Inicia-se uma nova legislatura e, com ela, uma renovada oportunidade. Depois de termos assinalado (num artigo aqui publicado a 8 de maio de 2025, sob o título “A conversa do costume”) que a campanha eleitoral pouca ou nenhuma importância tinha dado às questões da Justiça, eis que se conhece o que o Governo tem programado para esta área. Ao longo de catorze páginas, o novo programa para a legislatura foca diversos objetivos que vão desde a valorização das carreiras, à gestão do património da Justiça e dos seus recursos financeiros, à transformação digital, passando pela celeridade processual, sublinhando os direitos das vítimas de crime, a que acresce a questão da organização judiciária, do sistema prisional e de reinserção social, da segurança, da revisão do Código de Execução das Penas, finalizando com o combate à corrupção.
São muitos temas, com muitas metas e, portanto, um conjunto vasto de frentes tendo em mente aquilo que o Governo começa por enunciar de forma lapidar: “A Justiça precisa de uma reforma sólida.”
Em primeiro lugar, cumpre saudar e louvar o ímpeto de ação que o Governo proclama pretender imprimir ao setor da Justiça. Ao longo dos últimos anos tem-se assistido com perplexidade que, apesar dos contributos sólidos, consistentes e aprofundados que as várias profissões jurídicas têm dado nesta matéria, o que sucessivamente se constata é que os mesmos não têm chegado ao porto desejado. E desta forma gera-se, não apenas, uma enorme frustração por parte de quem trabalha no sistema, como daqueles a quem o mesmo deve servir. Em contraponto, quem tem a real competência para realizar as tão necessárias alterações, fica-se, quase sempre, pelas proclamações. Contudo, diga-se, em jeito de alerta, que a vontade não pode toldar a prudência, o equilíbrio e a ponderação, motivo pelo qual, sobretudo em matérias nevrálgicas para a vida dos cidadãos, como é a Justiça, impõe-se que as ditas reformas não sejam fruto do impulso do momento ou, pior, de uma vontade populista ou justiceira de mudar para responder a intuitos que não sejam o de servir as pessoas reais.
Neste contexto, saúda-se como positivo que o Governo coloque suficiente água na fervura quando assinala que uma reforma deve ser executada com um horizonte temporal alargado que vá para além de uma legislatura. A variável geometria parlamentar das últimas legislaturas, bem como a “queda” de sucessivos Governos, não tem, de facto, permitido o estabelecimento de linhas de continuidade nesta área, sendo certo que isso não é o mais desejável numa democracia madura. Com efeito, não é sem algum desânimo que se constata que, desde o malogrado “Pacto para a Justiça”, passando por outros contributos mais recentes, como a Agenda da Reforma da Justiça, acabando na “Carta para a celeridade e melhor Justiça”, todos os estudos, mesmo que muito aprofundados, têm sido simplesmente colocados na prateleira.
Ainda assim, o Governo propõe-se “constituir um [novo] grupo de trabalho composto por especialistas (Universidade, Magistrados e Advogados), para elaboração de anteprojeto para impulsionar a celeridade processual”. Não obstante os recomeços “a partir do zero” permitam antever resultados mais longínquos e não necessariamente consequentes, no que se reporta aos juízes, tal como sempre tem vindo a suceder, a disponibilidade para intervir e colaborar é total, sendo que uma reforma sem os «inputs» de quem está no terreno estaria sempre fragilizada por não contemplar todas as variáveis. Pretende-se, em todo o caso, que se legisle menos, mas com mais acuidade. Que se reforme a Justiça de forma cirúrgica e certeira, mas que se testem os resultados, dando tempo para que os mesmos se consolidem. E, já agora, que se exijam resultados, mas após se fornecerem os efetivos meios e recursos.
Nesta linha de pensamento, também registamos o realismo do Governo quando assinala “a falta de recursos como um dos problemas a ter em conta”, bem como a necessidade de “gestão racional do património da Justiça”. Não é, pura e simplesmente, admissível que órgãos de soberania como os tribunais atuem, em grande percentagem, em edificados arrendados, com altos custos para o Estado, correndo, em certos casos, risco de despejo por estarem sujeitos à possibilidade de um qualquer senhorio não lhes renovar o contrato. Tal como não é admissível que se perpetue uma cultura em que os edifícios dos tribunais são levados até ao limite da sua utilização, sem manutenção de espécie nenhuma, levando a que qualquer intervenção corretiva, porque feita em cenário extremo, seja brutalmente mais dispendiosa para o erário público.
Por outro lado, não podemos deixar de assinalar uma vontade muito clara de “transformar digitalmente” a Justiça. Todavia, cumpre assinalar que não há revolução tecnológica que nos valha quando, por exemplo, os computadores distribuídos aos magistrados estão no limite do obsoleto, com baterias sem qualquer autonomia e com sucessivos recondicionamentos.
A casa não se constrói pelo teto, mas pela base. E os pilares prioritários para o bom funcionamento da Justiça devem assentar no primeiro ponto que o Governo, e bem, assinala: “Dar condições a quem nela trabalha”. Neste âmbito, começa a ficar gasta a expressão “aumento da atratividade das carreiras”, mas a verdade é que sem a preponderância deste elemento, o sistema fica fragilizado de raiz. No que se reporta às magistraturas, cumpre sublinhar de forma muito clara que o respetivo sistema de progressão está estagnado há demasiado tempo. E esse é um fator de desmotivação nos tribunais, como seria em todo e qualquer setor de atividade. A abertura de um novo polo do Centro de Estudos Judiciários é uma medida positiva a montante, mas não resolve tão cedo o gigantesco problema que está a jusante e que se prende com o pouco que se pode almejar quando, por exemplo, o acesso aos tribunais superiores se alcança cada vez mais tarde e sempre, ano após ano, à desesperante velocidade de um conta-gotas. E se as assessorias seriam em tese uma solução de futuro, nunca as mesmas assim se podem chamar no modelo em que estão implementadas. A realidade nua e crua é que os juízes da primeira e segunda instâncias estão a trabalhar, na quase totalidade dos casos pendentes, sem qualquer assessoria, inexistindo um investimento nesta área que realmente tenha impacto com significado na atividade dos tribunais.
Por outro lado, o Governo propõe-se “aumentar o recurso a meios alternativos de resolução de litígios”. Ora, quando a Justiça mais precisa de investimento, cremos que a “desjudicialização” nunca é a melhor solução. A Justiça pública, enquanto direito fundamental dos cidadãos e enquanto função soberana do Estado, se dotada dos meios necessários, indubitavelmente que alcançará melhores resultados. Teimar em desviar recursos para outros mecanismos quando os tribunais insistentemente reclamam por meios materiais, logísticos e humanos é, a nosso ver, um mau princípio que apenas legitima a perpetuação do discurso da necessidade da própria reforma.
Já no que se reporta ao acesso à Justiça, é positivo que o Governo assinale que o montante elevado das custas constitui, frequentemente, um obstáculo para os cidadãos. Importa por isso que as mesmas sejam revistas e ajustadas, penalizando as ações processuais comprovadamente abusivas, mas também beneficiando os cidadãos que, uma vez em tribunal, logram alcançar, com a mediação daquele, uma solução consensual para os seus litígios, fazendo corresponder as custas aplicáveis à dimensão da atividade jurisdicional num critério de justa proporcionalidade.
Por outro lado, o Governo coloca especial ênfase na questão da celeridade processual, sobretudo direcionando as suas medidas para a jurisdição penal e para a jurisdição administrativa e fiscal. No que diz respeito à primeira, importa notar que já existem contributos muito relevantes, designadamente provenientes da Associação Sindical dos Juízes Portugueses e do Conselho Superior da Magistratura no que respeita às questões relativas ao desenho da fase de instrução em processo penal, em matéria de recursos e seus efeitos e também e matéria dos chamados “megaprocessos”, pelo que boa parte das reflexões e das possíveis soluções já estão há muito pensadas. Por outro lado, no que diz respeito à justiça administrativa e fiscal, espera-se por melhor concretização sobre o que pretende o Governo quando aponta como meta a preparação de “alterações legislativas tendentes à simplificação e agilização da tramitação processual na primeira instância”, sendo certo que há muito que se reclamam mais meios para esta jurisdição, e também ao nível da segunda instância com a instalação, em definitivo, de um Tribunal Central Administrativo na zona Centro.
Finalmente, vê-se com muito bons olhos que se inscreva na agenda um conjunto de medidas para promoção dos direitos das vítimas de crime, que criem maior justiça e melhor reparação sobretudo na criminalidade que maiores danos provoca, bem como um conjunto de medidas de organização judiciária, que há muito são reclamadas, e que garantirão maior eficiência no sistema (designadamente com a abolição do sistema de controlo presencial das operações de distribuição), bem como a sua subsistência no longo prazo (com o alargamento da base de recrutamento para o Supremo Tribunal de Justiça).
A tarefa é árdua, mas merece empenho e colaboração, pois que é tempo de se deixar o perpétuo discurso da reforma da justiça para, finalmente, se começar a sua implementação efetiva.
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