Uma pequena luz bruxuleante. Há palavras tão fantásticas, tão bem casadas entre si, – e raras vezes deparamos com a eventualidade de as utilizar -, que quase sentimos uma espécie de gratidão por esta oportunidade de as colocarmos no cimo da página, a abrir um artigo sobre um filme tão fora deste mundo – e ao mesmo tempo tão dentro dele. A Árvore da Vida (vencedora da Palma de Ouro em Cannes que se estreia em Portugal, hoje, quinta-feira), a quinta longa (em 40 anos) desse génio meio obscuro, quase eremita (para os padrões de Hollywood) mas que, às tantas, é apenas discreto, tímido e não tem paciência para jornalistas: Terrence Malick. Ainda por cima, usamos aquelas palavras com a superlativa propriedade do poeta Jorge de Sena, “Uma pequena luz/ que vacila exata/ que bruxuleia firme/ que não ilumina apenas brilha”. E não é apenas por dar-se o caso do filme começar e acabar com a imagem de “uma pequena luz bruxuleante”. O próprio filme é sobre essa luz, pequena e muda. Que no meio da prodigiosa fecundidade da natureza e dos seus turbilhões dramáticos; entre nebulosas incandescentes e plantas aquáticas; entre lavas de um vulcão e as ondas insurrectas dos oceanos; entre cardumes de tubarões martelo e o vento que tudo revolve num deserto; entre uma cobra aquática que ondeia num rio e a primeira clemência de um dinossauro que poupa outro congénere agonizante; entre um sapinho que verga uma erva ao amanhecer e os anéis gasosos de Saturno; entre o sangue a bombear num feto e a seiva a correr ramos acima numa árvore; entre o lirismo involuntário das medusas e o estremecer, também involuntário, do sono de um bebé; entre a imensidão e a eternidade, – ela, a luz, continua a brilhar. Mesmo que não sirva para nada, nem para aquecer ou iluminar. Ou eles, nós, continuamos a brilhar, mesmo sem aquecer, mesmo tendo a pretensão de perturbar a solitude deste planeta, só porque podemos amar e odiar, e distinguir entre o bem e o mal, ou escolher o “caminho da natureza e o da graça”. E “onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da Terra”, é a pergunta insolente que Deus lança a Job, que aparece em epígrafe, e depois, nas vozes-off, tão típicas de Mallick (raramente as falas aparecem em discurso direto), que parecem vir não das gargantas das personagens mas das profundezas do ser, ao longo do filme a pergunta, tanta vezes repetida, “porquê? porquê?”… Porque é que, perante a vastidão do espaço, perante tantos fôlegos vitais da natureza, este formigueiro de moléculas aglomeradas, e conscientes de si próprias, destinados a perecer, como quaisquer outros, continuam nessa busca de sentidos, tormentos, tumultos e paixões, “plenas de som e fúria, sem nenhum significado”. Ou como diz o poema de Sena “Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha./ Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha. /Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha./ Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha. / Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não: brilha.” E resiste em admitir a mortalidade – é essa a grande tragédia da humidade. A de precisar de acreditar que o brilho permanece, para além da matéria. A alma, pois. A eternidade. E sempre a mesma tentativa de arrumar o caos numa lógica cosmológica, que pode vir da filosofia (e Malick é especialista em
Kierkegaard,
Heidegger e
Wittgenstein: a sua tese de doutoramento baseou-se no conceito do mundo destes filósofos), ou da religião. São ambas formas de dar sentido àquilo que parece não ter nenhum. Nem nunca terá.
Jet lag visual
E o que impressiona no filme de Malick não é apenas câmara inquieta, a magistral fotografia, a montagem e a música também tão inquietas quanto inquietas andam as consciências destes seres que nascem, morrem e se multiplicam, na brevidade e incerteza das suas vidas insignificantes… este homo sapiens (às vezes menos sapiens do que a evolução supunha), de frívolos projetos, ridículos tumultos e vãs paixões, quando avistados lá de cima. Nem é só a beleza das imagens – raramente se encontra uma limpidez tão absoluta. O que nos tira mesmo o fôlego e nos deixa com vertigens de berma de abismo é a mudança de escala, como se fosse uma espécie de jet lag visual. E nós que pensávamos que nunca víramos nada de tão elíptico como no filme de Kubrick. Passamos de uma família tipicamente classe média de Waco, Texas, nos anos 50, que vive num daqueles bairros com vivendas de relvados à frente, todas iguais, e no momento seguinte já estamos no espaço sideral, a aproximarmo-nos dos anéis de Saturno. Ora acompanhamos o quotidiano familiar mais banal, ora já estamos perante a clemência de um dinossauro, ou a assistir às nuvens ameaçadoras de pássaros numa cidade do futuro cheia de alumínio e betão.
Um pai (Brad Pitt) vagamente autoritário (nada é óbvio nem linear no filme, tudo se pressente e presume), uma mãe angelical, mas definitivamente enigmática (Jessica Chastain) e três irmãos que exploram o mundo em volta, a serem maravilhados pelas coisas, os pequenos insetos, os pirilampos, as reverberações de luz, os jatos que saem da mangueira, as primeiras humilhações, a ira do rebaixamento, o veneno do ciúme e do ressentimento, a ternura uterina da mãe, as iniciáticas malvadezas, a rã que se prende ao foguetão, o vidro de um pardieiro que se estilhaça à pedrada, o vulto materno que se revela por detrás da roupa estendida lá fora, as relações mal resolvidas com o pai, e Freud sempre à espreita algures num canto do écrã… E a música que no filme é extradiégética (através de 35 sinfonias clássicas – Mozart, Bach, Brahms , Berlioz, Mahler…) e as composições inéditas, algo inquietantes, de Alexander Desplat, e intradiegéticas, através do pai, que toca piano (talvez tenha sido um músico falhado, não se sabe ao certo), e exige Brahms ao jantar. E desde Kubrick, 2001, Odisseia no Espaço (1968) que não se via um filme assim, que nos remetesse para um universalismo cósmico, que tentasse abarcar toda a história e pré-história da humanidade, do particular até ao geral. Porque nesta família, acontece o que nunca devia acontecer: morre um dos meninos. E faz-se logo o link mental para toda a carga de uma promessa cósmica não cumprida que contém a morte de uma criança. Porque os filhos são sempre uma espécie de compromisso de eternidade para os pais, a tal luz bruxuleante de Jorge de Sena. Se o ciclo se interrompe, que sentido faz o universo continuar no seu curso milenar. “Porquê? porquê?”, escuta-se, como uma oração, perante o assombro da vida quando inclui a morte.
Um eremita em Hollywood
Se Terrence Malick não fosse tão parco em entrevistas, talvez se pudesse estabelecer um paralelo pessoal com a sua própria vivência. Também ele cresceu no Texas, também ele foi o irmão que ficou de outro que morreu – aqui no filme representado em adulto por Sean Penn, prisioneiro dos traumas e dos porquês de um passado, já na tal cidade sem verde, cheia de arranha-céus com janelas que jamais se abrem. Atrofiadas de aço e claustrofobia. E que parece não ter perdido ainda a sua obsessão existencial com o infinito, com a imensidão e com Deus.
Já passaram três anos desde a rodagem, do filme. Cinco editores de imagem encarregaram-se da montagem. Estruturalmente, A Árvore da Vida, tem narrativa, tensão dramática e arcos na construção das personagens, e no entanto, tudo nos é apresentado através de estilhaços, de flashs soltos, retalhos de memórias, transparências, e um sótão, há sempre um sótão muito perturbante que aparece volta e meia… No fundo, como o pensamento que é sempre errante, fragmentado, e tem recorrências, impressionismos, e pode fazer viagens siderais em poucos segundos-luz…O filme é-nos dado através de olhares para dentro, com as vozes e os silêncios ocos das cabeças das personagens. Mesmo nas partes em que Malick nos mostra o lado extra-terrestre das coisas terrestres.
E no entanto, apesar da fragmentação, o filme tem uma fluidez fluvial impressionante. Tudo corre, tudo transita, tudo passa. Formigueiros nómadas, uns transportam sonhos, outros traumas, outros filhos, outros nada. Mas caminham. Sempre. A própria família está sempre a andar de um lado para o outro, ou pelos relvados da casa (um pequeno Éden, se escolhermos uma interpretação mais bíblica), ou pelos bosques em bandos de crianças saudavelmente endiabradas, pelas estradas aos saltos em torno das nuvens de DTT, largadas por uma carrinha, ou por aqueles paraísos de areia molhada cheio de seres deambuladores. A vida é isso, uma caminhada em fila, os lá de trás, empurram os da frente. Tudo se move e segue, numa correnteza que desagua na matéria. Exceto uma coisa. A árvore, à qual tantos planos Malick dedica, como um eixo, uma coluna vertebral sempre apontada ao céu, um entrelaçamento cósmicos vivo, sempre em regeneração, enquanto a seiva corre desde as raízes subterrâneas e seus vermes até aos mais altos ramos, e folhas, e pássaros e às alturas. Ela permanece, fixa. E brilha. Como a luz, talvez.