Há um País escondido atrás dos montes do Marão que subsiste e passa despercebido à parte dos que vivem ofuscados pelas luzes das grandes cidades. Houve um tempo em que se lhe chamava o País real, expressão infeliz, pois suporia que tudo o resto se tratasse de um país a fingir. É antes um País esquecido e abandonado, tendencialmente rural, mas com poucos recursos, e que sofre longe dos holofotes dos media, a que João Canijo e Anabela Moreira apontam as lentes e as luzes das suas câmaras neste Portugal – Um Dia de Cada Vez. Trata-se de um projeto documental longo e complexo, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, de que agora conhecemos apenas a primeira parte centrada em Trás-os-Montes. O filme passou em competição no DocLisboa e estreia-se em sala esta quinta, 5. Os “episódios seguintes” passarão por outras províncias, resultando numa espécie de radiografia social do Portugal contemporâneo. De certa maneira, a dupla João Canijo e Anabela Moreira coloca-se perante o início de século XXI, como a prodigiosa dupla António Reis e Margarida Cordeiro se colocava para os anos 60 e 70. E será um fascinante estudo de análise sociológica e antropológica observar, lado a lado, este primeiro volume de Portugal – Um Dia de Cada Vez, e Trás os Montes (1976), de António Reis e Margarida Bessa.
Os estilos, claro, são diferentes. Assim como as realidades. No pano de fundo do filme de Canijo e Moreira está inevitavelmente a crise. É uma crise devastadora que arrasou com mais campos cultiváveis do que os sucessivos incêndios. Não é uma crise que se identifique com um governo em concreto, mas que se tem arrastado ao longo das últimas décadas, a começar pelo trabalho de reenquadramento europeu protagonizado pelo Governo de Cavaco Silva. É o que encontramos nestas aldeias e vilas, como Moimenta, Vinhais, Prodence, Espanedo, Maxagata, Rãs, Grijé. Pessoas desoladas, populações envelhecidas, que subsistem, acima de tudo,subsistem. Sem o recurso à voz off, e evitando o estilo confessional, os realizadores constroem o documentário com artefactos de ficção. Aparentemente, ninguém tem a consciência da presença da câmara. E esta não hesita em filmar os rostos, como planos de proximidade, como se as personagens documentadas fossem atores. Dando-nos, por outro lado, a sensação que nos são oferecidos pedaços de vida daquelas pessoas. Isso tanto acontece na família empreendedora do Grijó, como na romena que trabalha a terra em Vila Nova de Foz Côa. Tal como é hábito no cinema de João Canijo, o universo é essencialmente feminino. O realizador tem o fascínio pelos mistérios insondáveis da natureza das mulheres, o que faz com que, mesmo neste registo, os homens se tornem em meros figurantes de histórias femininas. No percurso de João Canijo, encontra-se um fio condutor, de quem parte de ficções do real para descobrir no documentário uma arte maior de contar histórias.
Portugal – Um Dia de Cada Vez > De João Canijo e Anabela Moreira > Documentário > 155 min