir as canções. Normalmente ia para o palco e só me libertava a meio do concerto. Agora, às vezes, consigo estar com as pessoas logo de início, mal piso o palco. Mas, às vezes, ainda tenho inseguranças que me prendem… Cantar é interiorizar as coisas e depois não pensarmos em nada, não pensarmos no que estamos a fazer. Não pensarmos em nós. Estar ali para entregar as palavras…
Uma das mais marcantes presenças do fator tempo neste disco é a do seu bisavô, José Júlio Paiva, aqui representado em dois fados. O que sabe sobre ele? Foi uma influência forte para si saber que tinha um bisavô fadista?
Deve ter sido importante porque fez o gosto do fado passar de geração em geração na minha família. Sempre ouvi falar dele mas até há pouco tempo nunca o tinha ouvido cantar. Participei num daqueles programas de televisão em que investigam o nosso passado, a nossa história… Aí falei do nome do meu bisavô e disse que sabia da existência de uns discos gravados por ele, nos anos 20. O José Moças, que tem uma enorme coleção de discos antigos, tinha encontrado esse disco nos EUA, mas não fazia ideia que aquele José Júlio Paiva era meu bisavô… E pude ouvir pela primeira vez a voz dele. Tem uma forma de cantar muito… datada, claro, nada a ver com a minha.
Mas a voz pareceu-lhe familiar, com um timbre parecido ao seu?
Talvez um bocadinho. Mas a gravação é tão antiga, não se percebe assim tão bem… Uma das músicas que ele fez, o Fado Espanhol, tem uma influência enorme do fado de Coimbra porque ele era da Murtosa, mais tarde é que veio para Lisboa. Para cantar esse fado no meu disco escolhi um poema lindíssimo do Fernando Pessoa, Aqui Está-se Sossegado. Para outro fado dele [Fado Complementar] a Manuela de Freitas sugeriu o tal poema Conta e Tempo, do Frei António Chagas. Sabia da existência desse fado do meu bisavô, há uns livros que falam dele, mas nunca o tinha ouvido.
Este disco marca também os 20 anos de uma parceria única no fado contemporâneo: Camané e José Mário Branco como produtor e diretor musical. Como é que essa presença tem definido a sua identidade?
É complicado verbalizar. É, antes de mais, a sonoridade dos meus discos, a musicalidade que ele transporta. É, sobretudo, um caminho, um caminho musical bem definido, que foi algo que eu sempre desejei. Com o José Mário Branco sei que não há espaço para a ligeireza, a música ligeira, não há “azeite”…
Sente que corria o risco de se perder nalgumas curvas se o José Mário Branco não estivesse lá?
Sim… E há uma grande cumplicidade, não só com o Zé Mário mas também com a Manuela de Freitas, que me têm ajudado a definir-me como intérprete. Há muitas coisas às quais eu chego intuitivamente, mas há outras em que isso não acontece, e eles estão lá.
Em termos musicais?
Em termos interpretativos, mesmo. Aquilo que eles já me ensinaram não tem preço. É uma sorte. Às vezes acontece uma coisa engraçada: parece que eles estão a dirigir-me como dirigem um ator. No fundo, estão a ajudar-me a focar-me. E é uma ajuda dos diabos. Posso ter tendência para uma exibiçãozinha, uma piscadela de olho, uma voltinha, e eles não deixam – dizem “está descansado pá, que isso fica bem assim.” Confio neles. E claro que eles também confiam em mim, também consigo convencê-los de muita coisa. Muitas vezes também sou eu que tenho de convencer o José Mário de que os temas que ele fez são bons, que estão bem… Ele tem as suas inseguranças também. Temos percursos muito diferentes e sinto que ele me respeita a mim e eu a ele. Acho que sou a única pessoa com quem o José Mário trabalhou em que a política não entra. É uma colaboração muito mais artística…
Mas certamente que também já cresceu uma relação pessoal próxima…
Sim, mas não temos uma relação do tipo de irmos jantar juntos. Podem passar anos sem nos vermos. Somos amigos, falamos ao telefone… Gosto imenso do José Mário, ele gosta imenso de mim…
Trata-o por tu?
Não, eu trato-o por você, por Zé Mário, mas ele trata-me por tu. É como um pai, ou assim. Também nunca tratei o meu pai por tu.
Perguntando de uma forma um pouco provocatória: pode-se dizer que o Camané intérprete que todos conhecemos é, de alguma forma, uma criação do José Mário Branco?
Não, isso já não pode ser… Claro que ele me ensinou coisas que eu podia utilizar na minha forma de cantar, mas essa forma de cantar começou muito antes… Só o conheci quando eu tinha 27 anos e já cantava desde os dez. Havia um enorme percurso, muito saber acumulado. E foi isso, aliás, que o José Mário Branco viu em mim. Ele antes tinha, como ele próprio admite, uma ideia do fado um bocado errada, apaixonou-se pelo fado por causa da Manuela de Freitas. Hoje sabe de fado como ninguém, gosta dos fadistas, do fado… Às vezes há uns puristas que acham que sabem muito de fado mas… O José Mário sabe mais do que a maior parte destas pessoas todas. Conhece os fados tradicionais todos, tem ideias fantásticas para os trabalhar sem os desvirtuar e, claro, tem noção de que compõe outras canções que não são fado… Mas há alguns fados que ele fez, como o Fado das Palavras ou o Fado da Tristeza, que já fazem parte do fado tradicional, ainda recentemente saíram num livro do António Parreira.
E há o tal “caminho bem definido” que é uma criação só vossa…
Sim, há uma identidade nos meus discos desde o Uma Noite de Fados, de 1995 e era mesmo isso que eu queria conseguir. Uma coisa que acontecia na geração antes da minha, e a que eu assistia muito entre os meus dez e 15 anos, era que, salvo raras exceções, as introduções das guitarras nos discos eram sempre iguais, só se percebia que era de um determinado fadista quando entrava a voz. Os fados tradicionais que tocavam eram sempre os mesmos e as introduções eram sempre iguais. Procurámos, conscientemente, alterar um bocadinho isso, através da sonoridade, da forma de acompanhamento. Os músicos que me têm acompanhado nos últimos anos – o José Manuel Neto, o Carlos Manuel Proença e o Carlos Bica – têm uma importância enorme no meu trabalho, para lá dos contributos do Zé Mário. São grandes músicos e há muita coisa que parte deles. ?O fado dá para tudo, dá para encaixar tudo, é… uma coisa impressionante. Em muitas coisas, o fado é como o jazz. O jazz, e os blues, também têm uma base, os seus standards, mas a partir daí permitem a liberdade toda… ?É muito assim que eu vejo o fado.
Nestes 20 anos de discos com o José Mário Branco nunca discordam sem solução, sem chegarem a um consenso?
Houve muita coisa que fiz por insistência minha nos meus discos – “O Zé Mário não concorda mas eu vou fazer…” – e também já aconteceu um pouco o contrário, eu deixar-me convencer… Há muita negociação, sempre. Claro que nunca canto nada que eu não queira cantar. Às vezes há discussões que têm a ver com pormenores de sonoridade, de interpretação. Nem sempre é fácil…
Porquê? São muito teimosos?
São muito teimosos, são… [risos]. E a Manuela ainda é pior do que o Zé Mário, está sempre a dizer que não percebe nada de música mas muitas vezes consegue convencer o Zé Mário que é um músico excecional! Neste disco eles gostaram de tudo e eu gostei de tudo, correu bem.
No Ai Miriam há aquela parte falada que parece mais rap do que fado… Sentiu-se desconfortável?
Ainda pensei pedir a alguém do hip-hop para fazer essa parte, dou-me bem com esse pessoal todo, pensei no Carlão… Depois decidi tentar eu e agora já não me faz confusão. Ao vivo ainda vou fazer melhor, com o gesto e tudo [imita o gesto típico dos rappers com o braço].
Não se imagina um dia a escrever uma letra para cantar?
Não. Nunca escrevi nem nunca vou escrever. Têm que ser tão boas… E é outro registo, é outra coisa. Mas sei perceber quando uma coisa funciona ou não, às vezes até peço à Manuela para me mudar uma palavra ou outra; ela própria vai mudando muito as suas letras conforme me vai ouvindo cantá-las…
Regressando à questão do tempo: ainda é muito visto como representante de uma “nova geração” do fado, apesar de já haver gente muito mais nova a cantar, apesar de estar quase nos 50 anos… Esse boom veio para ficar, teve continuidade, há novos públicos e fadistas de qualidade?
De vez em quando aparecem alguns miúdos com bom gosto e com… Cantar fado é ir buscar o que está lá atrás e trazê-lo para a frente. Quando oiço o José Manuel Neto a tocar, ou o Ricardo Rocha, encontro modernidade mas estou a ouvir ali também as guitarras de grandes nomes do passado, como o Jaime Santos, o Carvalhinho, o José Nunes… Há outros que tocam muito bem, são virtuosos – nem tocam muito bem, fazem uns malabarismos… – mas não ouves ali nada do que está lá para trás, e até se pode dizer que têm o gosto muito deturpado. São raros os bons guitarristas, mas às vezes encontro por aí uns menos virtuosos mas que têm esse sabor a fado. Com os cantores é a mesma coisa…
E a renovação do público, continua a acontecer?
Sim, eu sinto que tenho um público cada vez mais jovem. Para mim, sair à noite às vezes até é complicado… Ainda outro dia no Lux, tudo o que era puto vinha ter comigo, “Camané, vamos tirar uma fotografia!” Fico supercontente com isso. Não comecei com esta geração, comecei muito antes, este boom aconteceu sobretudo depois do ano 2000, depois da morte da Amália… Quando comecei, em miúdo, era gozado na escola, pelos colegas e pelos professores. Mesmo em casa, em Oeiras, às vezes punha o fado a tocar muito baixinho para as pessoas que passavam lá fora, nas escadas do prédio, não ouvirem… Mesmo em 1995 ainda era tudo muito diferente do que é hoje.
Mas essa renovação, a partir de 2000, tornou-se uma coisa sólida, consistente?
Nessa altura houve, sobretudo, muitas mulheres a começarem a cantar, talvez inspiradas pela grande dimensão artística da Amália… Algumas fizeram o caminho aprendendo o que estava para trás, outras não, perderam esse caminho… Hoje, não tenho dúvidas de que há vários miúdos a cantarem fado bem, muito bem, com boas referências. O que me irrita é quando começam a fazer umas cançõezinhas ligeiras, disfarçadas de fado, com guitarra e viola, uns refrões muito pirosos, uma coisa meio melosa… Eh pá, isso, para mim é que estraga tudo. Mas, sim, também vejo putos a cantar fado como quem canta rock’n’roll, com aquela cena toda… O fado é rock’n’roll! Quando se começa a cantar tem que se ter aquela coisa rasgada do rock’n’roll. A que é que chamamos hoje rock? A algo que vem de trás, porque ouvimos os Beatles, os Stones, aquelas guitarras elétricas… Os miúdos podem vir com essa atitude no fado, e isso é que é pesado, isso é que vale para fazerem o seu caminho. Acho que foi isso que eu fiz. Se querem um sucesso fácil e rápido… fazem escolhas más, e depois o problema é que já não há volta a dar. Para as mulheres é mais fácil, têm mais opções, podem misturar algum folclore e música popular portuguesa e fica bem. ?A Amália, aliás, fez isso…
Porque é que os homens não podem?
É mais difícil; para mim então… não é mesmo a minha cena. A Amália é a melhor cantora do mundo, tenho uma paixão enorme por aquela mulher a cantar. No outro dia estava em casa do [realizador] Bruno de Almeida a altas horas da noite, e estivemos a ouvir Sinatra, Ella Fitzgerald, Callas, Billie Holiday… Depois pusemos um disco da Amália em altos berros e aquilo… é outra coisa! Está lá em cima, não se percebe de onde é que aquilo vem. Experimentem fazer isso.