
D.R.
A história parte de um caso real, no Alentejo profundo, nos anos 30. As notícias dos jornais falavam de um louco que, sem motivo aparente, matara um lavrador e a sua família, e que, de seguida, oferecera grande resistência à guarda, matando, mesmo, o chefe da polícia. E estranhava-se o facto de este impiedoso assassino ter tantos homens no seu funeral. Manuel da Fonseca, grande expoente do neorrealismo português, correu atrás da história, nos anos 50, para lhe descobrir a verdade escondida: na base estava uma luta de classes, o assassino era afinal vítima do senhor das terras, que, por vingança, lhe bloqueara todos os caminhos para sustentar a sua família numerosa. Perante o desespero e a miséria, num sistema em que o senhor controlava tudo e todos, vingara-se num aparatoso tiroteio. Ingredientes de um faroeste à portuguesa, convertidos no romance Seara de Vento, agora adaptado ao cinema por Sérgio Tréfaut, com o nome Raiva.
Tréfaut tem o olhar preciso sobre o Alentejo, com um respeito absoluto sobre a essência da obra. Mas apenas ao primeiro olhar pode parecer que este é um filme tardio de neorrealismo. Há uma certa artificialidade estética assumida, contrária ao naturalismo neorrealista dos italianos. Os enquadramentos são perfeitos, a montagem precisa, a fotografia deslumbrante (magnífico trabalho de Acácio de Almeida). Há uma contenção de gestos, um tratamento magnífico do silêncio, típico da maneira de estar alentejana. O filme é feito de um poderoso jogo de silêncios e sombras, de esgares que valem por mil palavras, mas também da dureza do quotidiano, da miséria e de Bento, filho deficiente em que se centram todas as emoções.
O filme, a preto-e-branco, constrói-se com lentidão e ponderação, mas sem nada de supérfluo. Estruturalmente, é um spoiler de si próprio. Começa-se pelo final, a cena do tiroteio, e depois percorre-se a história em analepse, deixando o espectador desperto para o lado psicológico das personagens, descolando-se aí do pendor idealista romântico do romance.
Tréfaut é ousado no elenco. Diz ter feito o filme a pensar em Isabel Ruth, mas fez apostas de risco, com bom resultado, a começar pelo “não ator” protagonista. E coloca Leonor Silveira num papel inesperado, nos antípodas dos que desempenhou para Manoel de Oliveira.
Nas vésperas das filmagens de Raiva, Sérgio Tréfaut foi surpreendido com a morte de Nicolau Breyner, que fazia de Mira, o taberneiro. O realizador optou por reescrever o guião, de forma a retirar a personagem, dando mais espaço a Lia Gama, que fazia o papel de esposa de Nicolau, e assim lhe prestou homenagem.
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Raiva > De Sérgio Tréfaut, com Hugo Bentes, Isabel Ruth, Lia Gama, Rita Cabaço, Adriano Luz, Diogo Dória, Leonor Silveira > 84 min