Centro de Arte Moderna: Um novo oásis na Gulbenkian

Centro de Arte Moderna: Um novo oásis na Gulbenkian

Um novo e misterioso vocábulo vai seduzir os lisboetas e demais visitantes do novo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, há quatro anos envolto em obras de renovação e ampliação: engawa. A palavra enigmática designa o tradicional conceito da arquitetura japonesa que o arquiteto Kengo Kuma, reconhecido por prodigiosas construções em madeira e bambu e projetos marcantes no panorama da arquitetura contemporânea (em que se incluem o Estádio Olímpico de Tóquio, a extensão do Museu Victoria & Albert, em Dundee, e, em território português, a reconversão do Matadouro Industrial de Campanhã), imprimiu na reinvenção do CAM.

Foto: Fernando Guerra

Engawa significa um lugar de passagem entre edifício e jardim, entre interior e exterior. Entre luz e sombra também, conceitos refletidos na impressionante estrutura arquitetónica que agora repousa nos terrenos do Parque de Santa Gertrudes, onde a Fundação Gulbenkian instalou o seu edifício-sede há mais de cinco décadas para albergar a imensa coleção do benemérito de origem arménia Calouste Gulbenkian (1869-1955), e a que o arquiteto britânico Leslie Martin acrescentou o CAM. E que, recordou o presidente da Gulbenkian, António Feijó, durante a visita de imprensa ao renovado CAM, alguma celeuma levantou à época pelo seu fechamento, já que os terrenos adjacentes não eram propriedade da Fundação… Hoje, a solução arquitetónica de Kengo Kuma resolveu essas velhas reservas: ao caminhar pela nova entrada principal do CAM, a partir da Rua Marquês da Fronteira, o visitante ganhou espaço e apreende o total impacto desta joia arquitetural.

O enorme telheiro desenha-se elegantemente no espaço, parecendo desafiar a gravidade. É uma pala com cem metros de comprimento, criando um corredor coberto que acompanha toda a fachada sul do edifício – e que, por segundos, transporta a imaginação para paragens distantes. Exibe as curvas sensuais da arquitetura tátil de Kengo Kuma – mas com referências à cultura portuguesa. A estrutura de madeira é revestida com 3274 azulejos brancos produzidos em Portugal, concebidos para induzir o arrefecimento do edifício – um fator de sustentabilidade que acompanha tudo no novo CAM. A engawa concorre para o efeito cénico do jardim, sublinha aos jornalistas o arquiteto Lourenço Rebelo de Andrade, colaborador do arquiteto japonês em vários projetos, citando-o: “A Natureza é a grande protagonista deste projeto.”

Foto: Fernando Guerra

O novo jardim é uma criação do arquiteto paisagista libanês Vladimir Djurovic: as linhas curvas da água fazem pensar nas pequenas poças aquáticas realizadas por Gonçalo Ribeiro Telles (1922-2020) no jardim labiríntico da Fundação. Mas, aqui, dominam as grandes árvores. “Isto foi tão bem feito que nem se notam as árvores novas…”, orgulha-se a arquiteta paisagista Paula Corte-Real. Há ciprestes, lódãos, olaias, um plátano gigante, pinheiros… “As aves estão a regressar a este lugar”, sublinha ainda. Chapins, toutinegras, também libelinhas ou abelhas, sinais de que a Natureza segue o seu curso, mesmo no centro da cidade.

O renovado CAM e os novos jardins abrem portas ao público neste sábado e domingo, 21 e 22, com conversas, visitas orientadas, oficinas, performances e concertos.

O elogio da sombra

A obra de Kengo Kuma faz o elogio da sombra e dos jogos de luz. Sob este alpendre 3.0, tem-se uma visão abrigada dos caminhos jardinados, em que os cursos de água foram pensados para serem reciclados no lago. Mas a presença dos jardins foi igualmente reforçada dentro do novo CAM, com muitas das antigas paredes do edifício transformadas em janelas e elementos transparentes, a começar logo pelo átrio com 550 metros quadrados, localizado na antiga entrada. A irrupção da luz é um traço dominante, coadjuvado por madeiras e malha de aço, nos vários pisos.

Foto: Fernando Guerra

A visão da mancha verde por entre a contemplação das obras de arte faz a diferença. À VISÃO, Benjamin Weil, atual diretor do CAM, sublinha que “a presença da Natureza é muito maior neste edifício, e isso é importante, porque fazemos parte da ordem natural”: “O Vladimir [Djurovic] diz que fez este jardim para humanos e não humanos, e é maravilhoso pensar isso.” Esta consciência de integração social e de preocupações sustentáveis estendeu-se à área expositiva que, recorda este responsável, teve um aumento substancial de 900 metros.

A primeira artista a receber carta-branca, num diálogo criativo com o espaço e a coleção do CAM, é Leonor Antunes (1972), representante de Portugal na Bienal de Veneza em 2019. Foto: Pedro Pina

As exposições inaugurais evidenciam questões sociais e de sustentabilidade – vejam-se as 80 obras patentes em Linha de Maré, refletindo sobre a relação dos seres humanos com a bioesfera, ou, sublinha o diretor do CAM, o gesto social e político da exposição de Leonor Antunes que “apela ao tato, à escuta, e não apenas à visão, recordando que o museu é também um lugar do corpo”. A vice-diretora Ana Botella sintetiza à VISÃO: “Temos muita vontade de apelar aos sentidos na experiência do visitante. Já não se trata da velha experiência de entrar num determinado espaço e está feito: queremos criar muitos e diferentes pontos de entrada para as obras e para o CAM”, explica.

A curadora acrescenta também que há mudanças no tom e na linguagem da instituição, na formação dos assistentes de sala, na forma como se quer construir uma comunicação mais rica com os públicos. O sentido de comunidade pode passar por livros, por concertos, pela experiência individual do público perante a obra, mas também pelos espaços de convívio. Não é de somenos importância a aposta em equipamentos que estimulam a fruição social e ecoam as antigas vivências do público habitual do CAM: o espaço conta com um restaurante intitulado A Mesa do CAM, sob a batuta do chefe André Magalhães, com um menu assente na sustentabilidade e na sazonalidade, e uma loja dedicada a criações de designers nacionais.

A coletiva Linha de Maré reúne 80 obras sobre a relação dos artistas com a biosfera. Foto: DR

“A arte é um agente de mudança societal”, recorda Weil. “O planeta está em chamas, há uma emergência climática. Tal como outras instituições museológicas mundiais, estamos a estudar soluções para diminuir a nossa pegada de carbono. Reduzimos as viagens transcontinentais e estudamos formas de poupança de energia e de recursos. Em Linha de Maré criámos uma exposição sem paredes e na exposição de Fernando Lemos vamos reciclar todas as estruturas de madeira e de papel usadas no dispositivo cenográfico… Este é um trabalho gradual, que tem de atender simultaneamente às exigências das obras e às necessidades do público.”

Foto: Fernando Guerra

Este gesto de implementação de novos comportamentos e lógicas estende-se também à relação com os artistas que o CAM deseja cultivar: acompanhar de perto, chamá-los aos processos de decisão, fazer encomendas que reflitam a relação dos artistas com a instituição. Criar comunidade, novamente. Benjamin Weil defende: “Pode ser utópico dizer isto, mas não há muitos agentes de mudança societal no mundo, agora: há muito medo, comportamentos reativos, desconforto, emergência climática… É importante ter um lugar onde não há desafios inultrapassáveis, onde há uma oferta generosa de algo diferente, um espaço-tempo onde não se é bombardeado com informação. O museu e a igreja são os únicos espaços no mundo onde não há publicidade – algo tão simples como isto. Ao caminhar numa exposição, posso concentrar-me numa única coisa e não em 47 ao mesmo tempo.” É só atravessar a engawa do CAM.

Kengo Kuma: “Fazer projetos em Portugal era um dos meus sonhos”

Aos 70 anos, o arquiteto japonês Kengo Kuma é um defensor do enriquecimento proporcionado pelo intercâmbio de culturas. A intervenção no CAM não foi a sua única experiência em Portugal. Breve entrevista via email

Foto: Lucília Monteiro

O que o fez querer trabalhar em Portugal?

Sempre encontrei semelhanças entre Portugal e o Japão, nomeadamente nas suas relações com o mar. Fazer projetos aí era um dos meus sonhos. Quanto à arquitetura portuguesa, Álvaro Siza tem desempenhado um papel vital após o movimento modernista. Já visitei muitas das suas obras e aprendo sempre muito.

Utiliza dois conceitos japoneses em projetos em Portugal: komorebi, no antigo matadouro de Campanhã, no Porto, e engawa, no CAM, em Lisboa. Porquê?

A arquitetura precisa de acomodar a Natureza em rápida mudança em que vivemos atualmente. Komorebi, por exemplo, é uma expressão que se refere ao aproveitamento da luz solar filtrada pelas folhas das árvores. Engawa remete para a ligação entre a Natureza, o jardim, e o edifício, e vai mostrar um novo modelo de arquitetura para os museus do século XXI, que não são só locais para mostrarem obras de arte.

Foi o escolhido para projetar o Pavilhão de Portugal na Expo 2025 Osaka, decisão criticada por alguns arquitetos portugueses, porque pela primeira vez coube a um estrangeiro essa missão. Como lhes responde?

Não vemos a nossa prática limitada a um espaço físico, trabalhamos em todo o mundo e construímos ambientes na esperança de inspirar as pessoas. Atravessar fronteiras, trocar ideias e construir pontes culturais é uma grande parte da prática arquitetónica atual e do nosso ADN. Temos um grande respeito pelos arquitetos portugueses e somos continuamente inspirados pela qualidade do seu trabalho e pelo seu design. Japão e Portugal partilham uma rica história de intercâmbio cultural. Nos últimos anos, tive o privilégio de trabalhar em estreita colaboração com artesãos e designers portugueses, aprendendo com eles. Trazer parte desse conhecimento para o Japão é uma oportunidade maravilhosa. — Joana Loureiro

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