A determinada altura, Sandra, devastada e exausta, enquanto chora depois de se ver forçada a sair de casa, numa sequência de acontecimentos traumáticos, comenta que a vantagem de ter dinheiro é poder chorar no carro enquanto os outros têm de chorar nos transportes públicos. É este humor ácido e uma exposição à insustentável tragédia da vida que colocam Anatomia de uma Queda num plano superior: um filme que nos confronta com a ironia da própria existência.
Anatomia de uma Queda é um dos grandes outsiders da corrida aos Oscars. E isso só não é assim tão claro porque, surpreendentemente, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, o que lhe dá algum estatuto à partida. Mas esta dissecação de uma tragédia está longe do que tem sido habitual entre os nomeados, mesmo contando com as produções independentes e estrangeiras que têm vindo a ganhar terreno dentro do espectro de Hollywood. Mesmo a vitória em Cannes foi inesperada, uma vez que a realizadora francesa Justine Triet ainda não tinha assinado nenhum filme relevante. Para os Oscars tem cinco nomeações, todas em categorias importantes: Melhor Filme, Melhor Realização, Melhor Atriz, Melhor Argumento e Melhor Montagem. A concorrência é forte, o que faz com que, na verdade, não esteja entre os favoritos.
O filme fecha-se numa só narrativa, partindo de um acontecimento trágico, de forma natural e orgânica, sem espaço para ramificações ou subplots, porque de certa forma a pressão obsessiva da realidade sobre as personagens não o permite. Envolve-nos e arrasta-nos por todas as nuances, numa autópsia física e moral, sem escrúpulos. Parafraseando a personagem de O Ódio, de Mathieu Kassovitz, o problema não é a queda, é a aterragem. Todo este filme é sobre as ressonâncias do impacto dessa aterragem.
No entanto, o drama ganha também duas outras dimensões: a de um policial, tipo CSI, mas sem o mesmo aparato tecnológico; e a de um filme de tribunais, de eloquente disputa retórica, onde se debatem temas como a, por vezes ténue, fronteira entre literatura e realidade.
Anatomia de uma Queda oferece-nos, sobretudo, uma personagem com uma densidade psicológica elevada que nos interessa decifrar, pela complexidade das suas características, que passam por uma aparente frieza, um humor autoirónico e uma racionalidade quase inabalável. É o apogeu de Sandra Hüller, atriz que já conhecíamos de Toni Erdmann, e este ano quase se arriscava a uma dupla nomeação para os Oscars, uma vez que também é uma das protagonistas do filme A Zona de Interesse.
Anatomia de uma Queda > De Justine Triet, com Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner, Antoine Reinartz > 151 min