“Este é o Meu sangue, tomai e bebei”, a frase é repetida diariamente vezes sem conta pelas missas do mundo inteiro. Segundo os Dogmas, aquele vinho, por mistério da fé transmaterializa-se em sangue de Cristo. Ou seja, literalmente deixa de ser vinho e passa a ser sangue, não apenas um símbolo, mas o próprio sangue divino. Assim como o pão ázimo depois de consagrado se transforma em corpo de Deus. Na Eucaristia, o que vulgarmente se passa, pelo menos no Ocidente, é que o sacerdote exibe o corpo e o sangue de Cristo, mas apenas o primeiro é partilhado com os fiéis. O Sangue é sorvido pelos padres no altar.
Quererá isto dizer que em cada padre há um potencial vampiro? Apenas por graça, mas este filme de Chan-Wook Park aproveita bem o contexto e desenvolve a ideia. Se não vejamos, o mais importante dos ensinamentos de Cristo é que devemos procurá-Lo acima de tudo nos Outros, no Próximo, fazendo do homem um semideus. Por abuso, pode-se recuperar a ideia de que bebendo o sangue dos outros se bebe o sangue de Deus. Como disse, é abuso, contudo serve bem o filme, que não é mais disparatado do que é costume serem os filmes de vampiros, mas já se tornou filme de culto, em parte por ligar todo este universo à prodigiosa imaginação e semiótica sul-coreana.
Há outros pontos de partida. O padre em causa é, realmente, um agente do Bem. Um exemplo máximo de santidade terrena. Ao ponto de colocar a sua vida em risco ao serviço da Humanidade, oferecendo-se como cobaia para os testes de vacina para a mais terrível doença, o vírus Emanuel. De meio milhar acaba por ser o único sobrevivente e isso dá-lhe dotes de santo. Poderes especiais. Só que a sua miraculosa sobrevivência traz um rasto demoníaco. Foi através da transfusão que se deixou contaminar com sangue vampiresco. E onde se encontrava Deus, agora está o demónio.
Só que a sua bondade é tal que se transforma num ‘santo demónio’. A necessidade de resistir ganha proporções descomunais. E o padre vampiro cria as suas regras santas no Inferno em que vive. Por exemplo, faz os possíveis para obedecer ao mandamento “Não matarás”. Contudo, torna-se mais liberal e mesmo resistente a algumas indicações do Vaticano: é defensor da Eutanásia, mesmo a dos suicidas. O realizador joga com isso utilizando a ironia: no início o padre recomenda como penitência a uma jovem e deprimida freira “20 Avé Marias. Muitos banhos de sol e um duche frio”.
O que acontece de fascinante, acima de tudo, é que ao contrário de outros filmes do género, em que em lados opostos se encontram os heróis e os vilões, aqui todos se centram na mesma personagem, dando uma riquíssima dimensão de drama interior, elevando ao expoente máximo os dilemas da consciência. O filme, com imagens chocantes e um cuidado estético oriental, contudo, cansa-se de interpretações metafóricas, e abre-se num gozo puro, apesar de nunca se perder a sua dimensão moral.
Thirst – Este é o meu sangue tem criado alguma polémica desde que foi exibido e premiado no Festival de Cannes. A sua inscrição no sobrenatural afasta questões maiores. Trata-se apenas de um criativo exercício de subversão de um género cinematográfico, que agrada mais a Deus do que ao diabo.
