É o próprio que descarta logo essas definições de “movida” para incautos se entreterem. Álvaro Rosendo, 60 anos, não gosta de chavões nem compõe o discurso para (con)vencer ninguém. É desalinhado por convicção e arreliado por circunstância. E é, diga-se, prata da casa: usa a mão treinada pelo desenho para criar infografias na VISÃO desde 2004. Mas os seus arquivos contam outra história: a do fotógrafo que foi testemunha da Lisboa criativa que emergiu nos férteis anos 80 e 90, a da câmara cúmplice dos fotografados, a do protagonista por direito próprio e em quem se reconhecia um sopro novo – sem esquecer o seu percurso na Imprensa e na programação cultural (foi editor do semanário O Independente, colaborou no Se7e, Blitz, Capital e Já; cofundou a Galeria Monumental e a escola de fotografia Maumaus; trabalha desde 2000 com o ator Manuel Wiborg).
Desses mesmos arquivos fundos, sai agora Aos Meus Amores 2.0: uma parte dos 40 anos de prática fotográfica traduzida em cerca de 800 imagens (de grandes e médios formatos, além de densas composições de imagens A5 pregadas na parede). “Isto não é uma retrospetiva”, avisa ele, até porque falta tanto – limitado, denuncia, “pelo sistema financeiro em que vivemos e que torna absurdamente cara a organização de algo assim”. Resume: “É um retrato de família.”
Há, aqui, uma galáxia de protagonistas da música e das artes plásticas, do cinema e da política, do teatro de palco mas também do teatro lá de casa, ascendentes e descendentes da família Rosendo, incluídos. Ao lado do registo do casamento da irmã, contempla-se Maria João Pires na familiaridade do piano, do neto na cozinha e das gravações nos estúdios da Deutsche Grammophon; Sérgio Godinho com e sem brilhozinho nos olhos; o poeta Al Berto sem a defesa da pose; os Xutos & Pontapés dentro e fora de palco (banda e fotógrafo criaram um portefólio único na nossa história musical); a presença do desaparecido José Fonseca e Costa na rodagem do filme A Mulher do Próximo (1988); os olhos marcantes de Xana (vocalista dos Rádio Macau) e de Catarina Portas (fundadora das lojas A Vida Portuguesa); Pedro Cabrita Reis desarmado da imponência de consagrado; e a irreverência juvenil de tantos outros, de Fernanda Fragateiro a Jorge Colombo, de Manuel San Payo a Pedro Burmester… Um who’s who geracional – que, assuma-se, convida a um exercício de voyeurismo. Ou, como atira desassombradamente o próprio Álvaro, “o prazer que se tem perante os livros Onde Está o Wally? é também um prazer que se retira desta minha exposição”.
O curador Luís Gouveia Monteiro refere que Aos Meus Amores 2.0 (título que remete para a exposição com o mesmo nome, dos anos 1990) é o “relatório de um paraíso perdido”. Álvaro Rosendo oferece uma versão mais chã: “É o meu diário. Nunca consegui separar o meu trabalho dessa intimidade, algo de que só me apercebi quando, um dia, decidi conscientemente que não ia continuar.” A fotografia, sublinha, nunca foi o seu ganha-pão para “pagar a renda”. Essa liberdade facilitou a afirmação de uma marca autoral: “Nunca usei artifícios, nunca usei flash (um complicador, não um facilitador), nunca levei o tripé atrás de mim.” E a vontade de fazer fotografia como achava que devia ser, quer exigindo aos rolos rendimentos maiores, para “recuperar o que era possível das sombras”, quer retocando o real: “O que sempre chocou os meus confrades fotógrafos foi sempre a minha grande capacidade de ‘trucador’, no sentido dos truques. Nunca me incomodei muito por apagar uma tomada que interferisse no enquadramento ou por limpar as beatas no chão da praia com o Photoshop.”
Mais à frente, o fotógrafo falará nas suas imagens como uma espécie de banda desenhada – obras virtuosas e menos caras do que o cinema para contar estas histórias tão íntimas. Momentos filtrados pelo tempo: o casal que dança à noite na autoestrada, a luz do campo na Granjinha do Meio, o incêndio no Chiado, a paisagem contínua da viagem a Mogadouro enquadrada pelo para-brisas. “A minha fotografia não é documental, é romântica.” Retrospetiva? “Revelação.”
E quem quiser ouvir Álvaro Rosendo a contar as histórias que estão guardadas nestas imagens, e nesta imensa geração de artistas de todos quadrantes, estão programadas visitas guiadas à exposição na companhia do próprio fotógrafo, sempre aos sábados (exceto no dia 18) em dois horários: às 15h e às 17h30.
Aos Meus Amores 2.0 > Galeria Cisterna > R. António Maria Cardoso, 27, Lisboa > T. 21 245 0737 > até 29 fev, ter-sáb 11h-19h > grátis