Visto o filme, permanece a dúvida: o que levou a Academia a dar o Óscar a Sandra Bullock? Terão sido as madeixas no cabelo? Ou o facto de ter deixado de fazer o papel de boazona para fazer o papel de boazinha? Ambos são os mais comuns estereótipos das mulheres no cinema: a mulher fatal e a mãe de família, a fera e a freira. Desta vez a freira, ou quase, uma freira laica e republicana, de bom coração, não tão falsa como as amigas, também republicanas, que não vão ao lado pobre da cidade, porque po lá não existem quem dê fundos.
O que terá atraído os americanos para este filme, antes de mais, é o futebol. Não o nosso, jogado com os pés e com a cabeça, mas o deles, que é uma versão abrutalhada do rugby. O filme inspira-se na vida de Michael Oher, um grandes jogador de futebol americano, que tem uma daquelas histórias de vida feitas de suor, lágrimas e boa-vontade. O segundo ponto de interesse, no qual o filme aposta, é mesmo o lado humano, que também dava para a mais piegas e fugaz novela de horário nobre.
A verdade é que, depois de Nelson Mandella, Barak Obama e Spike Lee, já não se imaginava que fosse possível fazer um filme assim. Muito menos valorizá-lo desta forma, ao ponto da Academia, de espírito Democrata, o nomeasse para melhor filme. É que Um Sonho Possível significa um retrocesso civilizacional, numa América cheia de esperança. É o regresso à valorização do altruísmo branco, republicano e cristão, que se compadece. É esse o fundo reaccionário nesta história chocha de uma família – tão boazinha e feliz – que acolhe na sua mansão um pobre desgraçado, que é essencialmente negro. Negro antes de tudo o resto. Corre tudo tão bem e são todos tão felizes, que quase não sobra história para contar.
Sandra Bullock é tão determinada, altruísta, feliz, contente, disponível, sensível, atenta. Resumindo é tão irritante quanto o filme quer que ela seja. Só que o filme não quer ser irritante, apenas irrita, pelo seu moralismo de algibeira.
Por coincidência, recentemente estreou outro filme que tinha o desporto como cenário e a questão das raças como debate. Falamos de Invictus, a biografia de Nelson Mandella, filmada por Clint Eastwood. Onde o rugby era mal jogado, sem que os americanos dessem por nada (aqui, o futebol americano é bem jogado, mas nós não nos apercebemos). As perspectivas sobre as questões raciais não poderiam ser mais distantes. Em Invictus, passa a filosofia que só a junção de esforços das raças poderá constituir um país. Aqui é defendido o conceito Republicano de caridade. Só que o mundo não precisa de caridade, mas sim de justiça. Quanto a Sandra Bullock cumpriu o feito de, no mesmo ano, acumular os prémios para a melhor e para a pior actriz. Diga-se que apenas um deles foi mal atribuído.
Um sonho possível, de John Lee Hancock, com Sandra Bullock, Quinton Aaron, Kathy Bates, Tim McGraw. 2009. 129 min. EUA
