Pior do que começar com um lugar comum, é acabar num lugar comum, dizia Hitchcock. E era o que mais se temia, quando se anunciou a quarta sequela de Shrek – dez anos e mais de dois mil milhões de euros de receitas depois. Geralmente quando o tubo da imaginação já está enrolado até ao tutano, quando já não se consegue extrair nem mais uma gota de originalidade, quando já se ultrapassou três vezes o limite final estipulados dos contos de fada que é o “e viveram felizes para sempre” – há a tendência para os produtores, à falta de mais estrada de tijolos amarelos para trilhar, começarem a fazer o sentido inverso. Caminham para trás. E, em vez de mais uma sequela, recuam até às origens, para a habitual prequela. Foi isso que chegou a estar previsto para o quarto Shrek – a infância pantanosa do mais famoso ogre do cinema: tão verde quanto o Hulk, talvez menos musculado e feroz, é certo, mas que o vence, com óbvia vantagem, nas antenas de marciano e, definitivamente, no sentido de humor.
Felizmente a Dreamworks não deu este pré-destino à sua mais valiosa criação de sempre, uma das mais lucrativas franchaisings do cinema, que introduziu um novo paradigma na animação, ao convocar uma série de elementos da cultura pop (não só nas músicas) e subverter, numa fusão emaranhada, todas as personagens das histórias de fadas e do imaginário infantil. Nesse sentido, o Shrek é o equivalente ao albergue espanhol de Cervantes. Aquele célebre episódio do Dom Quixote em que todas as personagens do livro comparecem no mesmo albergue e no mesmo capítulo. Desde o primeiro Shreck ( 2001), que ganhou o óscar de animação no ano seguinte, havia a célebre sequência das mil personagens de fantasia que apareciam no pântano do ogre no princípio do filme. Pela série Shrek, só para mencionar alguns, já passaram os três ursos das papas, o rapaz de bolacha, o Pinóquio, o lobo da capuchinho vermelho eternamente vestido com a camisa de noite e a touca da avozinha, os três porquinhos, o gato das botas, o Robin dos bosques, os três ratos cegos…Ah, e o burro falante que não pertence a nenhuma história em particular, mas que podia constar em qualquer uma.
Neste último Shrek para além dos habitués ( o Pinóquio continua a querer ser um menino de verdade: “Adeus térmitas, olá acne”) , aparece o Flautista de Hamelin, (um caçador de prémios, claro), um gangue de bruxas voadoras (daquelas a sério, de nariz curvo e vassoura) que fazem raves malucas e Rumpelstiltskin, uma espécie de duende maléfico, de um conto terrível (como se não fossem todos….) dos Irmãos Grimm, em que este homúnculo salva a filha do moleiro, faz com que esta case com o príncipe mas pede-lhe em troca o primeiro dos filhos. Em Shrek, este duende, que tem como animal de estimação um ganso com dentes e vai mudando de cabeleira consoante a disposição, e também é um maníaco dos contratos – sobretudo daqueles que têm cláusulas em letras muito miudinhas.
Paradoxo metafísico
A que foi considerada a maior das apostas da Dreamworks, já com Jeffrey Katzenberg na liderança (o homem que durante 10 anos reanimou a Disney com A pequena Sereia ou o Rei Leão), contribuiu, ironicamente, para a “desdisneyficação” de tantas figuras dos clássicos infantis que tinham ficado cristalizadas naquela versão.
Desta vez, no reino Bué, Bué Longe, encontramos um Shrek à beira de uma crise conjugal. Já se apaixonou, já derrotou um dragão, já salvou a princesa, já deu o primeiro beijo, já se casou, já lhe nasceu um trio de ogrezinhos, já está na fase do “e viveram felizes para sempre”. Só que essa fase implica fraldas para mudar, despertares madrugadores, canos para desentupir, rotinas familiares – e francamente um ogre também é humano. E algo nos diz que esta parte do filme cria mais ressonância nos pais presentes na plateia do que propriamente nas crianças. “Tu tens três filhos lindos, uma mulher que te ama”, diz-lhe Fiona. “Porque é que o único que não consegue ver isso és tu?”. Onde é que nós já ouvimos isto antes? Pressentem-se os olhares rebaixados dos pais, e os olhares de soslaio de filhos. Cada vez mais se assume que a animação não é produzida apenas para as crianças – mas para os adultos que as acompanham. Ou não. Mas aí entrávamos no debate sobre a infantilização das assistências, só que para dar exemplos de filmes primários e idiotas não precisamos de os ir procurar na animação… Por isso falamos antes numa “adultização” dos filmes supostamente para crianças. Que têm de engolir toda a parte do filme em que o Shrek, já arrependido de ter abandonado a família, fala várias vezes nas “cláusulas de rescisão do contrato”.
Depois entramos na fase mais metafísica do filme. Por vias de um contrato envenenado, o Shreck está em vias de deixar de existir, como se nunca tivesse nascido- só um beijo, apaixonado, como em todos os contos de fadas, o pode salvar. É um paradoxo metafísico. E aí entramos num mundo paralelo em que tudo se corria de maneira diferente porque o famoso ogre nunca tinha nascido. E outra vez: onde é que nós já vimos isto antes? Pois, no mais natalício dos filmes de Frank Capra (1946), Do Céu Caiu uma Estrela, em que George Bailei (James Stewart) num momento de fraqueza e desalento, não regressa a casa, na véspera de Natal, e há um anjo da guarda que lhe mostra as várias situações lastimáveis que poderiam acontecer caso ele nunca tivesse existido. O mesmo acontece a Shrek que se vê num mundo bastante mais deprimente do que o das fraldas, das papas e das rotinas familiares: o gato das botas tem obesidade mórbida; o burro falante está atrelado a uma carroça de bruxas e canta Whitney Houston ou coisa do género, enquanto é chicoteado; o rapaz biscoito participa em lutas de gladiadores; a Fiona é líder da resistência clandestina de ogres contra a ditadura que se instalou no reino, sob a regência tirânica de Rumpelstiltskin…
Todos os personagens principais do filme voltararam a receber as mesmas vozes dos três anteriores (Mike Myers enquanto ogre, Eddie Murphy burro, Cameron Diaz Fiona, António Banderas gato, Julie Andrews e John Clesse rei e rainha). Este Shrek em versão 3D (como passou a ser política dos estúdios deste Monstros vs Aliens), encerra a saga do simpático ogre com chave de ouro. Esperemos que a Dreamworks cumpra mesmo a promessa – nunca se sabe…- e não volte a abri-la, à boleia das últimas migalhas que ainda se possam soltar de um box-office bem sucedido. Não há nada pior, e mais indesejável, do que se reaparecer depois de uma despedida. Na vida, na política e no cinema.