A pandemia trocou as voltas ao calendário do Museu de Serralves, tal como aconteceu a todo o circuito das artes plásticas, mas o museu vai buscar uma feliz citação da própria Yoko Ono, que serve como carapuça metafórica para o presente momento de regresso do público. Mais concretamente, a uma frase de Collecting Piece II (Peça de Colecionar II): “Parte um museu contemporâneo em pedaços com os meios que escolheres. Recolhe as peças e volta a juntá-las com cola.” Um exemplo da atitude de desconstrução e de provocação que a artista japonesa, 86 anos, tem levado a cabo nas últimas décadas, e em que o público é chamado a ser mais do que um mero voyeur passivo.
O Jardim da Aprendizagem da Liberdade, ambiciosa mostra que reorganiza o espaço da instituição portuense, revela cerca de 297 obras de Yoko Ono, algumas destas patentes no Parque de Serralves – onde, por exemplo, estarão Obras de palavra(s), criações construídas com palavras chave em tamanho gigante e espalhadas em grandes suportes. Há, aqui, um impulso antológico: as peças apresentadas, assegura Serralves, abrangem toda a carreira da artista, desde a década de 1950 até aos dias de hoje, e inclui performance, filme, música, instruções e texto.
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E falando de instruções, cite-se a informação dada: “Somos encorajados a olhar e a experienciar. Somos convidados a construir a obra, seja física ou mentalmente. Por vezes, é necessário tocar, mexer, e a arquitetura do Museu é confrontada pela arquitetura concebida pela artista”. Ou seja, há uma dimensão interativa que o diretor do Museu de Serralves, e curador da exposição, Philippe Vergne, sublinhou em declarações à Lusa. Reclamando a presença de obras seminais do percurso de Yoko Ono, a exposição teve como “primeiro impulso” para O Jardim da Aprendizagem da Liberdade uma peça chamada Colónia Penal (Colónia Penal, 2001-2004), a obra criada por Yoko Ono e Arata Isozaki: uma cela de prisão construída com gelo, cuja missão simbólica é derreter e desaparecer, e sublinhar a “permanente dedicação da artista à liberdade e a sua capacidade de rejeitar as convenções estéticas, políticas e sociais”. A esta peça, reúnem-se outras obras históricas como Maçã (1966): uma maçã verdadeira colocada num pedestal, que, na altura da sua primeira apresentação em galeria, na década de 1960, deixou John Lennon impressionado – o músico compraria a peça apenas para assistir ao processo de decomposição da fruta…
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Mas há outros trabalhos igualmente marcantes: o livro com definições conceptuais e instruções intitulado Grapefruit (1964), em que Yoko Ono estende um gesto pedagógico e participativo, ao mostrar como é que o público da exposição pode fazer estas obras em sua casa. Ou ainda EX IT (1990), título desconstruído sobre uma obra que evoca o fim ou a saída: uma peça realizada com cem caixões de várias escalas, de onde ‘crescem’ árvores – ligação metafórica entre a vida e a morte.
Também fundamental no percurso da artista nascida em Tóquio é a dimensão performativa. Serralves apresentará algumas performances criadas por Ono, como é o caso de Bag Piece (1964): o público é aí desafiado a entrar num saco, e a vestir e despir-se. Uma peça niveladora de todas as diferenças, defende-se. E estão ainda programados vários filmes, alguns destes corealizados com John Lennon.
A importância da linguagem e da participação do público integram a prática de Yoko Ono há muito. Nos seus trabalhos, são encontrados textos sob a forma de tabela, em pequenas placas de metal acopladas às obras, ou aindaa autilização de palavras minimalistas, poéticas e programáticas: respira, corta, imagina. E na sua primeira exposição, realizada em 1961 na AG Gallery, dirigida por George Maciunas, artista e fundador do movimento Fluxus, já há sinais dessa materialidade e relação com o público. Yoko Ono, que se radicara em Nova Iorque em 1953, apresentou aí algumas obras que classificou como Pin-turas de Instruções – por exemplo, Painting to Be Stepped On (Pintura para ser pisada, 1961), Waterdrop Painting (Pintura de gota de água, 1961), ou ainda Painting in Three Stanzas (Pintura em três estrofes, 1961). Nessa altura, a exposição foi visitada por poucas pessoas, e a artista pode explicar pessoalmente a cada um dos visitantes o que era suposto fazer para que as obras ficassem completas.
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Yoko Ono identificou-se bastante com esta experiência e, desde então, passou por vezes a colocar junto de cada obra um texto com a instrução que era suposto ser executada pelo visitante. Às vezes, os trabalhos posteriormente desenvolvidos assentam nesse pressuposto, apenas ficando completos após a interação do espectador, como é o caso de Painting to Shake Hands (Pintura para aperto de mãos, 1961). Philippe Vergne destaca a faceta militante da artista que, referiu, “aborda temas muito sérios, problemáticos, e problemas que começaram no século XX e que continuam a construir a nossa época como o racismo”, ou a violência, nomeadamente a perpetrada contra as mulheres. Mas também as guerras, que, muito antes, já tinham reverberado na performance contra a guerra do Vietname que Yoko Ono realizou com o seu marido Beatle, Lennon: a 24 de março de 1969, os recém-casados abriram as portas da lua de mel à imprensa mundial, recebendo os repórteres no seu quarto de hotel, em Amesterdão. Durante sete dias, ficaram na cama, militantemente, fazendo a sua campanha pela paz. Pouco tempo depois, entre 1969 e 1970, os Beatles desintegraram-se e Yoko Ono sofreria um efeito de invisibilidade enquanto artista em nome próprio, que demorou décadas a superar.
O Jardim da Aprendizagem da Liberdade > Museu e Parque de Serralves > R. Dom João de Castro, 210, Porto > T. 22 6156 500 > 30 mai-15 nov, seg-sex 10h-19h, sáb-dom 10h-20h > €20