Em meados do século XVI, mais concretamente em 1511, em Castelo Branco, nasceu João Rodrigues, criado na fé judia. Anos mais tarde concluiu o Curso de Medicina na Universidade de Salamanca, não podendo regressar a Portugal pelo receio de perseguição pela Inquisição. As suas inúmeras viagens pela Europa, e uma estadia mais prolongada em Itália durante a qual chegou a ser médico pessoal da sobrinha do Papa Júlio III, permitiram a realização de trabalhos de Investigação (assinados como “Amato Lusitano”) que culminaram na descoberta das válvulas venosas, estruturas que controlam a direção do fluxo sanguíneo. Esta descoberta foi inicialmente recebida com grande reserva pela comunidade científica e médica. No entanto, em conjunto com os trabalhos realizados no começo do século XVII por William Harvey, um médico inglês, criaram as bases para a descoberta da circulação sanguínea.
Até então, as veias eram consideradas os principais vasos para transporte do sangue do corpo humano, as artérias meras transportadoras de pequenas quantidades de sangue misturadas com “espíritos vitais”, o fígado o local de produção do sangue e a origem das veias, e o coração a origem dos espíritos vitais, uma fonte de calor e uma cisterna para armazenamento do sangue. O dogma estabelecido durante séculos defendia que o sangue, produzido no fígado, era distribuído (pelas veias) pelo corpo, não regressando à sua origem, ou ao coração. William Harvey, resistindo a críticas ferozes por parte da comunidade científica e médica, demonstrou (demorou mais de 13 anos a conseguir convencer os críticos) que na verdade existe uma circulação sanguínea, onde as válvulas venosas e outras estruturas desempenham um papel fundamental na manutenção da direcção do fluxo, e onde o coração é fundamental para o transporte do sangue venoso para os pulmões onde será oxigenado, voltando ao coração onde é bombeado para a artéria aorta e para todos os orgãos do corpo.
As suas inúmeras viagens pela Europa de João Rodrigues, e uma estadia mais prolongada em Itália durante a qual chegou a ser médico pessoal da sobrinha do Papa Júlio III, permitiram a realização de trabalhos de Investigação (assinados como “Amato Lusitano”) que culminaram na descoberta das válvulas venosas
Somente no século XIX, Wilhelm His, um minucioso patologista suíço (considerado o pai do estudo dos tecidos, a histologia), revelou que os vasos sanguíneos são na verdade revestidos por células endoteliais, e apenas nos anos 60 do século XX foi possível cultivar estas células em laboratório. O endotélio é, então, a camada de células que reveste o interior dos vasos sanguíneos nos animais servindo de interface entre o sangue e os tecidos. Num humano adulto, esta camada de células pesa mais de 1kg, cobrindo uma superfície total de aproximadamente 4 a 7000 metros quadrados. A identificação e a caracterização das células endoteliais, perceber como estas reagem a diferentes estímulos que promovam ou impeçam o seu crescimento, permitiu – anos mais tarde – testar a sua importância em diferentes patologias.
O reconhecimento da importância dos vasos sanguíneos no cancro começa verdadeiramente em 1971, quando um cirurgião vascular americano, Judah Folkman, deu um seminário na Harvard Medical School posteriormente publicado no prestigiado New England Journal of Medicine. Neste, Folkman postulava pela primeira vez que células tumorais produzem fatores que promovem o crescimento das células endoteliais dos vasos sanguíneos, e que seria possível controlar o crescimento tumoral através do bloqueio desse processo, que denominou “angiogénese”. A palavra deriva do grego (“angio”: vaso; “génese”, criação) e explica a capacidade que células tumorais têm, em situações de “hipóxia” (baixos níveis de oxigénio), de produzir fatores que estimulam o crescimento das células endoteliais. Ao promover a expansão dos vasos sanguíneos, as células tumorais mantêm o acesso ao oxigénio e nutrientes, podendo multiplicar-se, crescer, favorecendo a progressão tumoral.
Este conceito foi inicialmente rejeitado pela comunidade científica e médica, que liminarmente recusava acreditar que novos vasos pudessem ser criados em resposta a estímulos produzidos por células tumorais em crescimento. Folkman teve várias rejeições de projetos submetidos para financiamento por entidades públicas, tendo recorrido a apoio de fundações privadas, e demorou mais de 12 anos até – ao isolar e caracterizar o primeiro fator “pró-angiogénico” produzido por células tumorais – conseguir convencer os acérrimos críticos. O legado deixado por Judah Folkman, as suas descobertas e metodologias desenvolvidas, ao longo de uma extensa carreira, é imenso, tendo contribuído para a criação de uma nova área de Investigação em biomedicina e no estudo do cancro. Na verdade, as terapias anti-angiogénicas são atualmente uma realidade no tratamento de vários tipos de cancro, nomeadamente quando combinadas com outros fármacos, bem como de doenças oftalmológicas para as quais existem mais de 12 fármacos (aprovados pelas agências internacionais) cuja função é bloquear a produção e/ou a função dos fatores que estimulam o crescimento destes novos vasos sanguíneos.
Há características frequentemente associadas à profissão de cientista, incluindo (entre outras) a persistência e a criatividade. Nos exemplos citados, que poderiam ser multiplicados por várias ordens de grandeza, a persistência – por demais evidente – foi possível pelo apoio institucional e financeiro existente, a diferentes níveis e de diferentes formas. A estabilidade, associada à persistência e à criatividade, foi e é fundamental para compreender a biologia que faz o nosso corpo funcionar e para identificar novos alvos terapêuticos, neste caso, para o tratamento do cancro.
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