O gato namora o papagaio – contempla-o, ronrona, mia-lhe, quere-o. Junto ao vaso dos trevos, que ao anoitecer baixam os corações para aconchegar as almas e dormir, enrola-se no cesto a sonhar que é ave, a sonhar que voa sobre a varanda do Sr. Tibúrcio, também enrolado e sozinho no leito, mas entre marasmo e penas.
Todos os dias, o gato desperta dentro do mesmo desvario – viver para namorar o papagaio. Mal a luz se encastela sobre os telhados das casas e os trevos no vaso arrebitam, o bichano espreguiça-se todo, boceja e concentra-se no outro lado, perdido de amores. Ainda é cedo, ainda é cedo – sabe-o. Faço-lhe uma festa, corro meia janela, deixo o ar rarefeito da noite tomar um banho de sol e fresquidão – escapar. Na marquise, dependurado no cesto, aguarda de olhar sofrido, fixo na pardalada que saltarica entre os vasos do Sr. Tibúrcio, ainda a erguer o esqueleto da cama, a calçar os chinelos. São de argila tosca, os vasos – sardinheiras, margaridas, alecrim, chá-príncipe, outras de que desconheço o nome. Arrisco dizer, que pelo brilho afogueado, umas serão cravos-de-burro.
À janela, inclinado sobre o tapete que envolve a borda do cesto, o gato descura a lavagem do pelo. Esquece-se do interior da casa, dos biscoitos no prato, do arranhador de corda. Surdo e mudo, projeta-se no espaço que daí a instantes, do outro lado da rua, estará preenchido por uma gaiola com um pássaro verde, gigante e esquisito. Impaciente, sabe porém, que antes de tudo acontecer, passará primeiro o camião do lixo, eu a colocar roupa no tambor da máquina, a limpar as areias, a varrer o tapete, a encostar a porta da marquise. Só então, sucederá o esperado – quando já estiver desacompanhado, imerso na sua ambiciosa contemplação.
Vem de lá o Sr. Tibúrcio em pijama, barrete e chinelos – estremunhado -, a gaiola dependurada na mão, o braço magro esticado no ar. Depois de enviuvar, está cada vez está mais sumido, vem cada vez mais tarde arejar o bicho, para desespero do pássaro, desconsolo do gato. Vem mais tarde regar os vasos, quando não se esquece deles – dias, semanas; mais tarde colocar o estendal na varanda – muitas vezes já quando o Sol vai posto. Dantes, todos os vasos estavam preenchidos e farfalhudos. Agora, a um ou dois já só resta ossatura e terra. Entre o espaço vazio, descobre-se a ferrugem gradeada contra a marmorite, os tornozelos raquíticos do Sr. Tibúrcio que já não vem de fato à varanda, mas em pijama, a arrastar os chinelos, o cabelo crescido e desgrenhado, a barba por desfazer, os olhos remelosos e colados.
O gato não se sente afetado por estas diferenças. Apenas o preocupa a gaiola, o papagaio, os passos de dança sobre o madeiro, o movimento do pescoço enquanto palra, o quebrar das cascas enquanto come, os estalidos quando acontecem. Talvez, o Sr. Tibúrcio se esqueça de mudar a água um dia ou outro, colocar a comida mais apropriada – como se esquece de recolher a roupa algumas vezes, uma noite de agasalhar a gaiola.
O gato anda solto pela casa. Depois de olhar para o papagaio, aquilo de que mais gosta de fazer é de subir ao cesto da roupa na casa de banho para chegar ao armário. Um copo baixo, de vidro, está ali de propósito. Ele não sabe desse propósito, quando sobe ao cesto e agarra do copo um cotonete, foge com ele casa fora em malabarismos dignos de uma fanfarra. Salta, atira-o, sacode-o, rebola, atira-o e sacode. Desfia as extremidades de algodão que ficam algumas vezes dependuradas nas unhas – bufa. Cansado, esconde por fim a baqueta desfeita sob o primeiro tapete.
Quando não está ocupado com isto; quando não está relaxado a dormir, não está a aliviar-se nas areias, não está a comer, a perseguir moscas; não está a mascar folhas dos vasos, a fazer cavalos nas esquinas – nas pernas das cadeiras -, a coçar as unhas nas franjas dos tapetes; quando não está a empurrar objetos dos móveis para o chão, não está escondido por detrás das cortinas, debaixo das colchas – o gato está no cesto de vime de orelhas afitadas, bigodes esticados, olhos firmes no papagaio ou no lugar onde este deveria de estar.
Quando o Sr. Tibúrcio pousa a gaiola e vira costas, o gato estica-se todo para ver melhor – mia e treme. Começa o galanteio. Sempre que o papagaio se mexe, o gato mexe-se com ele – meneia o rabo como se dançasse, levanta uma pata e recolhe-a, levanta-a e recolhe, bate os maxilares como se falasse. Ama-o. Ama-o, mesmo. Ocasiões há em que absorto, apanha, tritura e engole uma vareja.
O Sr. Tibúrcio nunca olha para este lado. Está cansado de ver, de olhar, de tudo. Dantes, estava cansado da mulher e discutiam por tudo e por nada, até por causa do tempo, do papagaio, da comida, da água, dos vasos ensopados, da marmorite riscada. Agora, cansado de estar cansado, de estar sem mulher, já deixou morrer outro vaso – os cravos-de-burro. Já o enfiou numa saca do supermercado, desceu a cambalear as escadas, atravessou a rua em chinelos e encostou-o ao ecoponto.
O Sr. Tibúrcio está cansado do papagaio. Tanto, que deixou de falar-lhe enquanto lhe põe a comida, muda-lhe a água, limpa a gaiola – esquece-a na varanda com a portinhola aberta.
O Sr. Tibúrcio deixou o leite ferver fora. Para limpar a placa, esfregou-a com uma rodilha de aço – fez uma grande asneira. Sentou-se à mesa de portátil aberto. Agora tem internet – ouviu dizer que é uma boa companhia e que dá jeito. Escreveu: “placa vitrocerâmica problemas”. Leu tudo sobre fogões, placas e fornos; tudo sobre produtos de limpeza. Ficou cansado e com palpitações – terá de comprar uma nova.
Uma tarde, umas cuecas mal presas no estendal, levantaram voo em direção à rua principal. Quando aconteceu, o gato desviou a atenção da gaiola. Intrigado, acompanhou por segundos o voo alienígena. O Sr. Tibúrcio não deu pela falta das cuecas quando recolheu o estendal, nem depois disso.
Desde que deixou de sair à rua, passa horas na internet e anda pior das costas – mais curvado e desolhado -, como se estivesse doente, por razões desconhecidas, envergonhado. Na semana de Natal, enviou e-mails com postais a todos, mesmo a desconhecidos. Recebeu menos do que um quatro daqueles que mandou – alguns, em língua estrangeira que não conseguiu perceber, outros já depois dos Reis.
Os dois filhos do Sr. Tibúrcio emigraram, e os vizinhos não conversam muito com ele. Desde o falecimento da mulher que anda mais aborrecido, reclama de todos os barulhos e movimentos do prédio. Certo dia, discutiu até à exaustão com a mulher da limpeza que é obstinada e que não baixou a guarda. Derrotado, achacou. Ficou três dias fechado sem levantar as persianas, sem colocar o papagaio na varanda. Recluso, abriu uma página no Facebook para fazer amizades e mentiu. Pôs uma fotografia de há vinte anos atrás, disse que era católico, trabalhador e que gostava de música clássica e de sair. Mentiu. Recebeu e respondeu a muitas mensagens. Mentiu.
Na Semana Santa, esteve um dia escaldante e o Sr. Tibúrcio esqueceu-se novamente dos vasos. Morreram mais dois – as sardinheiras. Aborrecido, mas já mais experiente nas andanças da internet, aventurou-se ainda mais na rede – fez o download de PowerPoints de flores e jardins, e enviou-os aos amigos e conhecidos. Enganou-se e enviou um XXX a todos. Recebeu minutos depois uma chamada do filho. Pai? Espantou-se. Gaguejou, ficou branco como a cal, as pernas trémulas, o peito angustiado. E agora? Deixe lá pai, acontece. As pessoas hão-de entender, esquecer. Nessa noite não jantou – esteve três horas seguidas a fazer telefonemas por causa do vírus. Esqueceu-se da gaiola na varanda, outra vez – aberta. Não tomou banho e deitou-se sobre a cama com a roupa do dia.
O gato estava debruçado no cesto quando o camião do lixo arrancou, o papagaio aproveitou o descuido do Sr. Tibúrcio e escapuliu-se em direção ao telhado. O gato acompanhou o voo espaçoso e colorido, lembrado das cuecas que também voaram um dia. Levantou a pata, esticou o pescoço, bateu os maxilares à medida que o papagaio voou em direção a outro telhado mais próximo. À passagem, escutou um racáu, um miau – estremeceu. Esticou-se todo e lançou-se a voar. Ama-o. Caiu sobre o toldo do vizinho do rés-do-chão com o coração a latejar. Teve sorte – só partiu um dente.
Sentado à mesa da sala, o Sr. Tibúrcio em pijama e de portátil aberto, olhou para a gaiola vazia, para a varanda sem vasos, para a janela sem gato, para a cama sem mulher. Não se levantou. Escreveu: “flores solidão“. A vida, era afinal uma ilha feita de ilusões, desejos e solidão.