AMOR MOTOR DE VIDA
Ponto 1 – Era um dia de Janeiro, frio e chuvoso. Ela fazia 30 anos. Desligada de um facto tão importante para alguns que não para ela, trabalhava com a dedicação costumeira atenta a que tudo saísse perfeito como sempre lhe haviam ensinado. Mais tarde, regressaria ao lar que partilhava com os seus. Talvez algum familiar lhe fizesse um bolo simples, lhe oferecesse algum adorno para o cabelo… Mas sobre isso nem pensava, tão remota era a hipótese de acontecer.
As seis horas da tarde aproximavam-se. Começou a pôr em ordem a secretária: papéis cuidadosamente empilhados por ordem de importância, lápis afiados e canetas colocadas no recipiente apropriado, gavetas encerradas. Ainda voltou atrás para colocar a cadeira encostada à secretária num gesto de minúcia vindo de um raciocínio equilibrado e responsável.
O local onde trabalhava desde muito nova situava-se para os lados do Teatro Micaelense, ali quem desce para a rua da Misericórdia. Lembra-se que havia por ali um latoeiro. Será que ainda por lá estará? Pensa que é pouco provável, mas um dia destes passará naquela rua a ver se espreita e vê um pouco da sua juventude na loja do latoeiro.
Como disse ao principiar este trabalho, a jovem ainda menina fazia naquele dia 30 anos. Era bonita. Mas quem não é bela como uma princesa na juventude?!
Ao sair, embrenhada que estava no interior dos seus próprios pensamentos, assustou-se com a presença de um antigo conhecido que em tom alegre lhe estende as mãos que transportam um enorme ramo de camélias. Que lindas camélias, meu Deus! Ele não a abraça, não a beija, só o olhar vivo e ardente diz palavras que não podem ser pronunciadas.
Com aquele braçado de camélias – também chamadas rosas do Japão – umas brancas e outras vermelhas caminhou como se levasse um tesouro – devagar, mais silenciosa do que sempre fora, saboreando a representação de um sentimento naquilo que a natureza tem de mais belo, as flores.
Chegando a casa, e tendo aquele dia de Janeiro em que fez trinta anos sido esquecido pelos familiares, recolheu-se ao quarto. Abraçou as flores e sorriu. E lembrou-se do homem que as tinha ido apanhar, com delicadezas de amante, para lhe dizer não dizendo “nunca te esquecerei, jamais me separarei de ti”. E, ao longo de mais trinta anos, contados e recontados pelo tempo dos homens e dos deuses, viveram um amor que ultrapassou o limiar da vida e continua na eternidade.
Ponto 2 – Costumava ir à Tabacaria Açoriana. Pedia um pequeno-almoço frugal e, vestido de luto, comia em silêncio. A tristeza a alastrar à sua volta como o negrume da noite em Terra estranha. Quando eu, ao entrar, o via assim naquele desprendimento da vida parava junto à mesa que ocupava – creio que sempre a mesma – e dizia: – Bom dia, Dr. Acácio, como está? E ele sem responder fazia um sorriso triste.
Outro dia, ao abrir o jornal, vejo que faleceu. Não constituiu para mim nenhuma admiração. É evidente que não sei as causas da sua morte. Mas, pensei: o Dr. Furtado Lima, o Dr. Fernando Aires, o Dr. Homem de Gouveia já não caminham sobre a Terra dos vivos. Será que, além dos seus familiares queridos que partiram antes dele, não estariam os amigos a “chamá-lo” para o animar um pouco e retirá-lo, assim, daquela tristeza que se lhe via nos gestos e nos era revelada nos olhos que pareciam querer desistir?
Por vezes penso no céu como um lugar de amizade, com conversas sãs e cultas, sem palavras vãs, como uma sala imensa repleta de livros e música onde se pode partilhar alegrias e abraçar aqueles que amamos. Se for assim, os olhos do Dr. Acácio já sorriem alegremente.
Dra. Maria da Conceição Brasil
16/01/2012