Paris, 1932. Uma mulher é fotografada sentada numa esplanada de um café no Bois de Boulogne. Ao lado da mesa, há uma chita de coleira e trela, inquietantemente atenta. A mulher será francesa? O animal será seu? E os homens que vemos à conversa em segundo plano estarão a perguntar-se o mesmo?
Por essa altura, a cantora e bailarina americana Josephine Baker passeava-se pelas ruas da capital francesa na companhia de Chiquita, a sua chita de estimação que também a acompanhava nos espetáculos. Mais do que uma vez, o bicho saltaria do palco para o fosso da orquestra, provocando um tumulto. Mas, quando as duas desciam os Champs-Élysées, os sussurros de quem se cruzava com elas eram quase todos só por causa da coleira de diamantes de Chiquita.
No início do século passado, ter um animal exótico em Paris não era politicamente incorreto – era uma moda. Ficaria famosa a leoa de Marguerite Durand, uma atriz e jornalista que se tornou conhecida pelas suas ideias feministas, acabando por fundar um jornal só com redatoras mulheres, La Fronde, e por concorrer a umas eleições municipais. A leoa, que lhe fora oferecida pelo governador da África Ocidental Francesa, chamava-se ironicamente Tiger e apareceria com ela na capa do Femina, em abril de 1910.
Marguerite Durand talvez se tenha inspirado em Sarah Bernhardt, lemos num livro que reúne a biografia de oito feministas. A atriz francesa gostava tanto de animais exóticos que, conforme as fontes, chegou a ter em casa seis leões, uma chita, um lobo, um macaco chamado Darwin, uma jiboia e Ali-Gaga, um jacaré que bebia champanhe.
Mais excêntrico só o escritor e poeta Gerard de Nerval que, num dia da primavera de 1841, seria visto a descer os degraus do Palais Royal, em Paris, precedido por uma lagosta presa a uma fita azul. O bicho tinha nome – era o Thibault – e a sua história foi contada pela primeira vez pelo escritor e jornalista Théophile Gautier, amigo de Nerval. Segundo Gautier, o poeta não percebia por que razão os médicos se deviam preocupar com o seu comportamento, e defendia-se assim:
“Por que deveria uma lagosta ser mais ridícula do que um cão? Ou um gato, ou uma gazela, ou um leão, ou qualquer outro animal que uma pessoa escolha levar a passear? Eu gosto de lagostas. São criaturas pacíficas e sérias. Conhecem os segredos do mar, não ladram, e não devoram a nossa privacidade como os cães. Goethe tinha uma aversão aos cães, e não estava louco!”
Os artistas eram particularmente atraídos pela beleza dos felinos. Consta que a escritora portuguesa Veva de Lima, como era conhecida Genoveva de Lima Mayer Ulrich também teve um leopardo bebé como animal de estimação. Em sua casa, a escritora (que era filha de Carlos Mayer, um dos “Vencidos da Vida”) iria ter um dos últimos salões literários de Lisboa e organizar festas que pareciam saídas dos contos das Mil e Uma Noites. São vários os relatos que descrevem as duas escadarias da casa atapetadas com peles de leopardo – umas “escadas felinas”, chamar-lhes-ia mesmo o historiador José-Augusto França.
Regressemos agora à fotografia com que abrimos este artigo e que de vez em quando aparece nas redes sociais. O seu autor é o lendário Alfred Eisenstaedt (1898-1995), um fotógrafo de origem alemã que, ao longo de várias décadas do século passado, iria captar cenas do quotidiano como poucos.
A sua fotografia mais conhecida é O Beijo, em que vemos um marinheiro a beijar uma enfermeira, em plena Times Square nova-iorquina, celebrando, assim, o dia da vitória sobre o Japão. A imagem não teria direito à capa da edição de 27 de agosto de 1945 da revista Life, onde Eisenstaedt trabalhava, mas aquele beijo iria tornar-se-ia num símbolo do fim da Segunda Guerra Mundial.
Eisenstadt já fizera história anos antes, em junho de 1934, ao conseguir fotografar o primeiro encontro entre Adolf Hitler e Benito Mussolini, em Veneza, Itália. O aperto de mão entre os dois ditadores seria o prenúncio da escalada no fascismo na Europa e mais um marco na sua carreira. Mas há muito mais no seu trabalho como fotojornalista que ajuda a contar parte do século XX.
Em 1932, quando fotografou aquela mulher sentada com uma chita de estimação a tomar chá numa esplanada do Bois de Boulogne, Alfred Eisenstaedt já estava a trabalhar como freelance para a Associated Press. Usava uma Leica de 35 mm que fora inventada pouco tempo antes, uma máquina tão pequena que – dizia ele – deixava as pessoas à vontade. “Podia ser um amigo que estava ali.”
Tinha começado a fotografar com uma Eastman Kodak N.º 3, uma pouco discreta câmara de fole que um tio lhe oferecera aos 14 anos. Mas seria só após a Primeira Guerra que se interessaria pela fotografia. Ferido em ambas as pernas por uma granada, esteve um ano a recuperar o andar; aproveitou, então, esse tempo para aprender a usar aquela máquina.
Antes de descobrir o fotojornalismo, Eisenstaedt iria trabalhar como vendedor de cintos e botões, mas já estava apaixonado pela fotografia e gastava todo o dinheiro que poupava a comprar novo equipamento. Até que um dia conseguiu vender uma fotografia ao jornal Der Welt Spiegel. Tinha 31 anos e decidiu tentar viver de fotografar.
Tudo mudaria quando emigrou com os pais para os Estados Unidos, dois anos depois de Hitler subir ao poder. Foi em Nova Iorque que Eisenstaedt conheceu os fotógrafos Margaret Bourke-White e Henry Luce, que o convidaram a fazer parte de um projeto que nasceria em 1936: a renovada revista Life. Bourke-White e Luce já conheciam o seu trabalho, nomeadamente as fotografias que publicara no jornal Berliner Illustrierte Zeitung, que o enviara em reportagem à Etiópia.
O resto é história ou História, se preferirem. Basta uma rápida pesquisa na internet para nos deliciarmos com uma imensa galeria de imagens que tanto traz um tenso Joseph Goebbels, a olhar de lado para o fotógrafo, que era judeu, como um grupo de crianças espantadas, a assistirem a um teatrinho de fantoches, em Paris. O que diriam os miúdos se vissem uma mulher de chita pela trela?