Primeiro, vamos aos números: 1,9 milhões de pessoas correm o risco de passar fome entre janeiro e março de 2020; 89 mil desalojados ainda fazem dos centros de reassentamento as suas casas; mais de 1,1 milhões de crianças precisam de assistência por carência alimentar; centenas de crianças e jovens nunca voltaram à escola depois da passagem do ciclone Idai pela região centro de Moçambique; há cerca de 120 organizações não governamentais (ONG) ainda a operar no país; a ajuda humanitária representa 70% do suprimento das necessidades em Moçambique; as necessidades de financiamento para reconstrução superam os 3 mil milhões de dólares…
Ao longo das semanas, ao invés de melhorar, o número de pessoas em necessidade naquela antiga colónia portuguesa parece aumentar ou, pelo menos, manter-se constante. Apesar de todas as ajudas recebidas, das várias campanhas de angariação de fundos e do trabalho ininterrupto que equipas nacionais e estrangeiras continuam a fazer no terreno, os relatórios de várias organizações internacionais não deixam grande margem para dúvidas: há demasiadas pessoas em necessidade, num país onde a violência também tem escalado, motivada por questões políticas mas, crê-se, também pelo aumento das carências.
Alerta máximo
Ainda no final da semana passada o governo do Reino Unido secundava (novamente) as recomendações dos Executivos canadiano e norte-americano, e desaconselhava os turistas a fazer viagens no centro de Moçambique, nomeadamente nas estradas nacionais 1 e 6.”Evite essas áreas quando possível e, se for o caso de viagens essenciais, reveja os seus planos de segurança pessoal”, lê-se num alerta de segurança divulgado no portal do Alto Comissário do Reino Unido em Maputo. As deslocações para a região de Cabo Delgado também têm sido desaconselhadas por vários países, nas últimas semanas, numa altura em que a violência não para de subir na região.
A VISÃO tem tentado acompanhar, ao longo dos últimos meses, a evolução dos trabalhos de reconstrução da região centro daquele país, onde mais de 2 milhões de pessoas foram afetadas pelo ciclone Idai, o pior da história da Moçambique, em março de 2019. O retrato é desolador: fome, desemprego, falta de abrigo, escassez de alimentos, ausência de apoio das autoridades.
Fontes envolvidas em alguns dos processos de reconstrução confirmaram à VISÃO que o facto de a Beira ser considerada uma região bastião da RENAMO (o partido da oposição, que voltou a perder as eleições gerais de outubro para a FRELIMO) não está a ajudar a que os projetos necessários sejam postos em marcha. Aplaude-se o investimento estrangeiro, que pelo menos vai recuperando a zona central da Beira, agradece-se o esforço das organizações internacionais que reerguem os complexos de saúde e lamenta-se o cansaço que já se faz sentir, mesmo entre a comunidade portuguesa. “Sente-se que as pessoas estão cansadas. Há quem fale em vir-se embora entretanto, ou pelo menos no médio prazo. Pessoas que estão há anos em Moçambique, mas que estão desanimadas”, afirmou recentemente uma fonte à VISÃO.
Preços escalam
Depois de dois anos consecutivos de colheitas cujos resultados ficaram abaixo do normal, o ciclone Idai agravou ainda mais as necessidades alimentares de uma população que vive, na sua grande maioria, de agricultura de subsistência. Dados recententes da Rede dos Sistemas de Aviso Prévio contra a Fome (FEWS NET, na sigla em inglês) revelam que o preço das sementes de milho disparou entre 6% e 31% de outubro para novembro, e que estão agora 40% a 75% acima da média dos últimos cinco anos.
Num dos países mais pobres do mundo, a escalada dos preços dos alimentos – e recorde-se que a farinha de milho é a base da alimentação moçambicana – significa fome.
O facto de entretanto ter começado a época das chuvas – e foi precisa apenas uma tempestade tropical no início de dezembro para voltar a inundar alguns bairros da Beira – também tem dificultado a vida às famílias, que não conseguem que os solos recuperem e voltem a ser férteis. No mesmo sentido, os campos de reassentamento, onde ainda hoje estão abrigados milhares de desalojados, ficam tão longe do mar – por uma questão de segurança – que aqueles que tinham na pesca o seu sustento também não sabem como alimentar as famílias.
Que lares há hoje em Moçambique?
Centenas de crianças ficaram sem pais, outros tantos pais ficaram sem filhos, e outros tantos lares ficaram sem teto. As famílias do centro de Moçambique viram a sua vida mudar radicalmente no espaço de dois dias, com o vento a destruir-lhes tudo e a água a levar o que já não restava. Há centenas de crianças que nunca voltaram à escola depois do ciclone, ou porque têm tanta fome que não conseguem fazer o caminho até lá, ou porque as escolas ainda não foram reconstruídas ou porque os seus parentes diretos desapareceram e elas foram levadas para comunidades onde ainda lhes restava algum familiar. As ONG que se dedicam a ajudar a melhorar a educação naquele país não têm tido mãos a medir para conseguir restituir alguma normalidade à vida das crianças.
A preocupar as autoridades tem estado, também, a saúde mental das populações afetadas pelo ciclone, sobretudo dos mais novos. Para as crianças, o impacto de uma tragédia desta dimensão obrigaria a um acompanhamento psicológico que as ajudasse a superar o trauma. No entanto, e ainda que vários psicólogos tenham integrado as equipas de emergência logo após o Idai, a falta de especialistas é agora outro problema.
Apenas os campos de reassentamento contam com um médico desta especialidade, e atualmente, há pelo menos 20 campos dos 66 que já não têm qualquer equipa de ajuda humanitária a geri-los, segundo um relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, sigla em inglês). O que significa que, mais uma vez, as pessoas estão abandonadas à sua sorte, sem cuidados de saúde ou assistência que não a alimentar.
Economia otimista
Entretanto, as instituições internacionais olham com algum positivismo para a recuperação económica do país em 2020. O Fundo Monetário Internacional (FMI) esteve em missão técnica em Moçambique no final de novembro, e deixou uma mensagem animadora – recorde-se que esta instituição bloqueou os apoios a Moçambique na sequência do caso das ‘Dívidas Ocultas’. O responsável técnico da missão, Ricardo Velloso, afirmou em comunicado que “as perspetivas para 2020 são de uma forte recuperação da atividade económica e de uma inflação baixa. Espera-se que o crescimento do PIB real venha a atingir 5,5% em 2020, em relação aos 2,1% projetados para 2019, suportado pelos esforços de reconstrução pós-ciclones, uma recuperação na agricultura, e pelo estímulo económico de um relaxamento gradual adicional das condições monetárias e da regularização dos pagamentos internos em atraso aos fornecedores”.
No mesmo documento, e tal como a VISÃO já tinha dado conta, Velloso salientava que os projetos de exploração do gás natural liquefeito, na região de Cabo Delgado também contribuirão positivamente para o desempenho positivo da economia nacional.
Recorde-se que a região de Cabo Delgado tem estado na mira dos investidores estrangeiros que se encontram atualmente a explorar as reservas de gás natural liquefeito da região. Empresas norte-americanas, italianas, francesas e indianas têm marcado presença no território, e ainda recentemente foi assinado mais uma concessão de exploração por um consórcio internacional que conta com companhias como a Eni, a Total ou a Exxon Mobil.
Os investimentos globais na região deverão rondar os 50 mil milhões de dólares e colocar Moçambique entre os principais produtores de gás natural liquefeito do mundo. Está, aliás, a ser também planeado o nascimento de uma nova cidade junto às zonas de extração, onde deverão viver 150 mil pessoas – incluindo os atuais 15 mil habitantes da zona, a peníncula de Afungi. A ‘cidade do gás’ está orçamentada em, pelo menos, €1,5 milhões, revelaram as autoridades moçambicanas durante a 6.ª Cimeira do Gás de Moçambique que aconteceu no mês de novembro.
Olhos no futuro
Apesar da tragédia que se abateu sobre o país, a verdade é que o povo moçambicano é mais resiliente do que se possa imaginar. Em declarações recentes à VISÃO, o coordenador da ONGD Helpo em Moçambique, Carlos Almeida, salientava que “as pessoas são extremamente resilientes – se isto nos acontecesse a nós, portugueses não fazíamos nada. Estes desgraçados põem três pedras, dois paus e uma lona e fazem uma casa”, atira em jeito de exemplo.
Ainda recentemente, recordava o responsável, algumas autoridades visitaram a região de Cabo Delgado, que foi em abril atingida pelo ciclone Kenneth e que se tem visto a braços com graves problemas de violência. Na ocasião, ao invés de pedirem ajuda, as pessoas afirmavam apenas: “Nós estamos bem e estamos felizes porque estamos vivos. E vocês estão cá a visitar-nos e isso deixa-nos muito felizes”, lembra Carlos Almeida.
Sinais de esperança que vêm de um país que perdeu quase tudo, e que tenta, mais uma vez reconstruir-se do nada. Mensagens que nos avivam a memória, quase um ano depois de nos termos unido em torno de uma causa cuja lembrança se foi, entretanto, perdendo na passagem voraz do tempo. E ali, entre as chuvas, a lama e a falta de comida, os olhos só podem olhar para 2020 com a expectativa de que mais uma vez se lhes sejam estendidas mãos que aplaquem a fome, a escassez de água e, mais grave que isso, a ausência de oportunidades.