Na era de todas as tecnologias, da velocidade e das informações bombardeadas (pun intended) a cada segundo, não sabemos muito do que se passa verdadeiramente, no terreno, em mais uma guerra. Os jornalistas de guerra, enviados especiais aos lugares de conflito que, com a liberdade possível, comunicam ao mundo o que conseguem testemunhar parecem ser uma figura do passado, de um tempo em que, tecnicamente, a comunicação global era muito mais difícil. Somos informados por comunicados oficiais, propaganda mal disfarçada e um batalhão de comentadores e “especialistas”.

Não sabemos exatamente o que se passa nas ruas e bunkers de Teerão nem nas ruas e bunkers de Tel Aviv e Jerusalém. Mas sabemos que uma guerra há muito anunciada está mesmo a acontecer. E começa a fazer-nos lembrar a invasão do Iraque em 2003, por forças militares lideradas pelos EUA, e consequente queda do regime de Saddam Hussein, que muito contribuiu para a desestabilização do Médio Oriente.

Mas desta vez, com Donald Trump no poder nos EUA, tudo é muito mais nebuloso e incerto.

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A filha mais velha dos príncipes de Hoenzhollern-Sigmaringen nasceu na casa de campo de Krauchenwies, a 15 de Julho de 1837, e teve como padrinhos o rei da Prússia e a sua avó, Stephanie Napoleão von Baden, de quem herdou o nome. Dois meses mais velha do que o seu futuro marido, é uma escolha da rainha Vitória e do príncipe Alberto que veem na princesa a mulher ideal para o brilhante e melancólico sobrinho de quem tanto gostam.

Esta série em vídeo e podcast, feita em parceria com a VISÃO, é também um incentivo a que faça as malas e vá conhecer estes lugares com os seus próprios olhos.

Palácio de Mannheim

A imponência e riqueza do palácio de Mannheim ajuda-nos a perceber o mundo que Estefânia habitava antes de, em maio de 1858, chegar a Lisboa, já casada por procuração, já rainha de Portugal. Esta é a residência da sua poderosa e determinada avó e madrinha de batismo, Stephanie Beauharnais “Bonaparte”, Grã-duquesa de Baden, filha “adotiva” de Napoleão, que marcou indelevelmente a neta de quem era muito próxima. Estefânia passava aqui largas temporadas, numa corte apaixonada pela música e pela arte, mas também pela política, em “salões” onde os direitos das mulheres eram um tema muito presente. A construção do Schloss Mannheim foi iniciada em 1720, acolhendo os príncipes-eleitores do Palatinado, sendo-lhe acrescentado mais tarde um Teatro de Ópera, assim como uma ala destinada às artes e à ciência. Passou a propriedade do ducado de Baden em 1802 e a residência da avó de Estefânia entre 1819 e 1860. Muito danificado durante a II Guerra Mundial foi reconstruído respeitando exatamente o estilo Império com que a duquesa o decorou, o que nos permite reviver o tempo em que esta nossa rainha o habitou — marca a sua proximidade o seu retrato na sala privada da duquesa, que morreu um ano depois da sua querida neta.

Este é, claramente, o robô de limpeza mais impressionante e eficiente que já testámos. Um aparelho que vem demonstrar por que a Roborock se tornou, para muita gente, a nova referência do mercado dos aspiradores robóticos. As funcionalidades de opções são tantas, que até podem pecar por excesso para utilizadores que procuram maior simplicidade. Mas já lá vamos.

Comecemos pela instalação: tudo correu de forma impecável. Como os restantes, as instruções ilustradas com passos simples permitiram-nos instalar o aparelho em apenas alguns minutos. Após registo de conta na app, o Saros 10R foi reconhecido, sem que tivéssemos de executar qualquer passo, e ficou disponível para o mapeamento. Que decorreu rapidamente e de modo preciso. Talvez um tudo ou nada mais lento que o Roomba 505 neste capítulo, mas com maior eficiência.

Veja imagens do Roborock Saros 10R abaixo:

Eu sei onde estão

A maior precisão dos sistemas de LiDAR, um género de radar de luz, que usa lasers para criar mapas 3D precisos, é um dado adquirido. E é uma tecnologia presente nos restantes robôs deste grupo. O que nos pode levar a estranhar o facto de o Saros 10R, o topo de gama da Roborock, não incluir LiDAR. Mas não pense que esta ausência significa que este aparelho perde para os concorrentes em navegação. Pelo contrário, foi claramente o melhor a navegar pela casa. Quer seja na capacidade de detetar objetos que podem, potencialmente, fazer parar o robô, como cabos USB ou meias; quer seja na forma inteligente como procura o melhor caminho.

Por exemplo, num dos testes, colocámos, após os mapeamentos e algumas limpezas, duas caixas de cartão no hall da casa, que dá acesso a várias divisões. O objetivo era obrigar os robôs e encontrar novos caminhos para chegar às divisões a limpar. Todos os robôs conseguiram contornar estas caixas e encontrar um novo percurso. Mas todos, à exceção, deste Roborock, perderam vários segundos a andar para trás e para a frente para conseguirem encontrar o caminho. O Saros 10R passou, sem hesitações, entre as caixas, como se já conhecesse o caminho, demonstrando que tem uma melhor visão global do ambiente.

Esta capacidade avançada de mapeamento 3D sem recurso a LiDAR deve-se não só aos algoritmos de IA associados à imagem captada pela câmara, mas também a um sistema alternativo ao LiDAR: o Time-Of-Flight (TOF), que usa infravermelhos para criar um mapa 3D. Ou seja, tem um processo de funcionamento similar ao LiDAR. Independentemente dos prós e contras desta tecnologia, uma coisa é certa: os dois sistemas combinados, visão com IA e TOF, resultam muito bem.

O sistema é, até, capaz de identificar o tipo de piso e os móveis, que passam a aparecer no mapa – podemos, naturalmente, editar também os móveis para uma maior precisão. O que também permite criar programas automáticos, tipo “aspirar a zona da mesa da cozinha após as refeições”.

A grande vantagem da ausência de LiDAR significa que o robô pode ser mais baixo e chegar a sítios onde outros não chegam. Na casa usada para testes, só este aparelho foi capaz de aspirar por baixo de um dos móveis da sala.

É uma limpeza

A capacidade de aspiração impressiona. Pela elevada potência, que até permite ‘puxar’ pó e outros pequenos resíduos que não estão diretamente por baixo do robô. Mas, sobretudo, pela capacidade de adaptação. Este é o robô que mais muda a potência e a forma de aspirar em função do lixo encontrado. Passou, por exemplo, o teste da peça de lego pequena deixada no chão – contornou com todo o cuidado sem a engolir.

Outra característica única entre os robôs testados nestas páginas: a capacidade, automática, de deixar as mopas na base e reinstalá-las quando necessário. Isto significa que quando programamos ou ordenamos uma aspiração (sem lavagem), as mopas ficam na base, uma vantagem para quem tem tapetes altos e claros, já que evita que a sujidade e humidade das mopas acabe por afetar os tapetes.

É interessante ver o robô a levar as mopas para divisões com piso sólido e deixá-las na base quando se desloca para áreas alcatifadas ou cobertas por tapetes. Ainda sobre tapetes, este robô faz tudo o que pode para evitá-los. Na casa testada há um tapete no hall de entrada que cobre quase toda a área, deixando apenas uma margem em redor de uns 20 centímetros. O Saros 10R contornou o tapete, sempre encostado à parede, quando transportava as mopas para lavar outras divisões. Isto apesar de as mopas estarem levantadas de modo a evitar a passagem de sujidade para os tapetes.

Outra grande vantagem é o reservatório para detergente, que permite melhorar substancialmente a lavagem.

Funcionalidades extra

Há mesmo muito para explorar na app. Se o Roborock Saros 10R fosse uma câmara fotográfica, seria um daqueles modelos profissionais de topo. Para quem não quer explorar todas as ferramentas e opções, o automático é muito bom. Mas para quem quer otimizar a limpeza, há mesmo muitas possibilidades, incluindo a definição do tipo de piso rígido (madeira ou ladrilhos), o tipo de progressão, a intensidade da rotação das mopas e da aspiração… Até dá para usar o robô como uma câmara controlada remotamente, situação em que, por razões de privacidade, o robô alerta que está a transmitir a imagem. Por falar na câmara, também podemos escolher a opção para receber fotos de objetos e zonas sobre as quais a IA tem dúvidas. Deste modo, podemos ‘dizer’ ao aparelho para avançar ou não com a limpeza da zona.

Veredicto

Este robô é de uma sofisticação impressionante, que resulta numa limpeza mais apurada e em menos necessidade de intervenção do utilizador. Os algoritmos de IA são os mais eficazes, tanto na navegação, como na identificação da sujidades e adaptação dos modos de limpeza. Mas o preço ‘de outro mundo’ é difícil de justificar.

Tome Nota
Roborock Saros 10R – €1499
Site: global.roborock.com

Aspiração Excelente
Lavagem Muito Bom
Navegação Muito bom
Aplicação Excelente

Desempenho: 4,5
Características: 4
Qualidade/preço: 3

Global: 4,2

Lembro-me de chegar a casa, era adolescente, e o meu pai estar com uns indivíduos estranhos. Fui mandado para o quarto e quando eles saíram foi-me dito que nos próximos dias, quando saísse de casa, seria na companhia de polícias. Depois de muitos porquês, lá me disseram que uma organização nos tinha exigido dinheiro. Era, percebi uns anos depois, o imposto revolucionário.

Nunca soubemos se a exigência vinha realmente das FP 25 ou se teriam sido apenas uns oportunistas, mas havia boas razões para o medo. A vaga de atentados e assaltos que esses terroristas praticavam exigia que se levasse a sério aquelas ameaças.

Não me recordo de discursos do tipo “temos de repudiar estes crimes venham da extrema-esquerda ou direita”. A razão era simples: não havia nenhuma ameaça vinda da extrema-direita.

O fenómeno não era local, bem entendido. Foi o tempo das Brigadas Vermelhas em Itália, do Baader-Meinhof na República Federal Alemã, da Ação Direta em França e mais uns quantos movimentos similares pela Europa fora. Todos revolucionários, anticapitalistas, anti-imperialistas e toda a retórica da extrema-esquerda.

Apesar de não terem ligações conhecidas ao bloco comunista nem, em muitos casos, aos partidos comunistas locais (no caso português, não havia mesmo qualquer proximidade, bem pelo contrário), o contexto internacional era o conhecido: meia Europa subjugada ao imperialismo totalitário da União Soviética. E se alguns destes terroristas não eram diretamente financiados pelos soviéticos e satélites, não faltavam organizações apoiadas por eles para minar as democracias.

Havia uma real ameaça vinda dessas ditaduras e dos movimentos terroristas de extrema-esquerda às democracias.

O fim é conhecido: as democracias venceram. O comunismo e as suas variantes são uma memória histórica e os terroristas foram extintos. Não existe hoje qualquer tipo de organização de extrema-esquerda ativa ou sequer adormecida e não há nenhum país que possa financiar esses movimentos.

Não me parece que seja necessário lembrar o que, mais de 35 anos passados, está a acontecer. Basta ter presente que a democracia de que em larga medida as outras dependiam está a caminhar a passos largos para uma autocracia, que nos principais países da Europa a extrema-direita é ou a segunda força política ou está prestes a chegar ao poder ou já lá está. Que os surtos de violência causados por forças nacionalistas, racistas e neonazis são o dia a dia em países como Alemanha, Reino Unido, Itália, Holanda, países nórdicos, só para citar os principais.

Em Portugal, temos como segunda força política um partido com uma narrativa racista, xenófoba, anti-imigração e claramente contra a Constituição e os seus principais valores.

Este discurso objetivamente contra a democracia deixou de ser feito à boca pequena ou de estar apenas nas redes sociais, sendo amplificado pelos média tradicionais, tolerado pelo presidente da Assembleia da República e gritado em todo o lado sem o mínimo de pudor.

Ao mesmo tempo, assistimos a grupos neonazis e doutras extremas-direitas que não só insultam e ameaçam imigrantes, minorias e quem defende valores diferentes dos deles, como partem para a mais bárbara violência, como no dia 10 de Junho em Lisboa, no dia 11, no Porto – foram agredidas mulheres que distribuíam comida a pessoas com fome –, no dia 15, em Guimarães.

De que raio, afinal, falam as pessoas que dizem condenar estes atos e palavras vindos da extrema-direita, mas que também se deve fazer o mesmo aos que vêm da extrema-esquerda? Há alguma ameaça ao regime vinda da extrema-esquerda? São o PCP ou o BE organizações que querem derrubar a democracia e mostram força para isso? Aliás, alguma vez nos últimos 40 anos (no caso do PCP) o foram? É mesmo preciso responder?

E que violência física e atentados têm sido perpetrados pela extrema-esquerda? Que discurso de ódio tem de lá vindo? Ouvi uns patuscos a falar dos perigosos ativistas climáticos, mas só pode ter sido humor involuntário. Ou então estamos perante a maior desonestidade do mundo quando se equiparam uns miúdos com tintas a gorilas com soqueiras.

Onde estão no Portugal de 2025 ameaças à democracia e aos seus valores vindas da extrema-esquerda? Aonde anda a violência física vinda da extrema-esquerda?

De lado nenhum, claro. E as pessoas que o dizem e entram no mais desonesto whataboutismo não o desconhecem. Sim, Carlos Moedas, Leitão Amaro e outros sabem-no perfeitamente.

Aceitam uma mentira absurda e reagem e atuam em função dela – infelizmente, não é só nisto.

A mentira de que também há uma ameaça vinda da extrema-esquerda serve apenas e só para relativizar e até justificar as ações da extrema-direita como legítimas.

Esta gente faz isto porque pensa (e com alguma razão) que há quem no seu quadrante político esteja convencido desse disparate.

Já era suficientemente grave pessoas com a responsabilidade de Moedas, Leitão Amaro e outros participarem e amplificarem mentiras, mas é pior do que isso: comportam-se como autênticos colaboracionistas com a extrema-direita.

Ao entrarem neste jogo de inventar uma ameaça que não existe não tiram apoiantes à extrema-direita, pelo contrário, adubam-lhe mais o terreno, minimizam as atitudes violentas porque as colocam como se também as houvesse do outro lado.

É tempo de combater e derrotar a extrema-direita como se combateu e derrotou a extrema-esquerda e deixar de entrar em paralelos que só servem para reforçar as forças antidemocráticas.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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Para quem não foi à praia, aos arraiais de Santo António, ou não tinha dinheiro nem para uma coisa nem para outra, domingo, dia 15 de junho, foi pródigo em protestos. A indignação, à primeira vista, vai sendo gratuita, mas só nas aparências.

Houve uma caminhada de seis horas pela Palestina livre, saindo de Carcavelos e acabando no centro de Lisboa, frente à Embaixada de Israel. Houve a manifestação Não Queremos Viver no País do Medo, na sequência das agressões ao ator Adérito Lopes, do Teatro A Barraca, com protestos em Lisboa, Porto, Coimbra, Beja, Braga e Faro, entre outras cidades. As agressões, conotadas com elementos da extrema-direita, motivaram o protesto contra o racismo e a violência.

Foi pena não se terem encontrado ou coordenado com a “procissão” Lá Vai o Andor de Santo António Despejado, que andou pelos bairros lisboetas de Alfama e da Graça, um protesto inserido na rede SET – Sul da Europa contra a Turistificação, e que aconteceu em várias cidades europeias.

Porque o racismo, a violência, a ascensão da extrema-direita e do ódio antissistema, esta revolta contra uma democracia sem respostas ou soluções, encontram o maior dos rastilhos nas condições de vida. E na sensação (real) de estarmos cada vez mais a escorregar para longe dos centros – sejam estes das cidades ou de tomadas de decisão, onde se manejam os fios do nosso futuro sem que tenhamos uma palavra a dizer sobre o assunto.

O sociólogo e geógrafo holandês Hein de Haas, um dos grandes especialistas mundiais sobre as migrações, disse há um ano numa entrevista à VISÃO: “Não são só as empresas que beneficiam com a imigração, também a sociedade, nomeadamente a classe média e a alta. Basta pensar em serviços como a entrega de comida ao domicílio, os restaurantes, os serviços de limpeza e de cuidado dos idosos… Só os mais pobres é que têm razões para se questionar: em que é que eu beneficio da imigração? E também são eles que vivem com as consequências sociais das políticas que segregam os imigrantes porque habitam os mesmos espaços.”

A relação é simples de fazer. Os portugueses mais pobres e com menos habilitações literárias são os que engrossam as periferias, agora que os centros das cidades lhes foram vedados. São os segregados dos centros a habitar os espaços dos segregados da sociedade, os imigrantes, num caldeirão de pobreza, invisibilidade, exploração e esquecimento. O resultado está à vista.

Porque o fascismo funciona na lógica do “nós” e “eles”. E a esquerda não tem funcionado assim, dividida como sempre?

Noticia o jornal Público de segunda-feira: “O Governo posiciona-se, de forma clara, contra algumas das soluções sugeridas por Bruxelas para responder à crise habitacional, como o reforço da regulação do arrendamento ou do alojamento local.” A Comissão Europeia defendeu recentemente que Portugal deve apostar em “medidas de longo prazo para controlar o rápido aumento dos preços das rendas”. Para o Executivo de Luís Montenegro, a imposição de limites legais às rendas representaria um “castigo generalizado dos proprietários”, preferindo deixar as rendas nos níveis atuais ou naqueles que o mercado quiser, e optando por subsidiar alguns inquilinos e prometer mais casas no mercado.

São medidas que não funcionam, insiste Bruxelas, como não funcionaram as dos sucessivos governos de esquerda. Onde falta a coragem fica o terreno baldio para ser ocupado por quem tem mais sentido de oportunidade política. Haverá manifestações que nos valham?

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A contestação ao pároco de Valsosende (terras do Bouro), padre António Figueiredo, devido a algumas atitudes tomadas em especial desde 1968, e que a população considerou abusivas, esteve no início da “guerra” que meteu à bulha a GNR, com “desordens, escândalos e diversos aborrecimentos” no final da missa e acusações de violência.

Entretanto, o padre acentuou ainda mais a contestação geral ao querer mudar a igreja matriz e o cemitério para uma aldeia vizinha (Chamadouro). Os homens que representavam as famílias procuraram reverter a mudança, tentando reunir com o arcebispo de Braga, mas por treze vezes a audiência foi recusada, o que os levou a endurecer a luta até que as missas foram suspensas na terra.

Diz a reportagem: “A história já se alonga, e está longe do fim, uma história que parece ser de religião – e não é. É de uma revolução. Revolução que resulta numa mudança de religião: em fevereiro de 1971, os habitantes de Assento [de Valdosende] – três homens, três anciãos— contactam uma igreja de Braga, a Igreja Evangélica Metodista, são protestantes e não católicos, pedindo-lhes “assistência espiritual”. Tiveram-na e continuam a ter.” Hoje, a Igreja Metodista de Valdosende lá permanece, dirigida por um pastor brasileiro de São Paulo.

Tudo começou quando os habitantes de Valdosende – a dois passos de S. Bento da Porta Aberta, um importante santuário católico – souberam que existiam outras igrejas cristãs além da tradicional, o que antes desconheciam. Francisco Abel Lopes era o pastor da Igreja Metodista de Braga à época, a quem os populares foram pedir apoio espiritual, e dispôs-se a visitar a aldeia. Para isso reuniu as pessoas e realizou um serviço religioso ao ar livre. A boa recepção motivou então o pastor metodista a iniciar um local de culto fixo em Valdosende, mas a sua chegada à região foi caracterizada por uma dinâmica intervenção social. Enquanto começava a construção de um templo, abriu de imediato uma creche de modo a atender às crianças subnutridas, substituindo as “sopas de cavalo cansado” por leite e queijo, graças ao apoio de igrejas europeias, produtos que nunca tinham visto.

Em Valdosende, souberam da fé protestante através dum conterrâneo emigrado nos EUA, todavia ela tinha chegado cá há mais de um século (1868). Salazar e Cerejeira não gostavam dos protestantes mas já estavam fora de cena.

Abel Lopes pastoreou aquela comunidade de 1971 a 1989. Os metodistas tinham chegado plenos de energia, até porque, logo em 1971 cerca de “cem pessoas fizeram a chamada profissão de fé protestante.” Eles “trouxeram alimentos, sobretudo para as crianças, criaram uma cooperativa agrícola, instalaram posto clínico, até dentista, uma creche, melhoraram habitações e estradas, investiram na alfabetização da população – muito deste último trabalho em resultado de campos de férias, no Verão, que reuniam jovens metodistas, vindos de vários cantos do mundo.”

As mulheres da terra foram as grandes catalisadoras da mudança, até por se sentirem mais relevantes nas igrejas protestantes do que na católica, e nunca tiveram medo dos “bufos” da PIDE que também existiam na aldeia. Foram elas que escreveram ao papa a tentar reverter o abandono da igreja católica em Valdosende. Perante a resposta negativa deram assim origem a um movimento popular nunca antes visto, uma espécie de revolução. “Em Valdosende não havia nada: electricidade – apesar de estar tão próxima a uma das maiorias barragens do país –, esgotos, rede de abastecimento de água. Havia pobreza, extrema, escondida, mas visível por exemplo na subnutrição das crianças, analfabetismo, alcoolismo – infantil também –, abandono e rejeição.”

Se este movimento religioso dividiu a população da região nessa altura, hoje dão-se todos bem, protestantes e católicos, devido ao espírito ecuménico. A filha do pastor Abel Lopes é hoje também pastora da igreja metodista em Portugal.

A missa voltou a Valdosende mais tarde mas quase não tem fiéis. O cónego Melo, Vigário Geral em Braga, ainda tentou assustar a população, ao alertar “o povo de Deus” para “o demónio, que astutamente, com subtileza e arte, quer triunfar na luta por ele aberta”. Mas “em 1972, ao Jornal de Notícias, o então presidente da Junta, Bernardino Ribeiro, explicava porque o povo já não regressou ao catolicismo: ‘Trataram-nos como parolos. Não souberam levar-nos a bem. Antes dominavam-nos. Mas agora os homens já foram à Lua.”

Este evento passou despercebido ao País por ter ocorrido no tempo da censura e por se ter desenrolado no Portugal profundo, durante o Estado Novo, numa aldeia muito pobre, isolada nos confins do Gerês, atrasada, com forte emigração, os mancebos na guerra colonial e uma vida quotidiana de muita abnegação. Mas a população era crente em Deus, e quando a igreja católica lhes voltou costas, em vez de desistirem da fé os habitantes optaram por mantê-la e ganharam com isso: não perderam a fé no mesmo Deus de católicos e protestantes, e viram muitas das suas necessidades básicas supridas.

Em 1971 e apesar da censura, a revista Vida Mundial aproveitou a “primavera marcelista” e referiu-se a um “enclave que constitui uma machadada no orgulho hierárquico e autocrático”. E criticou a igreja católica pela sua ortodoxia “mais jurídica e exterior que moral e interior; mais colete-de-forças que dinamismo de consciência; mais pompa que verdade; mais triunfalismo que serviço, mais monumentalismo que espírito”.

Quanto ao padre que estava na raiz do conflito, mais tarde pediu para deixar a aldeia e foi para o Porto. Abandonou o sacerdócio e casou. “A população de Valdosende há muito lhe sabia da relação amorosa com uma professora da escola primária daquela freguesia.” Enfim, um episódio que dava um filme.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Com a venda do Novo Banco ao grupo francês BPCE, por um montante de 6,4 mil milhões de euros, o Estado português poderá encaixar 1,6 mil milhões de euros, mas o valor é muito inferior aos mais de 8 mil milhões de euros de capital público injetado na instituição que resultou da resolução do antigo Banco Espírito Santo (BES). O Estado detém cerca de 25% do Novo Banco através do Fundo de Resolução (13,54%), que poderá receber cerca de 866 milhões de euros, e da Direção-Geral do Tesouro (11,46%), que receberá 733 milhões de euros. Mas o fundo norte-americano Lone Star é que vai sair a ganhar, já que encaixa cerca de 4,8 mil milhões de euros pela venda da sua participação de 75% no banco. Em oito anos, prepara-se para multiplicar quase por cinco vezes o investimento de mil milhões de euros que efetuou quando adquiriu, em outubro de 2017, o controlo da instituição. Mas se somarmos os mil milhões de dividendos entretanto pagos pelo Novo Banco ao seu maior acionista, a Lone Star, sai a lucrar seis vezes mais do que a aplicação inicial.

A compra do quarto maior banco português faz parte dos planos de expansão do grupo Banque Populaire ‒ Caisse d’Épargne (BPCE), que concretiza assim a sua primeira investida fora de portas na área da banca de retalho. Em Portugal, o grupo BPCE já está presente através de um centro tecnológico do banco de investimento Natixis, da Oney, uma empresa focada no crédito ao consumo nas grandes superfícies, e do Banco Primus, vocacionado para o financiamento automóvel.

“A equipa do Novo Banco fez um trabalho incrível. O Novo Banco é um dos bancos mais rentáveis na Europa”, disse Nicolas Namias, presidente-executivo do grupo. Por isso, o BPCE vai manter a equipa de gestão do banco, liderada por Mark Bourke, assim como os 4 200 postos de trabalho e a marca portuguesa.

“Não vamos cortar postos de trabalho. O nosso projeto em Portugal não se baseia em cortes”, disse ainda o CEO, recordando que os cerca de três mil trabalhadores do grupo francês em Portugal “não se dedicam à atividade bancária, à banca de retalho”.

O grupo BPCE, de estrutura cooperativa, é um dos maiores da Europa e passou a ser o segundo maior grupo bancário em França com a fusão entre o Banque Populaire e a Caisse d’ Épargne. No seu mercado nacional, atua na banca de retalho e nos seguros. No exterior, tem presença em 56 países, exclusivamente na área da banca de investimento. No total, emprega mais de cem mil trabalhadores e gera lucros de 3,5 mil milhões de euros. Já o Novo Banco, com 4 200 trabalhadores e quase 300 balcões, registou lucros de 745 mil milhões de euros em 2024. É o quarto maior banco português, atrás da Caixa, BCP e Santander, com uma quota de mercado ligeiramente superior a 9%.

Na corrida ao Novo Banco, o grupo BPCE venceu os espanhóis do CaixaBank, dono do BPI, a quem o Governo tinha feito saber que o seu interesse na instituição não era do agrado das autoridades portuguesas. O ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, chegou a afirmar que uma maior exposição da banca nacional a grupos espanhóis, que já controlam cerca de 30% do setor financeiro, colocaria em causa a livre concorrência.

No dia do anúncio da escolha do grupo BPCE, o Ministério das Finanças considerou, em comunicado, que a operação representa para Portugal “um sinal muito importante de confiança dos investidores internacionais”, e informou que “esta venda, associada à distribuição de dividendos do Novo Banco que ocorreu este ano, permite ao Estado recuperar quase 2 mil milhões de euros dos fundos públicos injetados na instituição”.

Fatura pesada

O Novo Banco foi criado em 2014 após a derrocada do Banco Espírito Santo (BES). Detido na totalidade pelo Fundo de Resolução (FdR), uma entidade pública financiada por contribuições dos bancos que operam no mercado nacional, recebeu os ativos considerados “bons” da instituição objeto de resolução, designadamente os depósitos dos clientes. Para fazer face às necessidades de capital sentidas após a resolução, o FdR capitalizou o “banco bom” em 4 900 milhões de euros, pedindo ao Estado um empréstimo a longo prazo (a 30 anos) no valor de 3 900 milhões de euros.

Em outubro de 2017, o Novo Banco foi alienado ao fundo de investimento norte-americano Lone Star, que não pagou qualquer valor pela compra de 75% do seu capital. O fundo norte-americano injetou mil milhões de euros na instituição e o Estado aceitou criar um mecanismo de capital contingente através do qual o FdR teria de compensar o banco pela desvalorização de ativos que pusessem em causa os seus rácios de capital, com um limite de 3 890 milhões de euros. No âmbito desse acordo, o Novo Banco recebeu cerca de 3 500 milhões de euros, dos quais mais de dois mil milhões de euros foram disponibilizados ao abrigo de empréstimos do Estado ao FdR. O custo de cerca de 8 mil milhões de euros resulta, em grande parte, deste acordo de capitalização do Novo Banco que o Estado aceitou fazer com a Lone Star. E que esteve sempre rodeado de enorme polémica.

Com efeito, o banco passou por tentativas de venda falhadas, recebeu dinheiros públicos, reduziu postos de trabalho e deixou de ter presença internacional. Foi escrutinado por comissões parlamentares, auditorias e, para agravar a polémica, o Tribunal de Contas criticou severamente a gestão do Novo Banco, na altura liderada por António Ramalho, mas também o acionista Fundo de Resolução, por não ter “minimizado o seu impacto na sustentabilidade das finanças públicas nem reduzido o risco moral”. Na altura, tinham já sido realizadas, além dos 4 900 milhões de euros de capitalização inicial, injeções de capital no valor de quase 3 mil milhões de euros ao abrigo do acordo de capital contingente.

A resolução do BES, imposta pelas autoridades europeias, pode vir a onerar ainda mais a fatura do Estado português. Na Justiça, decorrem centenas de processos judiciais de investidores lesados que reclamam indemnizações ao FdR. A compensação dos lesados do papel comercial do BES custou cerca de 267 milhões de euros emprestados pelo Estado ao FdR. E este, apesar de ter sido reconhecido como credor privilegiado do BES, nunca será ressarcido dos encargos que já teve com a resolução porque o ativo do “banco mau” é de apenas 175 milhões de euros.

Negócio ao raio-x

A compra do Novo Banco pelo grupo francês BPCE foi anunciada como sendo “a maior aquisição transfronteiriça na Zona Euro em mais de dez anos”Novo Banco

Novo Banco

Lucros em 2024
€745 milhões de euros

Lucros no 1º trimestre 2025
€177 milhões

Posição no ranking da banca nacional

Clientes
1,7 milhões

Trabalhadores
4 200

Balcões
291

Grupo BPCE

Lucros em 2024
3,5 mil milhões de euros

Lucros no primeiro trimestre
910 milhões de euros

Posição no ranking da banca francesa

Clientes
35 milhões

Trabalhadores
103 mil

Países
56

Palavras-chave:

No melhor estilo dos líderes supremos, Ali Khamenei, o senhor de tudo no Irão, deve estar enfiado num dos bunkers das instalações nucleares. A prosápia, a bazófia e a arrogância estão juntinhas num buraco. Os iranianos estão a sair de Teerão aos milhares, e, a esta hora, ninguém sabe quem são os chefes militares — se é que ainda existem. Não se sabe, nem eles querem que se saiba.

O Irão está a consumir mísseis balísticos a uma velocidade estonteante, convencido de que consegue ultrapassar a barreira da Cúpula israelita. No entanto, apenas uma percentagem ínfima consegue escapar, por agora, ao maior e mais eficaz sistema de defesa do mundo. É verdadeiramente desolador, para os militares e políticos iranianos — e para o líder supremo — ver que, apesar do investimento macivo no seu armamento, a destruição que anunciavam não está a acontecer.

Ninguém quer Khamenei morto, ou vivo, ou em qualquer outro estado da matéria— mas apenas que aprenda a ser humildade. Mais depressa se extinguiria o Irão do que Israel, e essa lição está a ser aprendida pelos iranianos comuns, que nada têm a ver com questões nucleares nem com ameaças vãs.

O melhor que poderia acontecer aos iranianos seria o seu líder supremo recolher-se definitivamente ao repouso de um bunker, dedicado exclusivamente à oração e ao Livro Sagrado. Olhando para as imagens, as filas de carros a sair de Teerão são tão longas que a capital rapidamente ficará sem civis. Restará a Guarda Revolucionária, enfiada em túneis, a ver se escapa à força israelita e dos seus aliados.

Quando foi a última vez que esteve num museu? Há quem possa responder à pergunta de forma simples: “Esta manhã, assim que acordei.” São os colecionadores que, sem hipérbole nem caricatura, podem dizer que têm autênticos museus na sua vida privada. Têm acervos que convivem com as frases conceptuais do artista norte-americano Lawrence Weiner inscritas nas suas próprias paredes, ou têm quadros de Julião Sarmento por cima da lareira, pinturas de Paula Rego em corredores, trabalhos de Joseph Kosuth ao lado da aparelhagem, telas cromáticas ou assemblages de Fernão Cruz no sótão, edições de Louise Bourgeois na cozinha ou óleos de Barceló à cabeceira da mesa de jantar. Aliás, a arte é (quase) “mais um filho”. Falam numa “sede”, numa “paixão”, num “amor à primeira vista”, num “vício”, e continuam a adquirir mais e mais obras de arte. Têm listas de desejos a cumprir, apesar dos milhares de trabalhos que já guardam em armazéns climatizados. Muitas vezes, as suas obras são emprestadas para exposições e museus, o que também “valida” estas coleções. Mas partilhar uma coleção privada com o público é um gesto generoso, recorde-se. Os acervos que estas pessoas construíram ao longo de décadas são os seus “museus imaginários”, usando o título do clássico de André Malraux de 1974: lugares que revelam o pensamento de quem reuniu aquelas obras, o percurso de vida que as levou até ali, o gosto de quem as comprou. E “gosto” é a senha de entrada nestas seis histórias tão diferentes de colecionismo em Portugal. Mesmo que o gosto não queira dizer a mesma coisa para todos. Como poderia ter escrito Gertrude Stein, cada gosto é um gosto é um gosto.

O casal fundador da Coleção Maria e Armando Cabral – Rialto6 usa a ironia, ao apontar para uma fotografia da consagrada Cindy Sherman que instalou junto à porta do elevador da casa que lhe serve de quartel-general e galeria. O grande plano do rosto algo grotesco está longe das encenações cinematográficas pelas quais a artista é vendida por milhões: “As pessoas dizem-nos: ‘Ah, que horror, como é que vocês convivem com isto?’” Aplique-se a tinta da realidade: no edifício lisboeta onde residiu o escritor António Lobo Antunes (e onde eles emolduraram dois pedaços de parede com as suas anotações literárias) há ecletismo e risco nas peças omnipresentes, que tanto incluem uma fotografia de grande formato do artista alemão Wolfgang Tillmans como os escritos na parede de Lawrence Weiner.

Obras primeiras Armando Martins fotografado com Música Surda, de Amadeo de Souza-Cardoso, uma das obras modernistas patentes no MACAM

Armando Martins

MACAM – Museu de Arte Contemporânea Armando Martins

“O hotel há de ser o mecenas do MACAM”

O colecionador de 75 anos, nascido em Penamacor, fez carreira como promotor imobiliário. A sua coleção de arte contemporânea, hoje integrada no MACAM, contabiliza até à data mais de 600 obras de artistas nacionais e internacionais, compreendidas entre o final do século XIX e os dias de hoje. No acervo, incluem-se nomes como os de Marina Abramovic, Olafur Eliasson, Vik Muniz, John Baldessari, Juan Muñoz, Ernesto Neto, Alberto Oehlen, Paula Rego, Maria Helena Vieira da Silva, Amadeo, Julião Sarmento, José Pedro Croft, entre muitos outros. A primeira peça que adquiriu foi um óleo de Rogério Ribeiro, Sem Título (1970-1971).

É prática comum os grandes colecionadores portugueses de arte contemporânea, talvez arrumados numa trintena bem contada, receberem artistas, outros colecionadores internacionais, diretores de museus, delegações da Arco Lisboa, por exemplo, que vão conhecer as coleções privadas nacionais em versão intimista. Os visitantes de Maria e Armando Cabral recordam-se seguramente dessa ocasião em que eles colocaram a imponente instalação Wallenda (1997) do artista João Penalva, em que o artista assobia integralmente A Sagração da Primavera, de Stravinsky, durante 30 minutos… no closet da casa. “O galerista do Penalva não achou piada, mas o Penalva achou”, sorriem os anfitriões.

É um cenário distante dos primeiros tempos em que este casal regressou a Portugal, em 1996, depois de anos a trabalhar em Londres, e comprou duas ou três peças para “pendurar atrás do sofá”. Projeto colecionista não tinham: liam, estudavam teoria da arte, interessavam-se. A galerista Cristina Guerra, figura incontornável do circuito galerista nacional e nome citado por muitos destes colecionadores, deu-lhes um conselho: “Não comprem arte, as pessoas só fazem asneiras quando começam.” Seis meses depois, deu-lhes luz verde, e Maria e Armando Cabral compraram uma fotografia de João Onofre, Levitation in the Studio, um autorretrato do artista evocando um mágico a levitar. Obras de arte contemporânea diferentes começaram, então, a ocupar-lhes o espaço doméstico – como a grande mesa-escultura adornada de esferas e elipses da autoria do norte-americano Matt Mullican, que não deixava espaço para ninguém se mexer à volta e os fazia dizer constantemente aos filhos, então com 4 ou 5 anos: “Não podes tocar, não podes tocar!” Hoje, a respeitada Coleção Maria e Armando Cabral – Rialto6 soma cerca de 350 peças.

“Sempre tivemos uma posição militante de explorar os limites. Viajámos muito, íamos a galerias mais underground, sempre preferimos peças de arte com um certo desafio intelectual”, descrevem. Uma das joias da coleção, e da casa de Maria e Armando Cabral, é o filme de 16 mm criado por João Maria Gusmão e Pedro Paiva, artistas experimentais que exploram as fronteiras do nonsense e da tecnociência. Uma compra arriscada para os então colecionadores novatos: era preciso encontrar um (caro) projetor adequado, que este funcionasse, que os habitantes da casa não se importassem de conviver com o ‘rrrrrrr’ metálico do aparelho… A obra visual é uma das dez peças que Maria e Armando Cabral adquiriram à dupla de artistas portugueses: havia ainda uma décima primeira película, mas o casal ofereceu-a à Tate… no próprio dia em que a comprou. “Deixámo-nos convencer pelo galerista”, contam. A coleção é dominada por vídeo, instalação, fotografia. Pintura? Pouca, garantem. No rés do chão do edifício, funciona a galeria Rialto6, onde os colecionadores organizam exposições num espírito de uma “Kunsthalle Lissabon, uma Galeria Appleton ou uma Zé dos Bois” – projetos que apoiam. “O Rialto tem uma postura quase antidiscursiva. O que queremos dizer com isto? Não sentimos nenhuma necessidade de afirmar uma certa perspetiva, um ângulo. Temos uma forma de intervenção no sistema que é mais orientada para facilitar a produção e o trabalho novo do que propriamente para fazer a exibição da coleção que está a ser construída”, explica Armando Cabral. E partilha que muita gente já foi bater-lhes à porta, acreditando que iam contemplar a sua coleção privada. Mais tarde na conversa, o colecionador avança opiniões fortes: “São muito raras as coleções em que a coleção é mais interessante do que a soma das peças. As coleções falam do colecionador, não acho que as coleções de arte tenham um valor cultural por aí além. Não é pelo facto de alguém ter dinheiro para comprar uma obra do indivíduo A que aquilo se torna a última Coca-Cola do deserto para a Humanidade.”

Com reservas O colecionador José Lima contempla uma pintura de Fernão Cruz, no sótão da sua casa familiar de São João da Madeira; e nas reservas do Centro Oliva, onde estão depositadas cerca de 1 220 peças suas

Norlinda e José Lima

Coleção Norlinda e José Lima

“Sou um coletor”

Empresário ligado à indústria do calçado, José Lima, 85 anos, começou a criar a sua coleção de arte contemporânea aos 40 anos. O acervo privilegia a pintura, mas abrange também desenho, escultura, vídeo e fotografia. Entre as mais de 1580 obras adquiridas, de consagrados e emergentes, estão trabalhos de Vieira da Silva, Miquel Barceló, Paula Rego, Mel Bochner, Andy Warhol, Lourdes Castro, Menez, Fernão Cruz, Ângela Ferreira, Adriana Proganó, João Gabriel. As primeiras obras adquiridas foram dos artistas Álvaro Lapa e Cargaleiro.

Hoje, Portugal parece ter-se aproximado mais da ideia de oásis para a arte contemporânea: novas galerias formigam, a Arco Lisboa, inaugurada em 2016, trouxe mercado e visibilidade, os novos residentes estrangeiros insuflam as vendas, os artistas portugueses ganham mais atenção. José Carlos Santana Pinto diz que gosta dos “artistas que não fazem mais nada”. E que quando compra, não lhe basta ver uma peça isolada: “Preciso de conhecer a obra do artista; tem de haver uma linha, uma pegada, um rasto nas escolhas para a coleção. Algo quase natural. Não tenho dinheiro para me enganar.” A arte conceptual, os jogos de linguagens, citações, as apropriações formais, dominam esta singularíssima coleção privada. “A minha base são sempre os artistas americanos conceptuais e minimalistas: o Joseph Kosuth, o Lawrence Weiner… São artistas velhíssimos, a trabalhar há muito, e tudo isto tem uma história importante na minha vida”, conta. Na sua sala, a obra do gigante Kosuth ganhou a vizinhança de um néon do jovem Fábio Colaço – um gesto curatorial característico deste colecionador que gosta de colocar obras em diálogos e ecos.

“Às vezes, faço disparates. Tenho uma peça do Daniel Buren, que tem o certificado mais bonito que há, e onde ele exige que a obra seja colocada no chão – e eu tenho-a na parede; se esta fosse uma mostra pública, não teria a lata de o fazer.” José Carlos Santana Pinto abre frequentemente as portas da sua casa a artistas, galeristas, diretores de museus, para visitarem aquilo que se assemelha a uma extraordinária coletiva: as mais de cem obras espalhadas por todas as divisões, apenas um quinto da sua coleção privada contabilizada em cerca de 500 obras. No quarto do colecionador, vê-se a peça de Gonçalo Barreiros que mimetiza um bueiro. No quarto do filho, um quadro de Antoni Muntadas conversa com Money, de Rui Valério – grafado tal como a assinatura do pintor impressionista Monet. Há uns tempos, o pai-colecionador forrou esta divisão com 90 desenhos da autoria de Allan McCollum e o filho queixou-se de que não conseguia dormir ali. A pulsão colecionista é, aqui, imediatamente visível: na sala, o olhar demora-se. Aqui, numa peça de Leonor Antunes que se apropriou de uma janela do Sesc Pompeia (o centro cultural paulista concebido por Lina Bo Bardi). Ali, a instalação de Carl Andre (viúvo da artista cubana Ana Mendieta), acolá Cabrita Reis, Doug e Mick Starn, uma peça chamativa de Daniel Van Straalen: David.David, representada por dois bustos do David de Miguel Ângelo com uma bola de Jeff Koons entre eles. Mas a vivência imersiva entre obras da coleção não faz o colecionador gostar do termo “casa-galeria”: “Este não é um espaço comercial, nada tenho para vender.”

Claro objeto de desejo

Falta-lhe aqui a série de fotografias de Helena Almeida que, em 1973, a histórica galerista Dulce Agro tentou convencê-lo a adquirir. Hoje, sabe, valem cerca de 400 mil euros. “Um dos grandes erros da minha vida”, assume o colecionador. Mas as suas escolhas são sempre comandadas pelo gosto. “Sei o que não quero.” “Muitos amigos compravam arte, mostravam-me e eu perguntava-lhes: ‘Porque é que compraste?’ Respondiam que gostavam. Gostar é importante, mas é pouco.” O colecionador crê numa espécie de darwinismo do gosto. “Eu gosto de Erik Satie, mas, se calhar, comecei pelas valsas do Strauss. Quando comecei a colecionar, aos 21 anos, comprei a minha primeira obra na Sociedade Nacional de Belas Artes: um Mário Botas, em vez de uma imagem de uns barquinhos com reflexos na água. Ter algo digno, numerado, assinado, é muito melhor do que ter um ‘menino da lágrima’”, sublinha. E diz mais: “O gosto aprende-se, a sofisticação faz parte do percurso do colecionador. Mas há pessoas que têm mais nariz do que outras. Ter só conhecimento não é tudo.” E o colecionador acha que tem “nariz”? José Carlos Santana Pinto responde filosoficamente: “O tempo é que vai decidir [sobre o valor das obras], o tempo é um absoluto.”

O tempo é também uma testemunha: em miúdo, este colecionador juntava já cromos de futebol, bilhetes de elétricos, caricas… “Fugia da empregada que me levava à escola no Largo do Leão, porque havia ali muitas tabernas castiças. Apanhei uma infeção nas mãos por remexer na serradura do chão, à cata de caricas bonitas.”

Olhar plural A exposição O Vaguear do Olhar, patente no Museu Municipal de Coimbra – Edifício Chiado, curada pela colecionadora Ana Cristina, revela peças de Vasco Araújo, Candida Höfer e Carla Filipe

António Albertino e Ana Cristina Antunes

Coleção AA – António Albertino e Ana Cristina

“Colecionar pelo prazer e pelo gosto”

Colecionadores com fortes ligações a Coimbra, António Albertino, 73 anos, empresário na área de tintas de automóveis e reparação, e Ana Cristina Antunes, 64 anos, psicóloga, construíram um acervo de arte contemporânea que abrange pintura, escultura, fotografia, desenho, colagens, vídeo, e instalações. Entre as cerca de 450 obras, há peças de Julião Sarmento, Helena Almeida, Rui Sanches, Rui Chafes, Christian Boltanski, Carla Filipe, Ângela Ferreira, Vasco Araújo e muitos mais artistas. As primeiras obras adquiridas eram de Ângelo de Sousa e Jorge Martins.

A ideia de casa-galeria também não seduz os fundadores da Coleção AA-Ana Cristina e António Albertino. Ana Cristina explica porquê com uma imagem protetora: “Temos de ter uma pele.” António Albertino acrescenta-lhe pragmatismo: “Esse tipo de projetos tem inteligência e estratégia, mas abdica-se da casa para se ser colecionador: a arte é que habita a casa deles. Eu sou mais conservador. Em nossa casa, temos os nossos [autores] queridos. Na sala, estão obviamente peças de Fernando Calhau, Julião Sarmento, Michael Biberstein, João Queiroz, John Baldessari, duas belas esculturas de Rui Sanches, duas belas fotografias de Thomas Ruff…” Este name dropping é uma destilação doméstica de uma coleção de 450 obras que continua a crescer, mas com limites. “Nos últimos anos, deixámos de comprar obras que, pelas suas dimensões e pelos custos de manutenção, só são possíveis de manter numa grande instituição.” O foco, esse, continua a ser o da arte contemporânea. “São opções de gosto. Não tenho pratas em casa, não há coleção de Companhia das Índias… O que temos é mobiliário, livros e arte”, sumariza António Albertino.

Unido há 45 anos, o casal de colecionadores diz ter criado a Coleção AA “sempre em conjunto, num espírito de partilha”. As primeiras aquisições feitas? Ângelo de Sousa e Jorge Martins, “amor à primeira vista”. “Começámos por comprar arte contemporânea por uma necessidade de dar sentido à nossa própria existência, às interrogações do que somos”, sintetiza António Albertino. “Visitávamos muitos museus, os nossos filhos apanhavam uma seca, mas é aí que se aprende. Sempre que vou a um museu, saio em paz comigo.” Muitos colecionadores defendem que “a arte só faz sentido se for partilhada com os outros”. Mas há desafios lembrados por António Albertino: “Não tenhamos ilusões: a arte contemporânea é elitista. As pessoas passam ao lado, não há hábitos de visita regular aos museus. Podemos colocar a cabeça na areia…” Ou organizar exposições baseadas na sua coleção privada pelo País fora. Há 13 anos, revelaram parte da coleção AA e celebraram o 60º aniversário de António Albertino no espaço abandonado da antiga Sociedade de Porcelanas de Coimbra, limpo do lixo em dois meses com ajuda de amigos. Há sete anos, os colecionadores pagaram do seu bolso a remodelação de um armazém de trabalho com zelo de white cube, para mostrar mais peças. “Sabe quem ia para lá trabalhar? Era eu e a Ana Cristina.”

Militância

Agora, e até 13 de julho, organizaram, no espaço do Museu Municipal de Coimbra – Edifício Chiado, a exposição O Vaguear do Olhar, com curadoria de Ana Cristina. Reuniram desenhos de Ângela Ferreira e Carla Filipe, esculturas de Rui Sanches e Rui Chafes, pinturas de Fernando Calhau, e levaram, em jeito de homenagem, a pintura de Julião Sarmento que têm habitualmente sobre a lareira. Mas os AA apontam o dedo à burocracia e à ausência de políticas culturais para criar condições dignas para mostrar coleções privadas no País. “O que desejamos é um espaço vivo, com orçamento mínimo para fazer três exposições anuais, curadores convidados, transporte, seguros, catálogo. Uma estrutura adequada. E isso não tem sido a realidade encontrada junto de instituições ou autarquias.”

O esforço e a militância para mostrar uma coleção privada com grande ambição é um assunto que os fundadores da Coleção Norlinda e José Lima conhecem bem. A sua coleção soma mais de 1 580 obras de arte, e cerca de 1 200 estão em depósito no Centro Oliva, em São João da Madeira. O projeto sob alçada municipal tem enfrentado desafios públicos: a questão periférica, a falta de equipa, os orçamentos de programação baixos (€80 mil). Soma-se-lhe a frustração de José Lima por não ver cumpridos os desejos de circulação das obras numa programação mais intensa, por sentir falta de maior divulgação, pela inexistência de uma equipa de curadores e conservadores na instituição. “O Estado tem de ajudar as câmaras municipais para estas condições serem cumpridas”, defende. O colecionador encomendou recentemente uma sondagem, que revelou que mesmo os locais não sabiam localizar onde estava a coleção de arte contemporânea em São João da Madeira, e isso ressuscitou uma velha batalha: a da instalação de placas a indicar a direção do Centro Oliva. O colecionador nunca recusou um pedido para empréstimo de obras da coleção privada: “Desde que tenham um sítio digno, digo imediatamente que sim.” Na Coleção Norlinda e José Lima predomina a pintura, mas a enxurrada de artistas, jovens e consagrados, é avassaladora, espalhando-se pela casa, arrumando-se em vários armazéns: Lourdes Castro, Ilda David, Donald Judd, Diogo Pimentão, Tápies, Helena Almeida, Diogo Nogueira, Paula Rego, Fernão Cruz, João Gabriel…

Histórias exemplares

“Tenho muitos clientes estrangeiros que vêm cá, e dizem que querem ver um museu de arte contemporânea. E eu digo-lhes: ‘Porque é que não vens ali a casa?’”, conta o empresário, com tradições na indústria do calçado. Iniciada quando tinha 40 anos e já uns tostões no bolso, a coleção continua a devorar aquisições. A última foi uma peça de Bernardí Roig: “Comprei uma escultura lindíssima, com dois metros, na ARCO Madrid. E arrependi-me: ‘Onde é que eu vou meter isto?’”, ri-se com entusiasmo. Acrescenta: “O meu problema não é a pena do que tenho, é a pena de aquilo estar parado. As obras eram para estar nas ruas, nos teatros, em exposições!”

“Comprar é compulsivo, é-se como um jogador de casino”, assume. Na sala de família, o retrato poderoso de Miquel Barceló exigiu-lhe um telefonema para o banco, a pedir capital. “Comprei o quadro e fiquei teso durante um ano.” No lado oposto, há um objeto carregado de simbolismo: uma rosa do deserto adquirida em Marrocos, onde, convalescendo de um problema de saúde, José Lima se atirou aos 83 anos, num rally. “Tudo o que comprei foi porque gostei. Não tive influências de galeristas. E tenho sorte: tenho trabalhos que mais ninguém tem.” Como a descoberta que fez na Tate, em Inglaterra: “Ao fundo do corredor, vi uma obra pendurada por uns ilhoses. ‘Grande quadro! Não sei quem é, Leon Golub?’ E alguém me diz: ‘É o pintor maldito dos EUA.’ Andei três anos atrás de um quadro dele.” O filho Ricardo Lima, hoje também dedicado à gestão da coleção dos pais, defende o faro do pai a apostar em novos artistas desconhecidos, anos antes de fazerem nome. “Digo muitas vezes que não sou bem um colecionador, sou mais um coletor”, declara José Lima. 

Novo equipamento O colecionador Fernando Figueiredo Ribeiro revela a sua coleção privada no Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, em Abrantes, incluindo obras de Rui Valério e André Cepeda 

Fernando Figueiredo Ribeiro

Coleção Figueiredo Ribeiro

“Conheço a maioria dos artistas da coleção”

Este gestor financeiro nascido em Moçambique, com raízes familiares goesas, 55 anos, chegou a Portugal com oito anos. A sua coleção de arte contemporânea dedica-se aos jovens artistas portugueses, estendendo-se a estrangeiros ligados ao espaço nacional, e privilegia pequenos e médios formatos. Somando cerca de três mil obras, inclui artistas como Rita Gaspar Vieira, Luísa Cunha, Sara Bichão, Ana Jota, Miguel Palma, Miguel Ângelo, Rocha, Kiluanji Kia Henda, Belén Uriel. A primeira obra de arte foi adquirida aos 21 anos, um quadro a óleo (prefere não revelar o nome do autor)

Em Portugal, há histórias felizes e histórias menos felizes no que respeita à gestão e à divulgação de coleções privadas no espaço público. A coleção de arte contemporânea do comendador Joe Berardo, hoje no limbo institucional, fez tristes manchetes. Já a perseverança do colecionador António Cachola, distinguido com o Prémio “A” de Colecionismo Privado da Fundación Arco em 2016, mantém a sua coleção, dedicada exclusivamente a artistas portugueses, em depósito no Museu de Arte Contemporânea de Elvas – MACE desde 2007. A recente inauguração do Pavilhão Julião Sarmento, localizado num antigo armazém de alimentos reabilitado pelo arquiteto João Luís Carrilho da Graça com um orçamento de seis milhões de euros, a que se somaram 500 mil assegurados pela EGEAC, revela ao público as 1 500 obras colecionadas pelo artista português, desaparecido em 2021. E, em março, houve a inauguração do MACAM – Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, um game changer, um museu privado com uma coleção com cerca de 600 peças – e um hotel associado como modelo de financiamento próprio. As expectativas, garante Armando Martins à VISÃO, foram superadas: 35 mil visitantes em 52 dias. E houve surpresas: a galeria 1 dedicada ao modernismo português transformou-se num sucesso – e o colecionador vai investir mais nesse núcleo do passado. É uma iniciativa privada que marca o panorama artístico e que impressionou os colecionadores nacionais. Aliás, o MACAM inclui a House of Private Collections, galeria com espaçosos 700 m², destinada a receber mostras de coleções privadas, alternando entre nacionais e estrangeiras. E já houve várias manifestações de interesse… A primeira coleção particular mostrada será a de José Carlos Santana Pinto, referiu o próprio à VISÃO.

“Há acervos que estão guardados em armazéns, como esteve a minha coleção tanto tempo, e que assim não servem para nada – nem mesmo para o próprio colecionador. Talvez seja até um pouco egoísta. Mas isto só tem interesse se nos divertirmos e a partilharmos”, declara Armando Martins. Nos primeiros cinco anos de colecionismo, recorda, o empresário só comprou obras do século XX português, “por falta de capacidade financeira e talvez por falta de conhecimento”. E acrescenta: “Hoje, arrependo-me bastante. Na última Arco Lisboa, um miúdo de 20 anos pediu-me conselhos sobre a arte. Respondi-lhe que se era para começar uma coleção, que começasse já, mas que comprasse artistas nacionais e estrangeiros ao mesmo tempo. E que não fizesse como eu, a quem me foram oferecidas peças do outro mundo, e que não aproveitei.” Exemplos? Armando Martins teve um Gerhard Richter na mão por 66 mil contos e recusou. “Na altura, era muito dinheiro para mim, mas estava capaz de o comprar. Uns anos depois, encontrei essa peça na Feira de Basileia por 23 milhões de euros…” Outro remorso: durante a crise de 2008, o empresário acreditou que iria regressar ao Brasil, onde já vivera durante 11 anos, e vendeu um punhado de obras de artistas brasileiras para ter capital disponível para comprar um pequeno centro comercial lá. “Estou estupidamente arrependido: perdi o dinheiro investido no Brasil e perdi as obras, uma das quais eu adorava: era a melhor peça que já vi da Beatriz Milhazes.” A novela não acaba aqui: quando em 2018 recebeu o Prémio “A” de Coleção pela Fundación Arco, Armando Martins ficou sentado ao lado de uma jovem brasileira da Galeria Fortes Vilaça durante um jantar. Conversa vai, conversa vem, ele contou-lhe a mágoa da perda de Milhazes. Ela abre o telemóvel, mostra uma imagem, e diz: “Era esta peça, não era? Foi o meu pai que a comprou.” O colecionador português “ia morrendo”, diz. O quadro ia ser vendido pela família, a galerista perguntou-se se estava interessado. “Eu agradeci, mas estava a braços com esta obra do MACAM e não tinha condições de ir a jogo…” Armando Martins também perdeu obras importantes de Vieira da Silva, num negócio acertado dois ou três dias antes de o galerista Jorge de Brito falecer repentinamente. Dramas de colecionador. “Umas vezes, perdemos peças; outras vezes, compramos obras sem saber como vamos pagá-las a seguir… É uma guerra interior. Ao colecionismo eu costumo chamar uma droga”, remata o fundador do MACAM.

O colecionador Fernando Figueiredo Ribeiro mantém a sobriedade no discurso e usa metáforas automóveis para falar de um mundo complexo: “A arte é como os automóveis: se não andar, estraga-se.” Mais à frente, recusa qualquer engrandecimento ou drama sobre o destino das coleções privadas: “Eu fiz isto ao longo da vida. Em bom rigor, achava-me mais um ajuntador do que um colecionador. O meu olhar não é um olhar coletivo: o que posso dizer é que gostei desta, desta e daquela obra, e que as comprei.”

Caminhos discretos

A Coleção Figueiredo Ribeiro (assumidamente batizada só com os apelidos, para preparar o legado para a próxima geração) colhe elogios, mas o seu fundador desvia as atenções: “Quando me dizem que sou ‘grande colecionador’, respondo logo que deve ser pela altura.” É, certamente, uma grande história: com a colaboração da investigadora Adelaide Duarte, ele enviou cartas para mais de 20 câmaras a propor a sua coleção. A condição é que não ficassem a mais de 1h30 de Lisboa. Todas responderam, e a maioria queria a sua coleção. Hoje, a Coleção Figueiredo Ribeiro tem um protocolo de comodato com um museu premiado com um acervo nos antípodas da arte contemporânea: o MIAA – Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes. Aí, o colecionador dispõe de duas salas amplas onde agora se mostra a exposição Da Dobra que a Chama Traz, com curadoria de Catarina Mel e Ricardo Escarduça.

Ao falar das obras aí patentes, é evidente a sua proximidade com os artistas maioritariamente das novas gerações: é um colecionador que dá sugestões de apresentação de obras, visita os ateliers, compra por vezes exposições inteiras de um único artista (como fez, por exemplo, com Luísa Cunha), tem mais de 20 obras ou séries grandes de determinados artistas – casos de Sara Bichão, Ana Jota, Miguel Henriques, Miguel Palma, Miguel Ângelo Rocha… Os seus critérios de aquisição de obras são cristalinos: há um critério de gosto; as dimensões das peças têm de ser “caseiras, no sentido em que podem viver em casa”; busca as peças criadas a partir dos anos 1970 para a frente; e privilegia certas técnicas como pintura, desenho, escultura, fotografia, “por esta ordem”. É uma coleção dedicada à arte nacional, porque o colecionador “gosta muito” dos artistas portugueses.. “Tenho três filhos e a coleção é quase como um quarto filho. Vender obras, que nunca fiz, seria aborrecido. Mas se eu analisar o colecionismo, não há grande lógica aqui. Sou católico praticante, e dizer que faço sacrifícios pela arte seria pecado.”

Ser ou não ser mecenas

Os colecionadores assumem o papel de mecenas ou de patronos face aos artistas contemporâneos? As respostas variam. “Temos relações fortes com artistas, também porque a maneira como as exposições acontecem na Rialto6 é muito intimista: preparamos a exposição, subimos até casa para almoçar ou jantar”, sublinha Maria Cabral. O marido acrescenta: “Não gosto da palavra ‘patronos’, tem uma certa hierarquia.” António Albertino e Ana Cristina olham para a big picture: “Em Portugal, há muito poucos colecionadores portugueses que comprem mais de 15 ou 20 obras por ano. E não haverá mais de 30 a 40 colecionadores que alimentem, de forma sistemática, o circuito.” A Coleção AA, defendem os seus fundadores, ajudou muitos artistas portugueses quando ainda não eram conhecidos: Nuno Sousa Vieira, Inês Moura, Vasco Paiva, André Cepeda… “Sem artistas, não haveria colecionadores. E sem colecionadores, os artistas e os galeristas não sobreviveriam. Esta é toda uma cadeia interdependente”, aponta Armando Martins. Este colecionador acrescenta: “Acho que se um colecionador quer ser um mecenas, tem de escolher as obras que tem; o colecionismo completa-se se é mostrado.” Fernando Figueiredo Ribeiro cita bons exemplos: “Maria da Graça Carmona e Costa [galerista e colecionadora desaparecida em 2024] era uma verdadeira mecenas que tive o prazer de conhecer. E era-o pelo seu amor à arte: criava bolsas, apoiava artistas sem pedir nada em troca, apoiava até instituições, fazendo um trabalho notável.” E o colecionador reitera: “Eu não sou mecenas de nada. Esta coleção não será doada a ninguém: será dos meus filhos.”

A compra é, pois, o gesto mecenático por excelência dos colecionadores. “As artes visuais são financiadas por um conjunto de pessoas que têm tempo a menos, dinheiro a mais e um attention span [capacidade de atenção] baixo: muitos nem percebem bem o que estão a ver, se era a capa do leilão ou assim…”, diz, provocatório, Armando Cabral. Mas os responsáveis da Rialto6 abordam também outros temas complicados: comprar obras diretamente a artistas representados por galerias? “Nunca nos passaria pela cabeça, é falta de ética, é aldrabice.” Descontos de preços nas obras? “As obras de arte são um bem etéreo. Se não se respeita o valor socialmente estabelecido para as obras de arte, então não há limites para os preços, estas não valem nada, não têm utilidade.” Diminuir preços alarga a base de compradores? “Fazer uma obra que custa 20 mil euros ser paga por 18 mil não fará com que metade dos portugueses vão comprar arte. Todos os artistas têm peças pequeninas, médias e grandes. O que alarga o público é as pessoas adquirirem pequenas edições.”

Força das imagens Fotografados no espaço da Galeria Rialto6, Maria e Armando Cabral rodeados por peças significativas de videoarte da sua coleção privada

Maria João Santos e Armando Cabral

Maria e Armando Cabral – Rialto6

“Estar na arte de forma diferente”

Engenheiros de formação, 55 anos, o consultor de estratégia empresarial e administrador da Fundação de Serralves e a sua mulher criaram uma coleção constituída por artistas nacionais e estrangeiros, privilegiando obras de inspiração conceptual e pós-conceptual, que usam os novos média como a fotografia, o vídeo e a instalação – entre cerca de 350 peças, encontram-se obras da dupla de artistas portugueses João Maria Gusmão & Pedro Paiva, Ângela Ferreira, Miguel Soares, Cindy Sherman, Wolfgang Tillmans, entre muitos outros. A primeira aquisição foi um trabalho de João Onofre.

Julião Sarmento contou certa vez à VISÃO que uma das suas primeiras paixões, enquanto colecionador, foi uma obra de Joaquim Rodrigo (1912-1997), pintor autodidata, artista conceptual que criaria um reconhecível estilo figurativo. E candidamente confessou ter demorado “anos a pagar o quadro em prestações”. Não é caso único. Armando Martins, fundador do ambicioso MACAM, conta à VISÃO que comprou agora uma peça em Madrid, combinando o pagamento ao longo de 12 meses. Falar de arte é também falar, inevitavelmente, do vil metal. Em grandes quantidades. Como uma rima, perante este facto da vida, os colecionadores falam em “escolhas”. “São investimentos muito grandes, não se está a falar aqui de colecionar com 2% do capital [que se tem]. Em vez de se comprar uma casa no Algarve, tem-se uma coleção destas”, avança Armando Cabral. Ou em vez de “adquirir um Porsche”, diz, com ironia, Fernando Figueiredo Ribeiro.

Falar em valores não é um território confortável. Ainda que haja quem avalie a sua coleção privada em valores como dez milhões de euros. Maria e Armando Cabral, fundadores da Rialto6, dizem desassombradamente: “Já comprámos obras de arte conceptuais a preços absurdos, porque ninguém quer aquilo para nada: somos os 2%. O tipo de arte que apreciamos tem um público-alvo muito reduzido.” O casal de colecionadores coloca na ordem o voyeurismo dos cifrões: “Uma vez, perguntaram-me se tinha obras muito valiosas na coleção. Respondi: ‘Temos, sim senhora, o Ulisses, do James Joyce, Os Lusíadas…’; o que é que um colecionador pode ter de mais culturalmente relevante do que A Montanha Mágica, de Thomas Mann? Ou uma obra de Wagner? A diferença é que uma dessas obras é uma edição em um milhão de exemplares e a outra é única. Essa pergunta sofre de um problema conceptual, porque é dirigida não à qualidade das obras, mas ao seu preço.” Armando Cabral acrescenta: “Há, ainda, outro problema: as obras de arte extraordinárias são muito raras. Em Portugal, existem… dez? Mas as obras extraordinárias têm de estar nos museus. Para a nossa coleção, já adquirimos obras de arte boas, peças importantes. Temos, por exemplo, uma peça importantíssima do John Baldessari que está em muitos museus. Mas dizer que compramos obras extraordinárias seria saloio.”

Amor de alta performance

Colecionar arte contemporânea não é para espíritos fracos. José Carlos Santana Pinto, que usa sempre luvas ao manusear as obras da sua coleção, conta que já teve casa cheia com 30 pessoas em casa e que nunca teve um “acidente”. Mas, em noites de festa e bebedeira, recorda-se de estar sempre a dizer “não” ao “Joãozinho” Onofre porque este insistia em colocar um copo de vinho em cima da escultura de Cabrita Reis, instalada no meio da sala do colecionador… Fora da esfera doméstica, os colecionadores somam armazéns para guardar as centenas e milhares de obras de arte acumuladas. Há custos: manutenção certa, dispositivos para regulação de temperatura e desumidificadores, ajoelhar e rezar para que nenhum fungo consuma a obra. E, se se quiser mostrar obras da coleção privada, há transportes, seguros, montagem, sustos… “Ser colecionador em Portugal não é fácil, sobretudo para quem não olha para a coleção com o guia ArtPrice na mão”, sublinha Fernando Figueiredo Ribeiro.

Não surpreende que o anúncio de taxa de IVA de 23% na venda de obras de arte (logo a seguir à ex-ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, ter anunciado uma nunca concretizada descida para 6%) tenha suscitado revoltas. “Uma obra de arte pagar 23% de IVA é um disparate: equivale a um produto de luxo, e a arte não um produto de luxo. Quer-se adquirir um trabalho que custa um milhão de euros e vai-se pagar 230 mil euros de imposto?! É um disparate, é um travão na cultura. Eu estou a fazer um serviço público que o Estado não faz. Não quero beneficiar mais do que qualquer outro, mas deixem-nos trabalhar, não nos esmaguem. Eu não tenho um euro do Estado – ou da banca – no MACAM. Como se diz na minha zona, estou bonito, mas estou teso”, arenga Armando Martins. “Este valor de 23% em Portugal vai criar uma tentação para as pessoas pagarem por baixo da mesa”, alerta José Carlos Santana Pinto. Não são as únicas batalhas agendadas com o Estado: há o eterno caso do (inexistente, queixam-se) Museu de Arte Contemporânea do Chiado, há a debilidade da lei de mecenato, há um Ministério da Cultura que passou a vizinho da juventude e desporto…

Linguagem singular O colecionadorJosé Carlos Santana Pinto, retratadona sua casa lisboeta, marcada por obras de arte conceptual como o néondo artista emergente Fábio Colaço

Santana Pinto conta que ouviu esta blague em Bruxelas: “80% dos colecionadores são de direita, 20% são de esquerda.” Assumindo-se parte dos 20%, o colecionador acrescenta ainda que não compraria “arte fascizante” e revela um discurso crítico, por exemplo, com a proliferação de feiras de arte: “É só dinheiro.” E conclui: “Socialmente, é muito bem-visto ter obras de arte.” Fernando Figueiredo Ribeiro matiza a questão: “Esta é uma atividade simultaneamente bem-vista e malvista. Porque num país como Portugal, um colecionador qualifica-se como rico, é visto como um sinal exterior de riqueza. Eu sempre trabalhei por conta alheia, paguei uma brutalidade de impostos e desfruto da arte – mas não como arte.” E o futuro das coleções? É uma dor de cabeça anunciada. Armando Martins tem esperança de que os herdeiros continuem o seu legado. Armando Cabral declara isto: “A única coisa realmente ética para fazer a uma coleção de arte é doá-la a um museu. O pior é dá-la aos filhos: a trabalheira brutal que isto dá, a manutenção, os empréstimos… Há quem diga que não é uma liability [uma responsabilidade] porque é um ativo que eles podem vender. Isso é outra conversa: se é para vender, também se pode vender em vida.” E recorda: “Não há um grande historial de coleções doadas que foram perpetuadas.” Resta o presente, o que os faz comprar a obra. Fernando Figueiredo Ribeiro oferece um consolo: “Colecionar arte contemporânea é a paixão pelo que fica.”

José Carlos Santana Pinto

Coleção José Carlos Santana Pinto

“Dizem-me que a minha casa tem um gesto curatorial”

Lisboeta, 76 anos, profissional reformado da aviação civil, colecionador há mais de 50 anos, o seu acervo tem uma preferência pelos artistas conceptuais, minimalistas, nomeadamente da escola americana. A coleção integra trabalhos em vários média, como instalação, vídeo, escultura, fotografia e pintura, com particular atenção aos trabalhos com elementos de linguagem. Dos muitos artistas que integram o seu acervo, destaque para Joseph Kosuth, Pedro Cabrita Reis, Allan McCollun, Christian Boltanski, Donald Judd, Daniel Buren, Mariana Gomes, Fábio Colaço… A sua primeira aquisição foi de uma obra do pintor Mário Botas.