Esta é uma “visão panorâmica”, explica a curadora Isabel Pires de Lima, não é uma empreitada documental: “É uma exposição para o grande público, fala sobre Os Maias em diálogo com outras obras.” A ex-ministra da Cultura e professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto sublinha a atualidade de Eça de Queirós: “Quando um escritor resiste ao tempo e tem leitores, um século, dois, cinco ou dez depois, é porque é atual.” Para já, o século XXI bem pode ainda rever-se em Eça, pois a curadora pensou também nos novos públicos, nos alunos da escola: esta é uma exposição para abrir ligações, perceber influências, descobrir afinidades, ver o que a admiração por Eça também provocou em nós. Uma ideia igualmente sublinhada por Maria Helena Borges, subdiretora do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas: “Aqui, mostra-se que o Eça é imortal, é intemporal. A dra. Isabel Pires de Lima conseguiu dessacralizar o autor e Os Maias.”
Entra-se na sala e esta transfigura-se num túnel onde se descobre uma constelação de ideias, de afetos, de artes várias. Patente entre sexta-feira, 30 de novembro, e 18 de fevereiro, e organizada em sete núcleos (1888-A Vasta Máquina!, Aprendizagens, Guerra ao Romantismo, Norma e Desejo, Olhares Cruzados, A Arte é tudo, Lugares), Tudo o que Tenho no Saco, Eça e os Maias declina-se sob o signo dessa frase repescada de uma missiva dirigida a Ramalho Ortigão datada de 20 de fevereiro de 1881: o cônsul Eça estava então em Bristol, tinha livros já publicados que lhe tinham construído o nome, e declara que decidira elaborar um romance “em que pusesse tudo no saco”. E se o saco queirosiano é um poço profundo, a exposição é uma caixa de ressonâncias. Documentos, há-os, claro: contos, crónicas, romances, cartas que fizeram história (como a descasca supimpamente exemplar escrita para Fialho de Almeida, espicaçado pela crítica negativa deste a Os Maias). Sublinha-se, assim, o “particular e original realismo” de Eça: “um heterodoxo, um realista mas não como manda a cartilha”, sublinha a curadora.
Ver Eça em rede
Este Eça é também um puzzle material, visual e sonoro. Ao som da banda sonora criada pelo musicólogo Rui Vieira Nery e inspirada nas alusões musicais da obra do escritor (um loop com opereta francesa, opereta vienense, música erudita portuguesa de raíz rural, danças de salão portuguesas, zarzuelas e ópera francesa) encontramos um acervo intimista mostrado pela primeira vez fora da Casa de Tormes, lar da Fundação Eça de Queiróz, em Baião: a escrivaninha de pé alto e banco onde o escritor trabalhava, o baú dos manuscritos e o tinteiro de latão, a mesa do célebre arroz de favas, a mesa dos espíritos de Eça, a cadeira de Jacinto (personagem de A Cidade e as Serras)…
Antes de aí chegar, há fotografias pessoais: contemple-se o autor vestido com a cambaia orientalista oferecida e pose mandarinesca num retrato datado de 1893, ou de fato e bigodes cofiados ao lado dos cúmplices da época, os denominados Vencidos da Vida. Mas também observamos o autor em ambiente familiar: sentado e pensativo na sua sala de trabalho, à mesa com amigos ou com os filhos no jardim da casa de Neuilly, em França. Mas também há para ver desenhos próprios (como Alta Síria traçada pelo seu punho na viagem datada de 1869, por exemplo), capas vintage de Os Maias, caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro ou de João Abel Manta, que por exemplo declina o autor como mestre marionetista das suas próprias personagens. Ou a célebre capa de As Farpas, com um demónio sentado em cima do título, letras de farrapos sinistros…
Também saídas da biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian, estão algumas obras do universo queirosiano preciosamente ilustradas por artistas: a tradução feita por Eça de Queirós ao clássico de Rider Haggard, As Minas de Salomão, conta com desenhos de Will Nikeless e Peter Brawfield, e há um volume de Os Maias, ilustrado pelo traço extraordinário de Bernardo Marques, por exemplo.
A exposição Tudo o que Tenho no Saco, Eça e os Maias é uma galáxia de empatias e afinidades. Para ver, há ainda excertos de filmes (como o primoroso Os Maias de João Botelho com cenários pintados por João Queiroz), ilustrações (saídas da mão de Bernardo Marques, Rui Campos Matos, Raquel Roque Gameiro…), esculturas e pinturas, como as obras de Paula Rego dedicadas ao romance O Crime do Padre Amaro e O Mandarim visto por Júlio Pomar. E a palavra de Eça de Queirós? Está presente, para ser lida… e para ser levada: o desenho expositivo, da autoria do Atelier à Capucha (Raquel Pais e Maria João Ruivo) contempla 53 blocos de folhas A4 com excertos de textos diversos que qualquer um pode levar consigo. Eça regressa à cidade.
Programa intenso
Este Eça vai além da sala de exposição. A Fundação Gulbenkian programou atividades paralelas, a decorrerem entre 3 de dezembro e 2 de fevereiro, que celebram o autor, a vida e a obra: conversas e mesas redondas, leituras e espetáculos, filmes e comidas. Haverá um ciclo de cinema com entrada livre, no Auditório 3, sempre às 18h30, que acolherá os filmes Amor & Companhia, realizado por Helvécio Ratton (dia 3 de dezembro), Singularidades de uma rapariga loira, de Manoel de Oliveira (dia 28 de janeiro), e Os Maias, de João botelho (16 de fevereiro).
No que respeita a conversas sobre Eça, abre-se com Os Maias na Geração de 70: o jantar do Hotel Central (10 de dezembro, 18h), com a participação de Guilherme d’Oliveira Martins e Carlos Reis e a exibição de episódio da série brasileira que adaptou o livro. Seguem-se Escritores de Eça de Queirós – Ficções da ficção (17 de dezembro) com uma conversa entre Mário de Carvalho, Miguel Real e José Eduardo Agualusa; Das Utopias: de Eça e de hoje (21 de janeiro) com a presença de Viriato Soromenho Marques, Fátima Vieira e Ana Nascimento Piedade; Eça: Pintura e Ilustração – os casos de Paula Rego e Rui Campos Matos (4 de fevereiro) debatida por Isabel Pires de Lima e Rui Campos Matos; e, a fechar, Ilustradores das obras queirosianas no fundo documental da Biblioteca de Arte (5 de fevereiro), com Vasco Rosa.
A programação contempla ainda uma leitura encenada (14 de janeiro) e um espetáculo musical baseado nas músicas de Os Maias (16 de fevereiro), ambos a ter lugar na escadaria do Grande Auditório. Para quem associa Eça a outros prazeres além da leitura, há Jantares Queirosianos concebidos pelo chef Miguel Castro e Silva (5 de dezembro, 15 e 22 de janeiro, e 16 de fevereiro) a terem lugar na Sala do Foyer, às 20h (€25 por pessoa mediante inscrição prévia). A lotação contempla apenas 25 pessoas por jantar, e cada um levará para casa uma ementa-livro. “Chique a valer”, diria certamente Dâmaso Salcede se lá conseguisse pôr uma biqueira de sapato envernizado.
Eça e os Maias – Tudo o que Tenho no Saco > Fundação Calouste Gulbenkian, Av. de Berna, 45 A, Lisboa > T. 21 782 3000 > 30 nov-18 fev 2019 > seg, qua-dom 10h-18h > grátis