“Encontrei um lugar no mapa, pequeno demais para correr. Vou aprender a andar. Volto daqui a… Tenho viagem de regresso daqui a dois meses.” E partiu José Miguel Ribeiro, o autor, antes da personagem que o representa no filme, para uma daquelas viagens de dentro para fora e de fora para dentro. Se tivesse uma câmara, teria feito um documentário. Mas como tinha um bloco de desenhos fez um diário gráfico. E adaptou-o ao cinema… Ao cinema de animação. Um registo original, mas não inédito, em que os géneros se cruzam. Mais do que a força de um argumento (que nem sempre se mantém ao mesmo nível) são as opções estéticas que deslumbram, no périplo por três ilhas de Cabo Verde. Já tinha surpreendido ao tornar-se na primeira animação a ganhar o prémio nacional no Curtas de Vila do Conde, agora correspondeu às expectativas e recebeu o prémio equivalente no Cinanima, o mais importante festival português.
Na verdade, neste festival, tinha apenas um concorrente. Sabia-se logo de início que o prémio só poderia ser atribuído a um de dois filmes: Viagem a Cabo Verde e Os Olhos do Farol. O filme de Pedro Serrazina ficou-se pela menção honrosa. Os Olhos do Farol demorou sete anos a ser feito. Foi uma autêntica odisseia entre produtoras que faliram e apoios mal canalizado. Tudo o que não tem a ver com cinema, como os casos de arbitragem e corrupção no futebol. Aplica uma técnica muito original, em que apenas o mar é em imagem real, e uma história que comove. Aliás, Pedro Serrazina é autor de alguns dos maiores poemas animados. Mostra máximo disso foi a sua Estória do Gato e da Lua, muito premiado mundialmente, que o tornou numa das maiores promessas da animação portuguesa. José Miguel Ribeiro, por seu lado, é o autor de A Suspeita, o único filme português a receber o Carton d’Or, o mais importante prémio de animação europeu.
Se o Cinanima seguisse a política de outros festivais de cinema, como o Indie ou o Curtas de Vila do Conde, de não aceitar obras já estreadas, a sessão nacional ficaria muitíssimo mais pobre, apesar da qualidade de outras obras, como Raio Xyz, de Joana Toste, que ganhou uma menção honrosa. Mas vale a pena dizer mais do que isso. Patriotismos à parte, parece-nos óbvio que a qualquer um destes filmes portugueses calharia bem o prémio internacional (que já foi dado a Regina Pessoa, por História Trágica com Final Feliz). Aliás, a qualidade média dos filmes em competição foi dececionante, mostrando que também o Cinanima se encontra numa ou várias encruzilhadas, que estão diretamente ligadas aos desafios que se colocam à animação. Numa altura em que a quantidade de filmes produzidos aumentou exponencialmente, o trigo confunde-se com o joio.
O prémio principal foi para o italiano Blu, que costuma trabalhar com os gémeos, aqueles artistas brasileiros que ainda há pouco fizeram uma intervenção num prédio em Lisboa (junto à Fontes Pereira de Melo). É um caso que deslumbra pela espetacularidade plástica. A animação é feita pelas paredes das ruas, com uma técnica absolutamente original. Conta mais isso do que propriamente a criação de um bom argumento. A questão que se coloca é se neste suporte alternativo Blu consegue criar algo para além do ‘fogo de artifício’.
Se o júri de curtas privilegiou a ousadia estética, o de longas-metragens optou pelo filme mais convencional, apesar de inserido na escola chinesa: Piercing 1, de Liu Jian. Na verdade, apenas três filmes estavam em competição e é natural que o humor corrosivo e minimalismo formal de Goodbye Mr Christie, do inglês Phil Mulloy, não seja do agrado de todos. O filme é a sequela de The Christies, realizado em 2006.
Um dos melhores filmes do festival foi Drivers in The Rain, de Olga and Prit Parn, um autêntico monumento à experimentação, que reúne grandes atributos a todos os níveis. Esteticamente, o desenho a preto e branco resulta. Há um uso eficaz do som e o argumento é pouco óbvio, com uma ligação ao surrealismo e ao lado mais mágico do cinema animado de Leste. Ganhou o prémio para a melhor média-metragem. A melhor curta foi considerada Teclopolis, do argentino Javier Mard, um divertimento com a criação de uma cidade literalmente tecnológica (feita de ratos, teclados e afins). O Prémio Especial do Júri foi para In Scale, da jovem russa Marina Moshkova, com um filme demasiado simples para dar nas vistas. O Reino Unido esteve em destaque, com prémios para Stanley Pickle, de Vicky Mather, um filme em stop motion com os melhores ingredientes do humor inglês, o spot publicitário Harmonix ‘The Beatles: Rock Band’ Intro Cinematic, de Pete Canland, e ainda uma menção especial para Going West, de Martin Andersen e Line Lunneman Andersen.
Na cerimónia de encerramento, António Gaio, lendário diretor do festival, enalteceu o facto do Cinanima sobreviver sem recorrer a concertos nem a outros géneros cinematográficos, com fazem outros festivais. O que era dispensável. Não só porque é dispensável esta defesa do “purismo”, como se há coisa que falta a este festival, grande em Portugal e que poderia ser ainda maior na Europa, são atividades paralelas. Parece claro que, apesar dos seus 34 anos e da boa afluência de público, o festival precisa de crescer bem, evitando uma eventual crise de meia-idade. O cinema português precisa de um grande Cinanima.