É sem dúvida muito merecida esta homenagem ao Canal Brasil, que esteve em tempos na grelha da TVCabo em Portugal e de quem muita gente ainda guarda gravações (de filmes e concertos) em VHS. E foi pena o Canal Brasil ter saído das opções de escolha das operadoras de cabo nacionais, já que era o único recurso para os portugueses, conhecerem melhor e tomarem contacto com a cultura, em particular com a música e o cinema brasileiro, do mais clássico ao contemporâneo. Na verdade, o cinema ocupa cerca de 70% da programação deste canal de televisão, por assinaturas lançado em 1998, que continua a ser um grande símbolo da pluralidade e da riqueza cultural do Brasil e com um olhar para a América Latina. Em relação aos filmes de ontem, ‘Os Amigos’, (ver o making of
https://www.youtube.com/watch?v=dpygKfVYVrQ) dirigido por Lina Chamie (‘Tônica Dominante’, 2001), é um filme muito terno e filosófico, que reafirma a relação muito particular da realizadora, desde a sua primeira longa-metragem, com a cidade de São Paulo, além de ser uma ode à amizade e à importância das experiências da infância na vida adulta. O filme acompanha um incessante dia da vida de Théo, um arquiteto paulista (interpretado por Marco Ricca). Desde o despertar até ao dia seguinte, Theo vive as mais curiosas experiências, encontra pessoas, evoca lembranças da infância com as crianças e sente as emoções do ritmo virtiginoso das grandes cidades, como é o caso da caótica São Paulo. A cineasta com formação em música e filosofia volta a inspirar-se na condição humana, misturando o realismo do dia a dia com um certo devaneio metafísico, existencial, poético e mitológico. Aliás como já o tinha feito nas suas longas-metragens anteriores: ‘Tônica Dominante’ (2001) e ‘A Via Láctea’ (2007). ‘Os Amigos’ é por isso também um filme recheado de referências mitológicas: Théo é uma espécie de Ulisses moderno, cuja a sua odisseia é um dia cheio de obstáculos e tarefas que tem de a ultrapassar na grande metrópole que é São Paulo. Além do excelente Marco Ricca, o elenco está cheio de grandes figuras do cinema brasileiro, que não hesitaram pelo menos em fazer um ‘perninha’: Dira Paes, considerada actualmente a melhor atriz do cinema brasileiro e ainda Sandra Corveloni, Alice Braga (‘Elysium’), Caio Blat (‘Xingú’), Fernando Alves Pinto e Maria Manoella. O filme ‘Até que a Sbórnia nos Separe’ (
https://www.youtube.com/watch?v=G-9oiIU_fWY), trouxe para o cinema de animação os hiperbólicos personagens, Kraunus Sang e Maestro Pletskaya, criados pelos músicos e atores porto-alegrenses Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky. Este filme de animação trata-se afinal de uma adaptação de ‘Tangos & Tragédias’, uma peça de teatro-musical, criada em 1987, (famosa pelo menos no Brasil e América Latina), que tem estado em cartaz ao longo de várias décadas. Cerca de 1 milhão de espectadores já assistiram a esta montagem teatral. O filme é dirigido pela dupla Otto Guerra e Ennio Torresan Jr. e a direção de arte da autoria de Pilar Prado e Eloar Guazzelli, este último um dos mais talentosos artistas gráficos e ilustradores brasileiros. A história conta o que aconteceu antes da dupla Kraunus e Pletskaya abandonarem a sua terra natal: a Sbórnia, um território imaginário ligado ao ‘continente brasileiro’ por um istmo, que se descolou e agora vagueia pelos mares do mundo, como uma espécie de ‘Jangada de Pedra’, do romance de José Saramago. No entanto, o isolamento deste estranho país (uma espécie de ‘ditadura feliz’ como as dos países do antigo leste europeu) é quebrado antes de este se descolar e cair o muro, que o protegia das influências externas. O choque cultural desta abertura torna a vida dos sbornianos num caos. Especialmente para Kraunus, um músico muito arraigado às tradições da sua terra: toma diariamente chimarrão (mate) feito com a flor bezuwim. Por outro lado, o acordeonista Pletskaya apaixona-se por uma bela jovem (dobrada pela cantora Fernanda Takai) de um país vizinho, numa espécie de amor impossível e difícil de concretizar pelas diferenças sociais entre ambos. O filme é uma pequena obra prima da animação tradicional e na sua narrativa uma metáfora política das ditaduras e do Brasil contemporâneo. Além de Fernanda Takai, a vocalista da banda Pato Fu, este filme ‘Até que a Sbórnia nos Separe’ conta com várias e importantes vozes como as de Arlete Salles, André Abujamra (compositor da banda sonora original) e dos próprios Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky. Também na jornada de anteontem passou uma das melhores curtas brasileiras da competição. Chama-se ‘Sanã’, do realizador Marcos Pimentel (da longa ‘Sopro’), que filma incessantemente e com um rigor e uma beleza fotográfica estonteante, as diabruras de um estranho jovem albino e autista, nas paisagens e nas belas praias vontosas do Maranhão.
METÁFORAS DO BRASIL ACTUAL

Todos os dias há homenageados em Gramado. Ontem foi o dia do Canal Brasil que recebeu o Troféu Eduardo Abelim pelo seu trabalho na promoção da cultura e do cinema brasileiro. Na programação de ontem excepcionalmente não houve competição de longas estrangeiras. As sessões da noite foram preenchidas com a exibição de duas longas-metragens brasileiras a concurso: 'Os Amigos' (2013), de Lina Chamie, um filme que celebra e retrata novamente a cidade de São Paulo e os seus habitantes e 'Até que a Sbórnia nos Separe' (2013), da dupla Otto Guerra e Ennio Torresan Jr. uma hiperbólica animação gaúcha, e uma metáfora da política do Brasil desde a ditadura até aos dias de hoje.
(em Gramado)