O que não nos falta é mar e, no entanto, parece que a incorporação de algas da nossa costa numa refeição é um campeonato de primeira divisão, só acessível a chefes estrelados que vão buscar matéria-prima aos centros de investigação universitários. Esta ideia feita, como veremos ao longo do texto, não poderia estar mais errada. Até porque, pelas suas propriedades, as algas são cada vez mais protagonistas de uma alimentação a olhar para o futuro.
Não há uma alga igual à outra, mas a riqueza em propriedades que nos são benéficas é comum a todas as espécies. Em primeiro lugar aparece a proteína, e foi justamente atrás dela que se começaram a produzir algas no Japão, após a Segunda Guerra Mundial. Porém, a fibra e os ómegas também têm muita importância, além da clorofila, do iodo, do cálcio, do potássio, do magnésio, do ferro e dos antioxidantes.
Na realidade, anualmente, produzem-se 30 milhões de toneladas de algas em todo o mundo, a maioria delas na Ásia e 90% em modo aquacultura. No entanto, apenas 53% dessa produção se destina à alimentação (ver caixa Os muitos usos das algas). A China, o Japão, a Coreia e Nova Zelândia são os principais responsáveis por este tipo de cultura e o Norte da Europa também não lhes fica atrás.
Mas não é fácil para este alimento entrar no núcleo restrito a que a União Europeia deu luz verde para ser comido. Primeiro, é preciso submetê-lo a análise de forma a transformar-se numa novel food. Esse processo custa muito dinheiro (cerca de meio milhão de euros) e leva bastante tempo, dois fatores que bloqueiam muitas submissões. No caso das macroalgas, a legislação (EC258/97) restringe a sua utilização generalizada na alimentação humana e animal, admitindo apenas 22 espécies como comestíveis, apesar de não haver registos de algas tóxicas. Noutras partes do mundo, muitas dessas espécies não autorizadas entram na dieta das populações.
Há cerca de 15 anos que Luísa Barreira, 50 anos, se dedica a estudar microalgas. “São de fácil crescimento, só precisam de água, dióxido de carbono, luz e azoto. Trata-se de um processo muito sustentável, pois ainda libertam oxigénio”, explica a investigadora do Centro de Ciências do Mar (CCMar), da Universidade do Algarve. Visto deste prisma, seria uma excelente alternativa proteica à soja, mas a produção é cara e, por isso, o preço do produto gerado não consegue entrar nessa competição.
Luísa e a sua equipa recolhem algas, isolam espécies novas e investigam quais as suas aplicações biotecnológicas para combustíveis, alimentação para peixes, consumo humano e cosmética. Foi neste contexto que identificaram a CTP4, na ria Formosa, que Leonel Pereira, 49 anos, adotou para “reproduzir o mar numa colherada”. O chefe andava nisso há mais de uma década, tentando recriar o sabor do plâncton com cabeças de carabineiro, percebes ou ouriços-do-mar, até ao dia em que se aproximou da investigação do CCMar e bateu com o nariz e o palato nesta microalga. Com a Tetraselmis tem sido uma aprendizagem constante, dele e da equipa, que têm de lidar com a desconfiança dos clientes do São Gabriel, em Almancil, especialmente por causa do pão brioche que acompanha o foie gras. Não será para todos, realmente.
Quatrocentos euros o quilo
O registo de Tiago Santos, 31 anos, chefe no Quórum, em Lisboa, é outro, mais orgânico. Fala-se de algas na cozinha e a sua memória leva-o, de imediato, para um arroz de lamejinha com limos que comia com o avô, fragateiro – “uma delícia”. Está habituado a apanhar algas, quer seja no Sado quer no mar, e prefere sempre a Codium, que sabe a percebes, ou a alface do mar. Depois, conserva-as numa salmoura e reidrata-as quando precisa de as usar em algum prato. Ao longo dos tempos, foi estudando novos métodos de utilização na cozinha: em caldos de mar, peixe ou pratos de marisco, para intensificar o sabor. “Ao início, a aceitação não era muito boa. Desde há três anos, por influência da gastronomia oriental, as pessoas foram-se abrindo a este mundo e têm mais predisposição para não o acharem estranho”, nota. No Quórum, por exemplo, o chefe pode servir um puré de alface-do-mar de um verde bastante acentuado. Mas, entretanto, já se deixou da apanha ad doc – hoje só utiliza macroalgas produzidas e, por isso mesmo, 100% controladas.
A bióloga Helena Abreu, 39 anos, é a sua fornecedora e não há mais ninguém em Portugal que produza macroalgas em circuito aberto para a alimentação humana. A Algaplus nasceu em 2012 e instalou-se em Ílhavo, numas infraestruturas abandonadas de sal e piscicultura. Hoje, além das macroalgas que se destinam maioritariamente a consumo humano (e também à cosmética), a empresa dedica-se igualmente à aquacultura para fechar o ciclo de produção. A Algaplus foi pioneira em tudo – não havia identificação biológica, licenças nem modelo de negócio há sete anos. Só foi possível desenvolver a empresa porque sabiam que internacionalmente esse já era o caminho. A aposta está ganha: “Procuram-nos porque aqui temos matéria-prima de qualidade o ano inteiro, com rastreabilidade”, garante Helena Abreu.
O negócio tem corrido tão bem que as máquinas que andam pela exploração agrícola se destinam a triplicar a capacidade de produção, para que o consumo se democratize. O preço pode assustar, já que um quilo de nori, por exemplo, custa entre 100 e 120 euros. No entanto, dizem-nos, rende muito e preserva-se bem. “Ao ingerir apenas um grama de macroalga, fica-se acima da dose diária de minerais, como iodo, cálcio, potássio, magnésio e ferro”, garante a especialista. A influência do sushi foi muito importante para que nos habituássemos a estes novos alimentos, reforça, mas a sua riqueza em propriedades também teve influência no uso caseiro. “Trata-se de um alimento sustentável, local, de valor nutricional elevado, baixo teor calórico, muita fibra, altas doses de proteína e rico em ómegas 3 e 6.” É, por isso, protetor em relação a doenças cardiovasculares e neurodegenerativas.
Com a marca Tok de Mar, criada pela Algaplus, chegaram ao mercado produtos desidratados, frescos ou incorporados noutros, como o sal, para enriquecer receitas, tal como se fosse um legume. Há de aparecer em breve uma gama de refeições preparadas.
Em tempos, o chefe Leonel Pereira criou pratos com macroalgas, mas agora já não lhes liga nenhuma. “Estão banalizadas”, diz, com a angústia de quem constantemente busca inovação. É por isso que, atualmente, anda a namorar a produção da Nécton, junto à ria Formosa. João Navalho, 54 anos, um dos fundadores dessa empresa e presidente da associação portuguesa dos produtores de algas (Proalga), enviou-lhe três amostras da sua produção. O chefe ficou de nariz alerta para uma delas, a Tisochrysis, porque o seu sabor se aproxima do da sardinha. “Já vagueia muita coisa na minha cabeça”, confessa. Porém, nada sairá para a mesa antes do ano que vem, que agora é tempo de testes e reflexão.
A Nécton, em Olhão, também se instalou, em 1997, em 12 hectares de salinas abandonadas, e desde então tem apostado em domesticar estes indivíduos microscópicos. “Só sabemos que eles ali estão por causa da cor da água”, refere João Navalho, apontando para os balões onde as células se reproduzem. “Dividem-se em crescimento exponencial binário. Mas todo o processo é muito dispendioso, com detalhe fino.” Não admira, pois, que um quilo de Nannochloropsis possa subir aos 400 euros.
Esta empresa ainda não comercializa biomassa para alimentação humana, mas é para aí que quer expandir-se, nem que seja para combater os “lóbis da indústria alimentar”. É por isso que optou por integrar o Laboratório Colaborativo da Universidade do Algarve, um consórcio dedicado à criação de novos produtos que possam ser consumidos à mesa. Por enquanto, a Nécton exporta 99% do que produz, especialmente para maternidades marinhas.
Micro ou macro, tanto faz
A Allmicroalgae, com sede em Leiria, também integra esse laboratório que quer expandir a utilização das microalgas na cozinha. Trata-se do maior produtor em circuito fechado da Europa – daqui saem 32 a 35 toneladas por ano. E o grande segredo desta empresa é a fermentação das algas de água doce, atalho que aumenta muito a capacidade produtiva. Depois de germinada, muito mais depressa do que pelo processo normal, a alga entra nos megarreatores, compostos por 300 quilómetros de tubo. Resta acrescentar que a Allmicroalgae pertence à Secil, que que foi criada para que no futuro esta cultura possa captar o CO2 emitido pela cimenteira. A investigação direciona-se neste sentido e ainda na produção de biocombustível, a partir da biomassa seca, o que exigirá muito menos controlo na produção. Enquanto a coisa vai e não vai, apostam, com todo o rigor necessário, nos nichos alimentar (de homens e de animais), cosmético e de suplementos.
Joana Laranjeira Silva, 44 anos, responsável técnica de investigação e desenvolvimento, acentua que para uma produção ótima há que controlar o pH, a temperatura e a luz a que se submetem os seres microscópicos. Depois de transformarem a biomassa em pó, enviam-na para os parceiros com quem desenvolvem produtos inovadores, como barritas de cereais, bolachas, snacks e suplementos. É nesta fase que entra a nutricionista Margarida Eustáquio, 29 anos, responsável de negócio e inovação e por algum atrevimento no lançamento de novos produtos (como a parceria com a geladaria Santini, que, em 2015, lançou um sabor de algas). “Somos muito procurados pelo mercado vegan, porque além de toda a riqueza nutricional, estas algas têm bastante vitamina B12 e grandes doses de proteína vegetal”, explica. Note-se que, no entanto, os consumidores de microalgas são os mesmos das macro.
Tiago Morais, 33 anos, é um dos fundadores da Lusalgae, startup que há três anos está a incubar na Marefoz. Até agora, o foco era a cosmética e até lançou um kit com gel esfoliante, máscara corporal e sais de banho. Mas sentiu que devia desviar-se para a alimentação humana e animal e ainda para o biodiesel. Desenvolveu, então, um projeto-piloto que visa produzir três macroalgas na Figueira da Foz. Hoje, já há uma marca de cerveja artesanal que lhe compra a matéria-prima para fazer a espuma da sua bebida fermentada. A primeira geração de algas, apanhou-as nas praias mais a norte da cidade, aonde costuma ir na maré baixa, de calçado apropriado e olho de lince para as ver agarradas às rochas. Para o prato, não há hipótese, só produção controlada.
Onde encontrar as nacionais
Leonel Pereira, 53 anos, biólogo da Universidade de Coimbra, e autor do livro Macroalgas Marinhas da Costa Portuguesa, está apostado na aplicação destes alimentos nas refeições. Por isso mesmo, dedica-se à divulgação em workshops a que chama Alga à Mesa. Nestas alturas, prepara a sua tarte de nori e perora sobre a necessidade de se escolherem algas atlânticas e de as usar nas receitas tradicionais, e não embarcar apenas pela culinária asiática. “Devemos adaptar o nosso receituário, como por exemplo usar alface-do-mar numa salada para que o conteúdo proteico aumente. No caso das leguminosas, que também são ricas em proteína, precisamos de muita energia para as digerir. Já o consumo energético das algas é baixo”, afirma Leonel Pereira, que tem nome de chefe mas não o é. No entanto, garante que a presença destes novos alimentos num prato mais não faz do que realçar o sabor dos outros produtos. Além disso, dispensam o uso de sal, porque são naturalmente salgados. Leonel sente que a mensagem até tem vindo a passar, agora o problema é os consumidores encontrarem a matéria-prima destas novas receitas. A maioria das algas nacionais vende-se apenas online.
Susana Mendes, professora na Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar de Peniche, já passou à ação. Com a empresa Calé, pôs no mercado, em 2015, um pão de macroalgas da nossa costa – o primeiro produto desenvolvido no centro de investigação Mare do Politécnico de Leiria, que tem a particularidade de não ter adição de sal. E com a Câmara de Peniche lançou, no ano passado, as bolachas Renda Doce (a parte exterior da bolacha recria a renda de bilros), com algas, claro. No entanto, Susana não revela que tipo usou, para não desvendar o mistério sobre estes dois produtos que fazem furor na zona onde ensina Estatística. “As algas podem ser uma alternativa à carne ou ao peixe e um substituto do sal e, por isso, têm sido objeto de muita investigação.” Fala, especificamente, num puré de batata-doce com algas, de uma sopa instantânea e de um extrato para utilizar como corante natural. Diversificar a oferta precisa-se.
É este o mantra que o consultor gastronómico Nuno Nobre, 43 anos, repete de si para si quando embarca em mais um projeto de divulgação do consumo de algas, alimento que come desde pequenino. No mês que vem, por exemplo, irá abrir um restaurante pop-up, na Universidade Lusófona, em Lisboa, que terá pratos com algas, na onda dos pokes. Ainda em novembro, irá fazer uma saída à maré vazia, na praia de Ribeira d’Ilhas, na Ericeira, acompanhado pelo professor Ricardo Melo, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Esta visita, chamemos-lhe assim, é para toda a gente que estiver interessada em ver as algas no seu habitat, em saber mais sobre estes seres vivos e em fazer uma degustação a seguir. “Há pessoas que nunca apanharam uma alga, por medo ou desconhecimento. Trata-se de mais uma estratégia de recuperação deste recurso marinho. Não é só pelo sabor, mas pelo bem que faz ao ambiente”, atesta.
Na base da cadeia alimentar
Nos dois mil metros quadrados da unidade experimental de Lisboa da A4F, desenvolvem-se muitos projetos de investigação. Nesta espécie de recreio dos cientistas, a seguir ao ambiente controladíssimo do laboratório prestam-se serviços aos clientes, experimentam-se vários tipos de água, criam-se condições reais, dá-se escala. “Temos sempre uma visão industrial para reduzir o custo de produção e podermos competir com outros mercados”, explica Nuno Coelho, 55 anos, CEO desta prestadora de serviços.
Foi com essa lógica que nasceu o Ecobusiness Park, instalado em Santa Iria da Azóia, junto à fábrica Solvay. Luís Vieira da Silva, 52 anos, está à frente da Algatec, empresa que está a tomar forma para produzir microalgas, aproveitando o CO2 da indústria (a mesma ideia em desenvolvimento na Secil). As obras nos 14 hectares estarão concluídas no verão de 2020, mas no laboratório já se trabalha com afinco no acompanhamento da produção e da qualidade do inóculo. Hoje, já saem daqui três toneladas, mas a capacidade há de ser de 270, com quatro formas de cultivo diferentes. “Vamos apostar na alimentação, na suplementação e na biorrefinaria para extrair nutrientes. A nossa estrela será o óleo de ómega 3, mas teremos também produtos ricos em proteínas e em hidratos de carbono”, revela este antigo agente imobiliário.
Luís sabe hoje, porque mudou radicalmente de vida e teve de aprender a matéria, que as microalgas estão na base da cadeia alimentar e que comê-las é ir à fonte dos melhores nutrientes. Sem grandes mossas para o planeta.
Os muitos usos das algas
Rações para animais – Atualmente, esta é a área em que os produtores de algas mais apostam, especialmente para alimentação de peixes de aquacultura. No caso das vacas, o seu uso pode até diminuir a emissão de gás metano por estes animais.
Biocombustíveis – Estes seres vegetais têm-se mostrado muito eficientes na produção de combustíveis de baixo impacto ambiental e a sua produção neste caso nem é tão rigorosa como para outros fins.
Fertilizantes – A Vitacress, por exemplo, já está a testar a utilidade das microalgas no solo, como forma de compensar as emissões de CO2, pelas suas características amigas do ambiente.
Cosmética – Como as algas têm muitas propriedades antioxidantes e outras que a indústria cosmética gosta de utilizar, elas estão na base de um cada vez maior número de produtos de beleza.
Tratamento de águas – Uma equipa de investigadores da Universidade de Aveiro já demonstrou que nanomateriais preparados a partir de biopolímeros extraídos de algas conseguem remover poluentes da água.
Têxteis – Já é possível substituir os pigmentos sintéticos utilizados nesta indústria por outros retirados às algas.
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