Sim, Polanski ultimou a montagem deste filme (Ghost Writer, Urso de Prata no Festival de Berlim, que se estreia hoje, dia 15) a partir da sua cela, na Suíça, enquanto aguardava a decisão de extradição para os EUA (finalmente negada na segunda-feira). Sim, ele estava preso, depois daquele sórdido processo que o acompanha há mais de três décadas, impedido de entrar no seu país de acolhimento, por ter mantido relações sexuais ilegítimas com uma miúda de 13 anos. Sim, a má publicidade é sempre uma impulsionadora do box office. E um buraco de fechadura para escândalos infames.
Sim a tudo isto, e logo no primeiro parágrafo se despacha o aspeto menos cinéfilo que vem arrastado atrás do novo filme de Polanski, como aquelas latas que nos desenhos animados antigos se prendiam maldosamente aos gatos eriçados. Porque, e voltando-nos estritamente para a tela, e deixando o estardalhaço para outras instâncias, o que é realmente polémico num realizador tão genial e especial e tão fora deste mundo como é o franco-polaco Roman Polanski é ter-se interessado por um thriller mainstream sobre conspiração internacional, dramaticamente real, preso com grilhetas à rudeza crua da atualidade. Ainda por cima, baseado num romance escrito por um jornalista político, Robert Harris, autor de best-sellers, que remete a sua história para conotações óbvias com Tony Blair e o seu comprometimento embaraçoso com a guerra norte-americana no Iraque e os processos de tortura científica. Claro que o thriller escorrega facilmente num registo de deslizante destreza e virtuosismo formal. Mas até o casting parece tão óbvio quanto as conexões políticas do argumento: Pierce Brosnam com o seu sorriso fluorescente de James Bond no papel de ex-primeiro ministro britânico, Kim Catrall (do Sexo e a Cidade), enquanto secretária loura diligente e (bocejo…) algo mais, Olívia Williams, a manipuladora esposa, e o escocês Ewan McGregor, a fazer de escritor fantasma das memórias do ex-governante.
E o mais intrigante nesta história de suspense, depois de dois filmes maiores como O Pianista (2002) ou Oliver Twis t(2005): onde está Polanski, o realizador da estranheza, do sentido do absurdo, do humor perverso, da galeria de personagens bizarras? Bem, talvez na arquitetura de bunker onde o escritor se instala para escrever, naquela ilha inóspita de Sylt, na Alemanha, que o realizador transformou em monte dos vendavais, sem Heathcliff mas com fantasmas e agentes da CIA. Talvez na breve sequência em que um criado asiático tenta varrer as folhas contra o vento…E nos mistérios sempre envoltos nos grandes espaços. Também na forma cíclica com que Polasnki enclausura os seus filmes: geralmente acabam no local onde começaram. Mas é francamente pouco. Parece mais um filme banal para onde Polasnki convocou o seu talento, quase involuntariamente.
Polanski e os seus fantasmas
Mas estará lá o olhar obsessivo do realizador, a curiosidade omnívora, a coreografia meticulosa das pessoas e dos objetos. Conta-se que uma vez passou uma quantidade inusitada de tempo a posicionar um cinzeiro numa determinada cena em Lua de Mel, Lua de Fel (1992). Perguntaram-lhe: “Hei Roman, essa cena é sobre um cinzeiro ou sobre duas pessoas?” “Sobre tudo”, respondeu o realizador. O seu olhar é mais do que vigilante, é um olhar de sentinela, treinado, quem sabe, desde criança, quando escapava por entre o arame farpado do gueto de Varsóvia, para onde a família fora encurralada. Roman nasceu em Paris, mas numa bizarra conjugação de destinos, os pais inverteram as migrações da época, e vieram para a Polónia, quando o nazismo já se insinuava, justamente em direção à boca do lobo. A mãe católica acabou de morrer num campo de concentração, o pai (judeu não crente) e a irmã salvaram-se, mas reconstituíram outras famílias. Camuflado pelo nariz arrebitado e cabelo louro, Roman aprendeu a sobreviver sozinho. E a sua maior grandeza foi ter conseguido não trazer a sua tragédia pessoal para os filmes. Pelo menos não diretamente. Nunca sucumbiu à auto-comiseração. Pelo contrário, riu-se do terror, enveredou pelo absurdo.
Só perto dos 70 anos, Polanski revisita o holocausto em O pianista (2002), um anti-herói que vai sendo salvo da morte por intervenções fortuitas. Aqui as memórias do realizador são postas a descoberto: procurava a cor exata do amarelo da estrela de David nas braçadeiras dos judeus, o amarelo- torrado dos sacos de areia empilhados no gueto… Tudo lembranças de primeira mão, e não aquelas alheias, retiradas de outros filmes ou fotografias. Também em Oliver Twist (2005) o miúdo que tem de se “virar” sozinho, Polasnki faz o circulo perfeito de encontro com as suas memórias mais remotas.
Ele é um sobrevivente – ao pé, de outras tragédias da sua vida, o pedido de extradição, agora cancelado, por causa desse episódio torpe, torna-se apenas um contratempo. Na Polónia quase foi morto por um psicopata serial killer, os seus filmes (que provocavam um estrondoso sucesso no ocidente, Dois homens e um guarda-fatos, 1958, ou A Faca na Água, 1962) eram olhados de soslaio pelos poderes “sovietizados”. Depois, da sua vinda para Paris (Repulsa, 1965) e EUA (Por favor Não me Mordam o Pescoço, 1967, e Rosemary’s baby (1968), no auge da sua popularidade, aconteceu um dos crimes mais sangrentos de sempre da história de Hollywood. Um grupo de fanáticos satânicos, armados de facas e liderados por Charles Manson, assassinou selvaticamente os anfritriões de sua casa, entre eles a mulher Sharon Tate, grávida de oito meses. “O único momento crítico na minha vida que tem realmente importância”, comentou o realizador. Na Suíça, Polasnki, desvastado, esquia até à exaustão. Fez Tess (1979) e Chinatown (1974), A Noite da Vingança (1994), em que um torturador do Chile põe a tocar a sinistra peça de Schubert, a Morte e a Donzela, enquanto viola as vítimas. Sempre com uma voracidade perfeccionista, sempre a recusar-se a olhar para trás, como fez nos Alpes, no ski. A tentar não se deixar importunar por espetros do passado. Não se percebe então porque o fez parar então este fantasma vindo do presente.