Falta lá o “cuidado”, mas de um filme que leva um título destes, o mínimo que se pode esperar é muita perfuração pelas costas com objetos cortantes. Ainda para mais estamos no mundo altamente afiado das eleições presidências nos EUA entre candidatos democratas, nas primárias no Ohio – e “quem ganha Ohio ganha a nação”. Claro que muito cortantes serão as palavras e todos os golpes que se podem fazer com elas. Mais uma vez, após o fantástico Good Night and Good Luck (2005), também neste filme em que Clooney está entre o lado da frente e detrás das câmaras, quem impulsiona a ação são os diálogos, alguns bastante mordazes (baseados na peça de Beau William). E bem dizia o adivinho, na história recontada por Plutarco e reficcionada por Shakespeare: “Cuidado com os Idos de Março”. E César, no alto da sua soberba e confiança: “mas essa data já passou”. Cuidado, retorna o avisado adivinho (têm todos acesso a um pré-aviso, os adivinhos…), olhe que o dia ainda não acabou.
E então temos este assessor confiante (Ryan Gosling é um caso muito sério em Hollywood, é bom em tudo o que fez, merecedor de uma nomeação nos próximos Óscares), deslumbrado com o seu candidato. Ele acredita mesmo que este, sim, “faz a diferença”. É um tipo inteligente, íntegro, anti-belicista, ecologista, ateu, defensor do casamento homossexual, contra a pena de morte. E se lhe matassem a mulher?, pergunta-lhe uma estudante, nesses fóruns a que são sujeitos os candidatos em campanha. Nesse caso, diz, eu matava o agressor, “mas acho que a sociedade tem de ser melhor do que o indivíduo”. Ainda por cima, sai-se airosamente nos debates, tem charme, humor, poder de réplica, é um sedutor – enfim, é o George Clooney, e não vale a pena dizer mais nada. E de vez em quando atira para o assessores: “vá, escrevam isto por palavras minhas”.
Mas, avisam-no os mais velhos (e mais cínicos)…”São todos simpáticos, mas é um político. Mais cedo ou mais tarde vai desiludir-te”. Aí estão os adivinhos da tragédia greco-romana a sussurrar: cuidado, cuidado… A campanha do Ohio está quase a acabar, mas o candidato ainda não foi eleito. Ainda estamos nos “idos”, as traições e contra-traições não irão, certamente, ficar para as “calendas”.
Porque, sempre que os americanos entram neste quase género cinematográfico – um thriller político de campanha eleitoral onde os candidatos rodeados do seu staff naqueles open-spaces cheios de voluntários e telefones a tocar, o que se coloca em cima da mesa é sempre a mesma coisa: lealdade, manipulação, traição, conspiração, cinismo.
Nada se irá passar de imprevisível aqui. O interessante mesmo é o processo com que todos estes dados vão começar a rolar sobre a mesa, neste jogo viciado. A política não é para fracos (a não ser que esteja a falar de fraqueza de caráter). E Clooney fá-los rolar magnificamente. Não só através de uma realização sóbria e muito segura, como através do casting que escolheu “para o assessorar”. É mesmo um caso, raro, de casting perfeito. E demonstra também alguma generosidade da parte de Clooney que não temeu deixar-se apagar (e quase deixa) entre as outras estrelas: Ryan Gosling, no papel do assessor deslumbrado; Philip Seymour Hoffman, o assessor veterano, com o seu ar negligente de quem já viu muito; Paul Giamatti, o astuto assessor da campanha adversária, com o seu ar de quem não quer a coisa… A depois ainda há a estagiária, vagamente ingénua, vagamente insinuante, Evan Rachel Wood. E até os papéis menores (o assessor substituto Max Minghella, a esposa do candidato Jennifer Ehle, a jornalista cínica Marisa Tomei) estão em sintonia com o elenco. O desafio para os atores foi, distanciar-se dos estereótipos, conseguir criar alguma diferenciação – e conseguem, têm espessura, carne e osso. E sentem-se as reações físico-químicas entre os atores, quase a competir entre si. Algumas cenas são muito electricizantes.
A atmosfera da política é realmente um pouco tóxica. Cada uma destas personagem terá a oportunidade de dar a sua facada, tal como sugere a evocação titular de Júlio César. Mas o protagonista desta história, o tal assessor confiante, não está disposto a oferecer o flanco outra vez. É uma ascensão, uma queda e uma ascensão outra vez. Só que segue já por outra escadaria. E toda a gente sabe que ao dar aquele passo, ficará para sempre do lado errado da noite. É o que nas fábulas se chama vender a alma. “Na estrumeira da política a lealdade é a única coisa que se tem”.
O filme tem um duelo final, sem pistolas, de emoção muito contida, sem sangue, suor nem lágrimas, mas com muita frieza de réptil, entre Clooney e Ryan Gosling- mas é um duelo. entre cowboys, à faroeste. Estamos na América.
E a (i)moralidade da história é sempre a mesma: o presidente dos EUA pode falir um país, poder entrar numa guerra – só não pode ir para a cama com a estagiária. Estamos na América.