Já aprendemos que em Michael Haneke não podemos confiar nem nos deixar levar pelas aparências. Com mestria, o realizador austríaco seduz-nos para uma falsa banalidade quotidiana, para depois nos tornar vulneráveis às suas minudências, tão vulgares e promíscuas quanto universais. Assim acontecia, de forma sublime, em Amor, o seu anterior filme, e assim acontece, com uma subtileza arrasadora, em Happy End, que chega agora às salas portuguesas.
A ação decorre em Calais, porto de passagem para o Reino Unido, numa concentração de refugiados, alojados num campo, recentemente extinto, conhecido por “a selva”, dadas as suas severas condições. Porém, Haneke não partiu em busca de refugiados magrebinos ou do Médio Oriente. Interessa-lhe, antes, o retrato de uma alta burguesia local que, apesar do luxuoso teto, não encontra refúgio para a alma.
Há, portanto, algo de extremamente perverso naquele que, aparentemente, não é mais do que o retrato de uma família estruturalmente disfuncional. Haneke vai ao fundo das personagens, em busca dos traços imensuráveis de desafeto ou de desespero. Há uma podridão que afeta a teia de relações familiares e que sobressai no momento em que Eve se torna refugiada na própria casa (a casa do pai e do avô), após a mãe ter ido parar ao hospital. Eve, aos 15 anos, oscila entre a depressão e a manipulação, numa adolescência impenetrável, o que se torna particularmente fascinante na relação com o avô, na qual se atingem, em clímax, quadros máximos de subversão e de desesperança. No entanto, em situação diferente estão os sobreviventes, os que ainda não desistiram de construir a realidade, e, especialmente, o tio Pierre, uma espécie de louco da aldeia, que diz a verdade e que sofre as consequências.
Happy End não é uma obra maior de Haneke, equiparável a Amor ou O Laço Branco, mas não deixa de ser um filme de uma sensibilidade pecaminosa, que nos confronta com as entranhas psicológicas da Humanidade, com uma elegância desarmante.
Excelente interpretação de Jean-Louis Trintignant e da jovem Fantine Harduin. Um papel exigente de Franz Rogowski e papéis discretos, mas eficazes, de Isabelle Huppert e de Mathieu Kassovitz.
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Happy End > De Michael Haneke, com Jean-Louis Trintignant, Fantine Harduin, Franz Rogowski, Isabelle Huppert e Mathieu Kassovitz > 107 minutos