Salve-se quem puder nas páginas de Mulher ao Mar (Mariposa Azual, 2010). A poesia de Margarida Vale de Gato (Vendas Novas, 1973) não oferece bóias, jangadas, condescendências ou facilitismos líricos. E, no entanto, navega-se com a certeza de que se ganhou uma nova voz, uma das tais estreias fulgurantes de que fala a tal imensa minoria dos leitores de poesia. Mas o seu nome era já uma senha de qualidade. Tradutora excelentíssima, construiu um currículo que é um who’s who literário. Já macerou as palavras de, por exemplo, Char e Michaux, Wilde, Yeats, Melville, Christina Rossetti, Dicckens ou Poe – aliás, fez uma tese de doutoramento sobre este último.
Vasos comunicantes? “Acredito que a tradução pode ser uma aprendizagem de escrita. Mas creio que a escrita, o ter uma voz poética, pode prejudicar a tradução. Há, nessa passagem, uma tendência de ingerência muito maior. Há escritores que fazem isso como um programa: “A minha poesia passa pela apropriação de vozes.” Mas isso é diferente da tradução que adoro fazer”, afirma.
Começou por traduzir livros infantis, cedo subiu o nível de dificuldade. Cresceu numa família de gestores, mas alimentou a ideia de seguir uma área científica. “Na biologia, interessa-me a poesia que existe na transformação dos ciclos, na zoologia, nas rochas metamórficas…” Mas sabia que iria ser tradutora, ideia alimentada também pelo ano em que, adolescente, viveu nos EUA. Hoje, Margarida dá aulas de tradução na Faculdade de Letras. Mas sempre quis escrever.
Condição feminina
“Não concebo viver sem ser pela escrita. Mas encontrei a minha relação com a escrita através da tradução. Não me considero uma poeta por aí além”, afirma, resoluta. A critica não concorda com esta opinião, alinhavando-lhe elogios ao vocabulário, à atitude, ao universo. “A minha primeira poesia sempre foi muito lírico-amorosa. Depois, houve uma viragem, onde a poesia anterior se integrava, para uma investigação. Fazia parte de um lado académico: até que ponto é que podemos encontrar uma voz feminina, até que ponto isto faz sentido? Por exemplo, alguns dos meus poemas preferidos de mulheres e sobre mulheres foram escritos por homens – estamos a falar das cantigas de amigo”, explica Margarida, discurso fluente, raciocínio rápido, segurança a rodos. As fotografias não lhe fazem justiça, acrescente-se: dão-lhe secura, expressão de linhas finas, pose austera. Ao vivo, há músculo e curvas, doçura e humor, provocação q.b.
“O que eu faço em muito poemas é encenar vozes de mulheres. Aparece uma base autobiográfica, mas, na maior parte, são Eus líricos encenados”. Sylvia Plath, Emily Dickinson, Anna Karenina, Christina Rossetti, são algumas das presenças que atravessam os poemas. “Mas quando uma pessoa faz um livro com uma capa em fato e banho, é mais natural que haja conotação autobiográfica, mas acho piada”, atira, divertida. A atenção agrada-lhe, mas… “Sinto falta de recolhimento. Talvez esta atenção seja coisa passageira. Até porque não tenho grandes planos de fazer novo livro”, diz.
Antes, Margarida Vale de Gato publicara poemas em revistas literárias (e foi a escolhida para o programa Jovens Criadores 2004). Agora, experimenta outros registos. Escreveu a quatro mãos (com Rui Costa) uma peça de teatro, Desligar e voltar a ligar, que vai estrear no festival Panos (a decorrer entre 20 e 22 de Maio, na Culturgest). Quer fazer um livro para crianças com a filha, Alice, de nove anos. E um romance? “Demora muito tempo e eu fico angustiada, pois tenho uma grande ética de trabalho e muito que fazer.”
Mulher ao Mar
MAYDAY lanço, porque a guerra dura
e está vazio o vaso em que parti
e cede ao fundo onde a vaga fura,
suga a fissura, uma falta – não
um tarro de cortiça que vogasse;
especifico: é terracota e fractura,
e eu sou esparsa, e a liquidez maciça.
Tarde, sei, será, se vier socorro:
se transluz pouco ao escuro este sinal,
e a água não prevê qualquer escritura
se jazo aqui: rasura apenas, branda
a costura, fará a onda em ponto
lento um manto sobre o afogamento.
(in Mulher ao Mar)