A delicadeza é, talvez, a primeira impressão que se tem dela, um aroma subtil. É tentador usar as metáforas botânicas, mas esta autora não tem a simplicidade de malmequer branco, coração solarengo. A sua espécie é outra, trepadeira de aparência inofensiva que, pela calada, vai subindo, enrolando o braço vegetal, uma escalada em surdina – até que, um dia, alguém abre a janela e depara-se com uma paisagem diferente, rasa ao peitoril. Margarida Ferra, lisboeta nascida em 1977, mãe de dois filhos, foi uma das surpresas literárias dos últimos meses. O seu primeiro livro, Curso intensivo de jardinagem (&etc, 2010), um quadrado de papel com capa magnífica de Luís Henriques, causou surpresa, evidenciou um olhar poético novo, e marcou presença na lista de finalistas ao Prémio Literário Casino da Póvoa 2010 (esse ano dedicado à poesia, e cujo vencedor, anunciado em Fevereiro passado, foi o consagrado Pedro Tamen).
A poesia surpreendeu-a, ocupada entre os deveres quotidianos, o desejo de escrever, as “falsas partidas“. “Este livro está muito conotado com a minha experiência pessoal, nomeadamente quando o meu filho mais novo foi para a escola e eu tive uma maior disponibilidade de tempo.”, explica, candidamente. “Fui guardando os poemas que escrevia, numa pasta chamada ‘Jardinagem’, juntamente com outros escritos e ensaios de ensaios”. O livro reúne os seus primeiros 32 poemas, e ficou guardado numa gaveta durante dois anos. “Estava descansada, achava que não precisava de publicar, que um primeiro livro é para ficar escondido, e que o segundo é que seria para publicar”, conta. Foi José Mário Silva, critico atento, poeta por direito próprio (e seu companheiro), que enviou as folhas a crescerem na sombra para a editora &etc. E o editor Vítor Silva Tavares telefonou-lhe depois, a dizer que a queria publicar. “Era uma proposta irrecusável”, diz Margarida Ferra. Dois meses depois, Curso Intensivo de Jardinagem estava publicado.
Tempo de colheita
Rascunhos, tem-nos na sua maioria no gmail. Usa, por vezes, o Facebook para testar versos pequeninos. Antes, teve um blogue, Ponto e vírgula, onde deixava correr a mão. Margarida diz partir para um poema com uma ideia; depois, é o “ritmo da jardinagem” que se impõe: “Vou regressando sempre ao poema.” Valoriza a unidade temática, as relações que se estabelecem entre versos. “Não gosto de livros que são colecções de poemas bonitos, Isso não chega, há que merecer a lombada”, declara.
A sua voz, ainda que pareça sempre biográfica, tem momentos ficcionados. Como no poema Areeiro, um jogo imaginado em torno de um edifício que sempre a intrigou. Mas o que surgiu primeiro foi Playlist, variações em torno de experiências pessoais. O livro, aliás, está “muito conotado com a minha experiência pessoal, quando o meu filho mais novo foi para a escola, e houve uma disponibilidade de tempo”.
“Desde sempre, quis escrever fição”, explica. “Mas como sempre me faltou uma boa ideia, nunca a comecei. Portanto, foi surpreendente escrever poesia, ser publicada…” Os livros são a terra em que trabalha diariamente. Ela cuida para que os bolbos lançados à terra possam crescer. Atual responsável pela coordenação da comunicação editorial do Grupo Bertrand/Círculo, deixou para trás um ramalhete de experiências. Licenciada em Ciências da Comunicação, pela Universidade Nova de Lisboa, foi depois flor precária. Trabalhou no Instituto Português da Juventude, escreveu para o JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias e para a revista dos Artistas Unidos. Também praticou esse ofício de paciência e rigor, que é o da revisão de texto. Isto é, podar. Chegou a usar a expressão cunhada por um amigo: “mulher-a-dias do texto”. Por estes dias, já tem poemas novos na pasta. É apenas uma questão de tempo até conhecer o seu novo jardim.
Nome comum: Jasmim-dos-Poetas
Percorria ao anoitecer os jardins
da cidade à procura das flores
oficiais – sobem amparadas
e perfumam com a memória
do chá as ruas irregulares.
Levava uma tesoura de unhas,
insuficiente e desnecessária porque
não colhia nada que fosse vivo.
Restavam-me frases livres,
páginas dobradas, cadeiras desiguais
e os pratos vazios deixados
aos gatos.
O primeiro poema encontrei-o
numa dessas buscas
debaixo da árvore maior,
no ferro que sustenta a copa,
preso com uma mola da roupa.
(in Curso Intensivo de Jardinagem)