Uma jovem pura e doce está aprisionada no corpo de um cisne. Ela deseja a liberdade, mas apenas um amor verdadeiro a poderá libertar do feitiço. O seu desejo realiza-se na forma de um príncipe. Porém, antes que este possa declarar o seu amor, a sua gémea lasciva – a ‘Cisne Negra’ – ilude o príncipe e sedu-lo. Devastada, a Cisne Branco suicida-se e, encontrando a morte, recupera também a liberdade.
No filme Cisne Negro, de Aronofsky, em exibição em diversos cinemas do país, a sinopse anterior é apresentada pela personagem Thomas Leroy (interpretada por Vincent Cassel) à companhia de bailado que dirige. Nas primeiras cenas – e é de cinema que aqui falo – somos transportados para o estúdio de dança e para os corredores do teatro, mergulhando numa atmosfera opressiva, de contrastes, desde logo entre o cimento frio da arquitetura e os corpos flexíveis das jovens bailarinas. A atmosfera pouco tem de amigável e rapidamente o espetador sente como a competição e a dor física organizam o espaço e o tempo dos ensaios. Enquanto argumento cinematográfico, o seu pressuposto está na preparação de uma nova temporada, com estreia prevista de uma versão do Lago dos Cisnes. O diretor Leroy procura pois uma bailarina capaz de combinar na personagem da Rainha dos Cisnes a face branca, virginal e tímida, toda frémito e beleza, e a face negra, diabólica e sedutora, enérgica e sublime. Na história, o projeto coreográfico é o de criar uma obra mais visceral, mais intensa, que potencie as duas Cisnes como antitéticas e complementares e renove a companhia. Leroy escolhe uma jovem bailarina emergente, Nina – interpretada brilhantemente por Natalie Portman – para o exigente papel.
O argumento organiza-se então como um thriller, psicologicamente intenso, por vezes tocando o horror. Durante quase duas horas, o espetador de cinema acompanha a trajetória delirante da jovem, em luta para conquistar e conservar o lugar de Rainha dos Cisnes, com o apoio e o controlo obsessivo da mãe.
O filme – que acumulou recentemente diversas nomeações para os Oscars, tendo Portman conquistado o prémio de melhor atriz – coloca o espetador perante um jogo de reflexos em que as metamorfoses ocorrem e se cruzam permitindo leituras complexas.
O primeiro reflexo é aquele que inscreve o libreto do bailado no argumento de cinema. No âmago deste reflexo acontece uma primeira contaminação: como uma coisa maligna, o libreto infeta com estranheza o argumento cinematográfico. É interessante descobrir como, por exemplo, na personagem de Leroy se condensam dois reflexos: o do príncipe Siegfried e o do maléfico feiticeiro Rothbart. Aquele que liberta pelo amor, e aquele que aprisiona pelo feitiço. Uma outra metamorfose é a do Cisne – ou para ser mais preciso, a do Cisne Branco em direção ao Cisne Negro – vivida no corpo e na mente de Nina. Esta metamorfose é apresentada em grande plano ao espetador, vislumbrada nos inúmeros espelhos que povoam as cenas, sentida na pele do corpo da jovem, nas suas unhas e nos olhos que se raiam de sangue.
O Lago dos Cisnes – e é de dança que falo agora – tem suscitado inúmeras versões, desde a sua estreia em 1877, no Teatro Bolshoi, em Moscovo, com coreografia de Reisinger. As alterações desde então introduzidas incluíram modificações da estrutura da peça (de quatro atos originais para três atos, ou dois atos), no desenvolvimento de cada uma das quatro cenas, no papel atribuído ao Príncipe Siegfried, na própria música (revista por Modest, irmão de Tchaikovsky, para a versão de Petipa/Ivanov), e na solução final, com a morte do príncipe, ou, em alternativa, a vitória deste sobre o maléfico Rothbart. A peça tem obviamente a marca de um tempo e de uma estética, colocando-nos perante a questão do feminino, ou melhor, perante o feminino pensado do lado do masculino. Com efeito, na existência dos dois Cisnes estava o pressuposto de que a sexualidade feminina só poderia ser uma coisa ou outra, o anjo virginal ou o diabo lascivo. Uma existiria na condição da outra morrer. Uma morreria para que a outra desabrochasse. Enfim, a sexualidade da mulher situar-se-ia obrigatoriamente sobre a linha desenhada entre esses dois pontos extremos e a bailarina tornar-se-ia em grande medida uma metáfora perfeita dessa condição.
Ora, de volta ao filme, podemos dizer que Aronofsky instala a acção nesta linha, reproduzindo ainda aquela metáfora, transferindo-a do bailado para o cinema. Aronofsky fá-lo certamente com mestria, graças à colaboração esplêndida de Portman, organizando os planos cinematográficos sobre a metamorfose do Cisne Branco em Cisne Negro e vice-versa, fazendo erguer aí planos de intensidade. A alternativa, teria sido trabalhar sobre a diversidade dos planos da sexualidade e das suas exposições, sair da armadilha da linha sexual, do terror, e dar a ver o fundo do lago.
Mas este seria certamente outro filme.