A abertura da 41.ª edição do Festival de Almada coube a uma companhia portuguesa. Terminal (O Estado do Mundo), da Formiga Atómica, subiu ao Palco Grande, montado ao ar livre na Escola D. António da Costa, nesta quinta, 4, numa noite quente que pressagia um festival de temperaturas altas e público caloroso.
A VISÃO esteve à conversa com Rodrigo Francisco, 43 anos, diretor artístico da Companhia de Teatro de Almada, organizadora do festival, a quem cabe a escolha dos espetáculos que, todos os anos, põem Almada em festa. Porque neste festival, como diz o seu diretor, “cabem as palavras festa e estival”, razão pela qual há muito a acontecer além de teatro.
Na sua apresentação do programa, diz que não procura “agrupar disciplinas, espectadores ou artistas em compartimentos estanques”. O que quer dizer exatamente?
O Festival de Almada inscreve-se numa tradição de festivais como o de Nancy e o de Avignon, que funcionam como locais de encontro e de diálogo, acho que é importante manter essa linha. Além de que é diferente ser uma companhia de teatro a organizar um festival ou ser um programador.
Em que aspeto?
É verdade que sou eu que tenho essa responsabilidade de escolher os espetáculos a apresentar, mas é a Companhia de Almada que constrói este festival. É diferente serem fazedores de teatro a acolher artistas, pois nós sabemos quais são as necessidades que têm ao vir apresentar um espetáculo num país estrangeiro, ou que tipo de relação é preciso estabelecer com o espectador. Damos, por exemplo, folhas de sala, não para explicar os espetáculos, mas para dar alguns elementos aos espectadores sobre o que vão ver.
Este festival é, no fundo, uma espécie de Natal em julho. É quando convidamos os espectadores que aqui vêm durante o ano a contactar com o teatro que melhor se faz. O que lhes permite crescer como espectadores e a ser também mais exigentes com o nosso trabalho.
Qual é o feedback que recebem das companhias estrangeiras que aqui vêm?
Aquilo que surpreende os artistas é chegar a um festival, que já é algo sonante – ainda há dias o El País publicava um artigo sobre o Festival de Avignon e o de Almada -, e deparar-se com uma organização de certa forma artesanal. Somos 33 pessoas na Companhia, e somos nós que montamos estes restaurantes, por exemplo. A Teresa Gafeira, atriz, é quem faz as ementas e também dá uma perninha a dirigir um dos restaurantes. Também fazemos um jornalzinho diário, alguns dos atores fazem parte das equipas de acolhimento que vão buscar as companhias ao aeroporto e as leva ao hotel… Não conheço nenhum outro festival da dimensão do nosso que mantenha esse cariz de despreocupação e de comunidade.
Como é que o festival se mantém financeiramente?
Somos financiados pelo Ministério da Cultura, através da Direção-Geral das Artes, e pela Câmara Municipal de Almada. E temos alguns apoios de parceiros como o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacional D. Maria II, e também de alguns institutos estrangeiros. Este ano, o apoio do Instituto Italiano de Cultura foi substancial, pois constituiu um quarto do financiamento do Ministério da Cultura (o que recebemos é para a nossa atividade anual).
Um festival com 41 edições tem de se candidatar a cada quatro anos a um subsídio, e somos avaliados por um juiz de um concurso público que pode, simplesmente, decidir que isto não é muito interessante e, portanto, acaba-se.
Em relação à programação, qual a sua preocupação quando faz a escolha?
Quem faz a programação tem a obrigação de ser um intermediário entre o público e os criadores. Esse exercício e ter a humildade de perceber que o que conta não é o nosso gosto pessoal é importante. O Joaquim Benite [encenador e fundador da Companhia de Teatro de Almada] falava muito dessa capacidade elástica de percebermos que o teatro é muitas coisas, e que nós não somos detentores da verdade. O que é que têm em comum Bob Wilson e Peter Stein? Nada, mas um tem uma linha assente no texto e o outro é imagem, forma, som… E os dois são grandes génios.
Três espetáculos a não perder
A oferta desta 41ª edição do Festival de Almada é variada, com trabalhos de oito companhias nacionais e 11 estrangeiras, a apresentar até ao dia 18 de julho. Dos 19 espetáculos que vão a palco, Rodrigo Francisco destaca três. “Se virem estes trabalhos, já levam muito daqui!”, garante. São peças muito diferentes, com linguagens e estéticas distantes, que em comum têm, sublinha, a “mestria”.
1. Relative Calm
A “joia da coroa” deste ano é o trabalho que resulta da colaboração da bailarina e coreógrafa Lucinda Childs e do encenador e multiartista Robert Wilson, que revisitam e reformulam Relative Calm, estreado em 1981, em Estrasburgo. “Vi este espetáculo três vezes, e é absolutamente hipnótico”, refere Rodrigo Francisco. “Quando fala desta peça, Bob Wilson refere-se a ela como um pôr do sol e, de facto, quando a vemos, há sempre qualquer coisa que se vai alterando, mas nós, público, não temos a perceção dessa ligeiríssima passagem do tempo. Ele é um mestre nisso, e este é um espetáculo incrível.” Centro Cultural de Belém > 12-13 jul, sex 21h, sáb 19h
2. Crises de Nervos, Três Actos Únicos de Anton Tchekov
Com este trabalho, Peter Stein – que em 2023 trouxe a Almada O Aniversário, de Harold Pinter – oferece ao público uma visão diferente dos textos iniciais do dramaturgo russo. Dos Malefícios do Tabaco (1886), O Urso (1888) e O Pedido de Casamento (1889) são três textos curtos, anteriores aos grandes trabalhos de Tchekov, escritos na sua juventude. Peter Stein, que já encenou as suas grandes obras, debruça-se agora sobre estes três textos, num trabalho de “mestria absoluta”. “Sendo textos divertidos, ele põe-nos em cena de uma forma absolutamente realista e cheia de relações psicológicas entre as personagens.” Teatro Municipal Joaquim Benite >13-14 jul, sáb 21h30, dom 19h
3. A Tempestade
Traduzido para napolitano por Eduardo De Filippo, o texto de Shakespeare ganha contornos inusitados. Desde logo porque os intérpretes são marionetas. “De Filippo traduziu a peça para napolitano, escrevendo logo uma versão para teatro de marionetas. Na década de 1980, a companhia Colla e Figli, de Milão [que traz a peça a Almada], foi convidada a apresentá-la na Bienal de Veneza. É um espetáculo maravilhoso, de enorme beleza, com 150 marionetas, algumas com mais de um metro de altura.” Auditório Fernando Lopes-Graça > 6-7 jul, sáb-dom 15h
Mais para ver e ouvir…
Todas as noites, a partir das 20h, a Escola D. António da Costa, vizinha do Teatro Municipal Joaquim Benite, transforma-se numa enorme esplanada, com restaurantes e um palco destinado à música. Sob as luzes e guirlandas que lhe dão um ar descontraído, há concertos com artistas que nos trazem géneros musicais tão diversos como o cante alentejano, o jazz com origens guineenses de Bissau-Lisboa (sex, 5, 20h), Rita Vian (sáb, 6, 00h), os sons balcânicos e do Próximo Oriente com os Balklavalhau (qua, 10, 20h), entre muitos outros.
O contacto entre o público e os artistas é possível todos os dias, às 18h, no mesmo local, onde acontecem os Colóquios na Esplanada, e onde se fala sobre os espetáculos apresentados e as circunstâncias em que foram feitos.
É também nas instalações da escola que podemos ver, das 18h às 24h, a instalação de homenagem à Barraca [fundada em 1976, em Almada, na Academia Almadense], Um Sonho de Federico García Lorca em Lisboa, da autoria de José Manuel Castanheira. Liberdade! Liberdade! A Revolução do Teatro, a exposição organizada pelo Museu Nacional do Teatro e da Dança, com curadoria de Nuno Costa Moura, pode ser visitada no mesmo local e horário.
Ao lado, no foyer do Teatro Municipal Joaquim Benite, está exposta uma coleção de documentos do Arquivo Ephemera, 25 de abril: Os dias, as pessoas e os símbolos. E no Convento dos Capuchos, a pintora Ilda David expõe Quando soubermos ouvir as árvores.
Festival de Almada > Teatro Municipal Joaquim Benite, Escola D. António da Costa e Convento dos Capuchos, Almada, e Centro Cultural de Belém, Lisboa > até 18 jul > programação completa aqui