Veja o trailler do filme Tabu no final do texto
Dulce chega primeiro, passo miúdo, ar frágil a contrastar com o discurso combativo. Miguel chegará depois, com O Retorno debaixo do braço. A escritora, 47 anos, e o realizador de cinema, 40, ainda não se conheciam, mas os cumprimentos são feitos na cumplicidade do cigarro fumado à varanda. Em comum, têm obras sobre a África colonizada pelos portugueses: um livro fortíssimo, estilete aplicado à realidade dos retornados (de que Dulce fez parte), e que já vendeu mais de dez mil exemplares desde o seu lançamento em Outubro de 2011; e um filme de autor, a preto e branco (e, em parte, mudo), Tabu, distinguido no Festival de Cinema de Berlim com os prémios Alfred Bauer para a inovação e prémio especial da crítica, a que se juntou o prémio Lady Harimaguada de Prata no Festival de Las Palmas. A VISÃO desafiou-os para um diálogo a propósito do olhar sobre África com (pouco) guião e (decrescente) condução, na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, tendo como testemunhas os painéis de Almada Negreiros – retratos de emigração e perda territorial que ecoam nesta conversa.
África é vista pelos olhos de um rapaz em O Retorno, e narrada pela voz de um idoso, ex-explorador, em Tabu. Ainda precisamos de filtros para falar sobre a questão africana?
Dulce Maria Cardoso (DMC): Escolhi o adolescente, por razões de ordem privada e afetiva. A história que mais me impressionou em Angola, foi a de Rui, um amigo meu que teve os dois irmãos assassinados em 1975: eles foram ao aeroporto levar uma tia. Na volta, e para roubarem o carro, velho sem valor algum, mataram-nos. A história de O Retorno não é a dele, mas o nome é uma homenagem. Apercebi-me de que Rui era um nome perfeito, porque é também o imperativo do verbo “ruir”. Eu estava a assistir a um império a ruir. Usei este adolescente não como filtro mas, talvez, como metáfora: um país em crise, qualquer país, torna-se adolescente na medida em que pode redefinir o que quer para o futuro. Em 1975, Angola passou por isso. Do ponto de vista da escrita, a dificuldade foi a de escrever como um adolescente, e, desafio mais interessante, um rapaz.
Miguel Gomes (MG): Esse “ainda” coloca as coisas como se fossem questão demasiado sensível ou próxima. Apesar da minha mãe ter nascido em Luanda (mas ter vindo muito jovem para Portugal, em 1959), não tenho nenhuma relação com África. Não fiz pesquisa [para o filme], porque podia fazê-la passar por outra relação com África, a do imaginário pelo cinema. O ser um idoso a narrar: o filme coloca, independentemente de África, uma questão que tem a ver com a memória e o tempo. O que me interessava não era concretamente a questão da colonização, era chegar a uma ideia da perda: não é apenas a perda de um território, como a Dulce referia, mas também a perda de um tempo, o da juventude. O fim de qualquer coisa, que pode ser a vida de uma pessoa.
A história africana é um modelo fértil, e historicamente próximo, para ilustrar a perda.
MG: Porque as coisas começam a rimar: o fim de um império, o fim de um romance, o fim de uma vida. Aurora, a personagem que aparece idosa na primeira parte do filme, já está morta quando ressurge na segunda metade – como um fantasma. Queria ter esse lado fantasmagórico, de algo que não vivi. Para mim, o cinema, e a ficção em geral, estão muito associados a isso. É esse desejo e necessidade absoluta de ficção que faz com que se convoquem estas coisas. Independentemente do lado histórico e sociológico com o qual não quis ter uma relação direta.
Um partiu da realidade, outro usou a ficção. Ao verem as obras um do outro, que ecos, espelhos, identificações ou conflitos, surgiram?
MG: Mal li o primeiro parágrafo de O Retorno, fiquei entusiasmado. Sabendo que havia uma relação direta e vivida com o que é relatado, a história das cerejas envia-me logo para esse desejo da ficção. Há o tio [Zé] que surge com as cerejas, que não são iguais às imaginadas pois estão ressequidas pela viagem… É essa pulsão da ficção por algo que existe no imaginário (e que pode ser completamente falso), e que remete de imediato para uma metrópole imaginada. Magnífico. Outra coisa magnífica no livro, é a generosidade de não impor um juízo ao leitor. Quando se fala de questões sensíveis, existe uma vontade de ser pedagógico de maneira simplista: este personagem é o bom, aquele é o mau. De boas intenções está o inferno cheio.
A Dulce afirmou já, em entrevista, que a questão entre bons e maus não foi uma preocupação narrativa…
DMC: Pelo contrário. Mas vou falar do filme do Miguel, para que parti com expectativa. Porque sou suspeita: eu também não fiz pesquisa [para o romance], limitei-me a ficar disponível para o que ainda cá estava [dentro]. Tecnicamente, só deixei de ser retornada em 1988, quando os meus pais conseguiram finalmente sair do bairro de retornados onde ficamos, depois de viver no hotel. Na primeira parte de Tabu, ele pega numa memória que entendi como metáfora do pós-colonialismo. Vi aí a antítese entre uma vida de excesso e de grandeza de espaço e, depois, um mirrar. Mas a narrativa do filme nunca é linear: quando pensamos que a estamos a agarrar, há um salto para outra história. A África do Miguel é mitificada: não é só a ideia da grandeza, das caçadas – e das caçadas temos que falar melhor. A figura da Santa [a empregada negra que acompanha Aurora] é assustadora: ela faz ou não faz aquilo [as feitiçarias de que a patroa a acusa]? O universo das macumbas também está presente nos demónios de O Retorno. África era assustadora para as pessoas cujos corpos não cresciam lá e cujos códigos culturais não eram os mesmos. Lembro-me da minha mãe e das vizinhas verem muamba nos vidros, e acharem que os pretos a tinham posto lá e que ia morrer alguém. Essa angústia está no Tabu. A segunda parte do filme, triste, tem a ver com a frase do meu livro: “Então, a metrópole é isto?” Então, o pós-colonialismo, o que sobrou do império, é isto? Um apartamento, um tapetezinho…
O Miguel foi pela primeira vez a África, por causa do filme. Como sentiu a experiência?
MG: Eu gosto muito de atirar fora os argumentos que escrevo. Quero dizer, sou mais ou menos obrigado a fazê-lo por falta de dinheiro. Mas não vou filmar com argumento fechado No Tabu, formámos um pequeno grupo dentro da equipa, o Comité Central, que tinha que inventariar possibilidades de cenas. Havia aqueles dois amantes, mas não sabíamos como é que as coisas iam acontecer na prática: era decidido enquanto filmávamos. A história da gravidez da Aurora, por exemplo, é-nos dada através de algo que tem a ver com as histórias de macumbas: o cozinheiro feiticeiro. Não existia esse personagem, conhecemo-lo lá. Ele era cozinheiro dos senhores que moraram na casa onde filmámos. A voz off diz-nos que ele tinha o hábito de ler nas entranhas dos animais, e que previu o fim de Aurora. O que aconteceu foi que, de facto, ele estava a relatar uma história que nos contara vinte vezes: pouco depois da Independência, Samora Machel comeu lá e gostou tanto da comida que o convidou a acompanhá-lo para Maputo. E o cozinheiro recusou, porque achava que pertencia àquele sítio. É talvez uma “filha da putice” da minha parte fazê-lo abandonar a casa naquele momento, despedido por Aurora, irritada. E vê-se ele a sair da casa…
Ao ler O Retorno, o impacto da realidade africana é fortíssimo, algo que está na raiz da nostalgia. Sentiu essa herança?
MG: Eu tenho referido os tempos da juventude e da velhice no filme, mas é verdade que uma das oposições presentes seja a do colonialismo e do pós-colonialismo. E que, no tempo do pós-colonialismo, a personagem da vizinha acaba por ter mais protagonismo do que a Aurora. A vizinha Pilar é alguém que parece ter uma grande consciência política: está sempre a tentar endireitar o mundo e intervir. Há aqui uma impotência, o tal espaço fechado que contrasta com uma inconsciência política das personagens, na segunda parte do filme, que parecem não se dar conta do que vai acontecer.
Os personagens não têm voz.
DMC: Impressionou-me o Miguel contrapor muito bem o pós-colonialismo como solidão e o colonialismo como grupo. Na segunda parte do filme, as personagens raramente estão sozinhas. Na primeira parte, as pessoas, ainda que acompanhadas, estão extremamente sós: quando a Santa está com a patroa Aurora, ou quando está a Pilar… Depois da nossa pele, não temos mais ninguém. Isto foi, de alguma forma, o império ter acabado. É estranho Portugal ter tido esta ambição e, territorialmente ter sido tão enorme, e agora estarmos confinados neste canto da Europa, a esta forma retangular que é tumular. Não deixa de ser verdadeiro que ficámos muito sozinhos, e incapazes de nos juntarmos outra vez. O fim deste império nunca foi pensado, e muito menos ficcionado. Não se trata de ficarmos a carpir: “Já tivemos, e perdemos.” É perceber que, se não soubermos de onde viemos, nunca conseguiremos escolher livremente o que queremos ser.
De onde vem esta insistência da ideia de paraíso perdido, nomeada também nas duas obras?
DMC: Se Portugal fosse agora um país bem sucedido, uma “terra de oportunidades” como agora se diz, essa questão do paraíso perdido não teria tanta importância. O problema é que nós, o povo, vivemos mal. E, assim, o passado é sempre mitificado: “Ah, houve um tempo em que vivemos bem.” Na verdade, não houve. Toda a minha vida ouvi dizer que a integração dos retornados correu otimamente. Dos fracos não reza a história. Dos que não se integraram, dos que ainda hoje vivem em guetos, não se fala. Mencionam-se os vencedores porque, para termos esperança, precisamos de acreditar que algo foi bem sucedido. Eu quis falar dos retornados que conheci, e que me atrevo a dizer que foram a maioria, que não tinham as tais fazendas, que não iam caçar…
Tem alguma coisa contra as caçadas?
DMC: Uma das minhas grandes preocupações é a questão do sofrimento dos outros animais. É a primeira vez que estamos perante uma fase em que a humanidade se depara com o poder fazer o bem sem ter nada em troca. Quando dizem: “Ah, libertámos os escravos.” Não, criámos mais consumidores. Percebemos que, em vez de trabalharem para nós, eles podiam comprar mais e far-nos-iam enriquecer. Ora, é impossível que uma galinha tenha um porta-moedas e vá ao supermercado. Se o sofrimento dos animais é muito semelhante ao dos humanos, porque não fazemos nada? Porque o que beneficiamos é largamente superior. No filme, quando comecei a ver as cenas de caçadas, ui ui ui… Mas depois o Miguel fez, talvez sem querer, uma coisa linda: quando Aurora engravida, ela falha o tiro pela primeira vez e nunca mais caça. Isso não é explicado. Mas quando tens uma coisa grandiosa, como é o dar a vida, deixas também de ser capaz de causar sofrimento.
MG: É uma visão benigna. Mas apesar de ter falhado o tiro [na caçada], Aurora vai dar um tiro mais certeiro numa pessoa e o marido vai colocá-lo no mesmo sítio onde ia colocar o búfalo.
DMC: Mas, filosoficamente, está mais adequado. A morte não tem nada de especial, o problema é o sofrimento. Uma das questões que me apoquenta é a desigualdade: quando matas um homem, estás em igualdade com ele. Com os outros animais, o desequilíbrio é grande.
Pergunta de algibeira: Tabu tem referências literárias explícitas, como a frase “ela teve uma fazenda” que remete para Karen Blixen. O Retorno é um romance cinematográfico nas descrições e ritmo. Gostaria de adaptá-lo ao cinema?
MG: A única forma de fazer uma boa adaptação é trair o romance. Mas há boas e más maneiras de trair. Por exemplo, o primeiro capítulo de O Retorno é narrado no presente: está tudo a acontecer ali e tudo está a reenviar para o passado. Aquele capítulo é longo mas a ação é curta em termos temporais. E é magnífico como esse tempo circunscrito, balizado, vai abrindo outros tempos. Se alguém fosse fazer um filme a partir desse momento, teria provavelmente que o trair. E, às vezes, temos a sensação de “bem, está feito, não vou estragar isto”.
DMC: Comecei a ver cinema sem saber ler. Comecei a criar histórias por causa do cinema. A minha irmã, cinco anos mais velha, era obrigada a levar-me ao cinema. Eram filmes de cowboys e eu gritava [para o ecrã] “ele vai-te matar”, porque não percebia a lógica. Então, o que fazia era inventar a história. Costumo dizer algo que arrepia os meus colegas [escritores]:se tivesse de deixar de ler ou de ver filmes, deixaria de ler. Porque o cinema é altamente inspirador. E eu comecei por escrever argumentos para cinema. Tinha medo de me encontrar sozinha com a responsabilidade do “olha, fiz isto”. Escrever, fazer parte de um projeto criativo, parte sempre de uma grande arrogância: “Tenho esta coisa que acho que vos pode interessar”. Entramos num universo esquisito, mas é também uma grande generosidade: oferecemos algo de nós aos outros, estamos anos a trabalhar sozinhos e a tentar fazer o melhor. Mas ao principio tive medo de dar conta de um romance, ainda que soubesse que o ia fazer. Então comecei a escrever para cinema. Gostaria muito de ver O Retorno adaptado, porque acho impossível alguém perceber o que era um hotel ocupado daquela maneira. Era um ambiente enlouquecido.
MG: Mas eu vi-o, está lá todo no livro.
DMC: Mas é diferente de o ver realmente… Eu achei que tinha sonhado com tudo aquilo, com essas pessoas desesperadas, sem nada e com muito tempo. Os retornados de hotel eram o pior, porque nem sequer tinham família que os acolhesse. Quando íamos às filas das Caritas, éramos discriminados até pelos outros regressados. Nós funcionávamos com informadores: a padeira, o leiteiro… Não se chega à solidão do filme do Miguel de repente. Leva-se muito tempo. E esse tempo vem de uma longa noite da ditadura. Habituamo-nos a desconfiar do outro. E tudo isso nos mudou.
O trailler do filme Tabu: