“Movo-me por causas, mas se houver candidatos que queiram trazer os casos, cá estaremos para os discutir”. Sem nunca citar o nome de André Ventura – nem responder aos ataques de que foi imediatamente alvo, logo que anunciou ser candidata, por parte do líder do Chega e também candidato às presidenciais – Ana Gomes fez uma apresentação contida, racional e pouco dada à picardia, como se estivesse a guardar as granadas que esconde à cintura para uma fase posterior. Nitidamente, nesta sua apresentação, procurou combater a imagem de “rebelde indignada”, para assumir, o mais possível, uma pose de Estado que não parece muito natural nem, sinceramente, muito capaz de disputar um eleitorado de protesto que pode resvalar para o canto de sereia de André Ventura. Ana Gomes, com isso, revela, porém, uma ambição que vai para além do nicho de mercado: com vários recados para dentro do PS – “os socialistas pensam pela própria cabeça, não pode ser só uma pessoa a decidir quem o PS apoia, porque o PS é um partido democrático, recebi apoios de dirigentes atuais do PS, espero que o meu partido faça uma reflexão e um debate democrático sobre matéria tão importante como uma eleição presidencial, não estou a dividir o PS porque o PS não apoia outro candidato”… – enviou também mensagens à esquerda: “Sou amiga de Marisa Matias, não sou de dividir a esquerda, mas de a unir e federar, tenho pena que não tivesse exisitido uma nova coligação entre o PS e os partidos à sua esquerda”. Ana Gomes não podia ser mais óbvia no apelo a uma grande votação do povo de esquerda, embora sem ser explícita no apelo de que, na hora da verdade, os candidatos apoiados pelo BE e pelo PCP desistam à boca das urnas. No fundo, Ana Gomes aposta numa vaga de fundo, vinda das bases, suficientemente forte para influenciar as cúpulas dos patidos a pensarem na possibilidade.
Evitando o confronto com Ventura, elogiando Marisa e Marcelo Rebelo de Sousa – e este foi o encômio mais inesperado, vindo de alguém que quer apresentar-se como challenger do statuo quo… – Ana Gomes tocou todos os violinos que tinha à mão, abrindo o seu grande regaço a toda a gente como uma espécie de candidata a Mãe da Nação.
Ana Gomes tocou todos os violinos que tinha à mão, abrindo o seu grande regaço como uma espécie de candidata a “Mãe da Nação”
Em condições de laboratório político, Ana Gomes teria possibilidades de ser eleita, derrotando o super favorito. Nesse laboratório de cientistas malucos, bastaria aos partidos à esquerda embalarem ao som dos tais violinos e desistirem a seu favor, à última hora – veremos, pelo tom dos debates, se é para aí que vamos – para lhe darem um segundo lugar incontestado. É que, ao mesmo tempo, não lhe seria difícil levar atrás de si uma forte falange do eleitorado socialista, sobretudo se Costa não declarar apoio explícito a Marcelo. Finalmente, esperar pela ajuda de André Ventura e pela dimensão da sua dentada no eleitorado de direita, roubando essa fatia a Marcelo. Tanto bastaria, sempre na redoma de um hipotético laboratório político, para forçar o atual PR a uma segunda volta. Depois, na segunda volta, a tradicional maioria sociológica de esquerda faria o resto.
O problema é que, do laboratório, teremos de passar para as condições naturais. E estas são decisivas: A tal maioria de esquerda já existia há cinco anos (a esquerda tinha acabado de montar a geringonça com base no resultado conjunto obtido nas legislatvas anteiores) e, mesmo assim, Marcelo ganhou à primeira volta. A penetração do atual Presidente em todos os eleitorados é praticamente impossível de combater. Depois, vem aí uma longa campanha de casos, sujeiras, golpes baixos, fake news e debates imprevisíveis, em tempo de pandemia, que não se sabe quem prejudicarão ou quem favorecerão. Finalmente, a máscara de boazinha que Ana Gomes montou para esta apresentação, pode cair e afastar o eleitorado moderado que hoje procurou. Nestas condições, Marcelo, mesmo numa segunda volta, seria hiper-favorito. Uma coisa é certa: sejam quais forem as decisões, se a esquerda quiser retirar gás à extrema-direita, tem de colocar um dos seus candidatos em segundo lugar. Agora, eles lá saberão.