Quando conheci Raul Solnado, não sabia de cor A guerra de 1908, não o tinha visto representar no Parque Mayer nem no teatro, não imaginava a importância do Zip Zip. E logo no primeiro dia da conversa que até hoje mantivemos, ele disse-me: “Sou um homem da palavra”. A simples frase era a melhor apresentação de si próprio. Agora, no rescaldo da sua morte, descubro-me a confundir os tempos dos verbos na minha fala e na minha escrita. Misturo o Raul “diz ou pensa” com “ele dizia ou pensava”. O meu tempo do Raul ainda não é passado.
Porque sou biógrafa e ao lado do Raul venho acompanhando os anos 90 e as viragens do milénio, guardo a respiração dos grandes acontecimentos, que celebrámos. Os pormenores mais desimportantes nos episódios dos dias comuns não lhe passavam ao lado, nem o sentido das datas que ficaram na História.
Em tudo o Raul queria estar, por curiosidade, por entusiasmo, por simplesmente achar que a vida é isso, estar.
O eclipse do Sol, quando a terra inteira ficou em silencio e uma estranha névoa cobriu o campo num final de manhã, quando só ao longe ouvimos o barulho dos bichos assustados, foi um dos momentos muito secretos e privados que tivemos, na contemplação do mistério. O Raul podia ficar muito tempo quieto, à procura da palavra para se ver a emoção. E era capaz de a descobrir, ou de a inventar, ou de lhe acrescentar música pelo ritmo e pela entoação.
Todos os dias, garantiu-me, precisamos de levar para casa um pensamento novo, uma palavra inventada. A primeira que lhe ouvi, à porta do Pátio Alfacinha, numa festa de Santos de Junho em 1989, foi “boa ficagem” ao arrumador de carros que desejava boa viagem de volta.
Tinha o absoluto sentido da vida como espectáculo e da celebração dos acontecimentos como expressão de vida. Uma outra vez, tinha havido em Lisboa, em cerimonia oficial, um aperto de mão entre líderes angolanos para a Paz. O Raul achou insuportável que a vida corresse igual a sempre nessa hora e nesse dia, como se nada daquele gesto tivesse a ver com as pessoas na cidade. Telefonou para o Patriarcado a pedir que o momento formal do gesto fosse celebrado pelos sinos das igrejas de Lisboa a proclamar a boa nova.
Fomos para o Castelo de S. Jorge, esperando o som. Existiu sim, não tão intenso como tinha sido desejado. Resta uma fotografia de nós os dois, com a cidade e o rio por cenário, a garantir-me que o secreto ritual se cumpriu.
O Raul começou por me apresentar o Teatro como família. Era o Teatro a sua vida, o seu prazer. No Teatro tinha as suas cumplicidades e lembranças, as suas parcerias e alianças, as piadas de bastidores, os casos e descasos, os desacertos, a glória. Era o seu sofrimento na hora da estreia, ou a exultação. O orgasmo. Já de volta a casa, na alegria dos aplausos que recebeu na primeira sessão da peça Os bancários não têm alma, no Teatro Villaret, dizia-me “sinto a minha alma a dançar”. O Raul falava assim, por metáforas, outra vez simplesmente.
Dizia que nesta família do Teatro não há inimigos, porque o inimigo é o fracasso e a torcida é pelo êxito. E eu, desconhecida e encarada como alguém de fora quando cheguei com ele, logo desde os primeiros instantes fui integrada, recebida, sem limites. Nunca ouve uma pausa de conversa, um disfarce de comentário, um sinal que me excluísse da família. Agora, nestes dias de morte, eu reencontro-os, afectuosamente. Os actores de palco e os invisíveis artesãos dos bastidores. Os grandes nomes e os pequenos. Tanto que o Raul os abraçou, tantas vezes que o vi contente com eles, tanto que partilharam a sua vida verdadeira. É verdade que o Raul tem esta pertença.
Actor é a palavra que tem escrita como profissão no passaporte. César Oliveira falava do humor terno de Raul Solnado, e o autor brasileiro Flávio Rangel disse-o “o homem perplexo”. Assim o vejo, na obra e na personalidade.
Na invenção do humor de inteligência e disciplina sofrida, porque além da arte de representar o Raul tinha as muitas horas de escrita e pensamento, de fazer e refazer e experimentar, até conseguir o certo formato, a dimensão acabada, o sentido da tal frase ou da tal palavra, essas que nos ficaram a nós, portugueses, para sempre. O riso que acordou não foi por obra e graça alcançado, não apareceu por ser fácil, não é coisa do acaso. Parece, sim, ter sido. Mas esse é o outro mistério de Raul: conseguir que nos pareça ser simples aquilo que é quase impossível. Não é verdade que tantas vezes, em público, ele disse que mais fácil é fazer chorar do que fazer rir? Com ternura, sem imagens de brutalidade, sem traço primário de segundos sentidos, sem piadas intestinais, como chamava ao palavrão, à grosseria.
Lembrava ele, e por isso causando pasmo a quem o ouvisse, que no seu tempo de Parque Mayer, só nas sessões dos dias de Carnaval se podia pronunciar a palavra “merda”. O humor do Raul era terno e atravessa as gerações.
Em face das infinitas pessoas que agora pronunciaram o seu nome, e ao longo dos rituais da morte, penso do Raul que é um homem que muito amou e foi amado. Pelos mais simples e anónimos, pelos desconhecidos, pelos drogados e pelos bêbados, pelos cachorros e pelas crianças. Aos menos importantes prestava atenção, às crianças abria os braços com o corpo inclinado para trás, dos cachorros não tinha medo, dos bêbados aturava os caprichos, para os drogados tinha sempre uma moeda. E agora dou por mim a achar que só o Raul tirou do anonimato tantas e tantas pessoas que dele guardaram uma palavra, um encontro, que lhe prestaram um serviço fugaz, que com ele trocaram uma frase, por acaso. Nestes anos, nunca acontecia que um desses não chegasse perto na rua e lhe lembrasse uma passagem na guerra em Angola, um café, uma viagem, um auditório de televisão. Levava as mulheres a acreditar na sedução, porque era um sedutor. Com elas e com toda a gente. O Raul foi um sedutor.
Dizia palavras sagradas como Liberdade. Praticava a cidadania. Nunca o vi sequer em transgressão no trânsito, porque para ele a integridade era fundamental. Era tão doce e resignado como doente, nas vezes todas que esteve internado nos hospitais. Os médicos choram por ele. E quem o tratou sabe como percebeu a dimensão superior do sofrimento.
Homem perplexo com a vida e as expressões da fé. Homem de fé, místico, conversou sobre vida e morte com Frei Bento Domingues, frei dominicano, nos últimos dias. Não sabíamos, nenhum de nós, que fosse para já.
Além disto, tudo já tem sido dito, escrito e falado sobre Raul Solnado.
11 de Agosto de 2009