Durante algum tempo, os madeirenses foram os primeiros a desacreditarem os vinhos produzidos no seu território, exceção feita ao fortificado que leva, desde sempre, o nome da ilha no rótulo. Ao jeito curto e grosso, diziam que os de mesa eram caros e maus e raramente os consumiam.
Hoje, sabem que baratos nunca podem vir a ser, porque os lotes são pequenos, alguns ainda experimentais, as vinhas plantam-se em socalcos e, por vezes, até em latada. Porém, classificá-los de maus e trocá-los por outros numa refeição já se trata de uma injustiça só justificada pela ignorância na matéria.
Na semana em que a Madeira foi eleita, pela décima vez, o Melhor Destino Insular do Mundo, percorremos a ilha de norte a sul, por entre inúmeras provas, e muito álcool etílico, e podemos atestar que a região tem atualmente um leque bastante considerável de vinhos de qualidade, especialmente quando a casta Verdelho entra em jogo.
Devido à pequenez de quem os produz, não existem quintas que tenham adega própria – todas as marcas se servem das adegas da Madeira Wines e da Casa de São Vicente para a transformação das uvas em vinho. Também por causa da dimensão dos viticultores, estes produtos só podem ser apreciados dentro de portas (salvo raríssimas exceções em que um restaurante do continente os tenha descoberto).
Pensando bem, é neste cenário, em que a densidade do verde da vegetação só é interrompida pela clareza do azul do céu e do mar, que eles fazem mais sentido. Não é por acaso – estamos rodeados de água salgada por todos os lados – que se encontra salinidade e acidez em quase todas as referências que levámos à boca, com a parcimónia que uma prova exige.
Ao mesmo tempo que crescem os programas em que se experimentam estes vinhos distintivos, a par dos já muito conceituados Madeira, entre um petisco e outro, e quase sempre rematado com um minibolo de mel, há cada vez mais lugares em que também se pode ficar a dormir com vistas sossegadas para o vinhedo.
Programar em silêncio
A Quinta das Malvas, inserida dentro da tradicional quinta de Santa Luzia, existe desde 1826 e é disso bom exemplo. A madeirense Emily Blandy, 47 anos, descendente em sétima geração da família que lançou esta semente, está há dois anos à frente do projeto, depois de ter andado a percorrer mundo. As vinhas são geridas pela empresa familiar, a Madeira Wine Company.
Junto a um frondoso jacarandá centenário, e ao lado do seu cão Fusco que descansa na relva impecavelmente tratada, ela explica que aqui se planta Verdelho, a casta mais adaptada, mas também Boal e Terrantez. Esta última esteve quase em vias de extinção, mas agora já se encontra pela ilha, embora seja bastante sensível ao tempo seco prolongado, que é como tem estado a meteorologia da ilha. Em final de novembro, por exemplo, os dias foram passados em manga curta e debaixo de um céu cristalino. As vindimas, aliás, começaram duas semanas antes do previsto, pois a maturação da uva aconteceu de forma muito mais célere. Apesar desta realidade climática, nesta quinta rega-se apenas uma vez por semana – a humidade intensa trata do resto.
Enquanto o Funchal se espraia lá mais abaixo, recolhemo-nos no telheiro do elegante Bed & Breakfast, recentemente aberto, e à nossa frente temos queijo de São Miguel a contrastar com os típicos bolinhos de mel. Havemos de provar um Blandy’s Boal, meio doce, e um Verdelho, meio seco, ambos 10 anos, pois em 2024 lançaram-se os Madeira desta gama.
Os programas de enoturismo são de topo. Acontecem normalmente aqui, neste local privilegiado, num silêncio sem-fim e com uma vista de cair o queixo sobre a agitada capital. Podem ser simples provas de várias referências ou expandirem-se para almoços com seis momentos, assinados pelo chefe Filipe Janeiro, acompanhados pelos vinhos Atlantis. Ou ainda constituírem-se de uma ajuda na vindima (só na época certa, claro) e de um piquenique na vinha.
A seguir à Tinta-Negra, o Verdelho é a casta mais usada nesta ilha e por isso pode sofrer influência de todos os climas, consoante é plantada nas encostas a norte ou a sul. Na Quinta de Santa Luzia também vimos uns pés de Malvasia, já com 19 anos, a que se tem de dedicar um cuidado especial, pois estamos perante uma planta, conta Emily, que “pode tardar uma década a dar fruto” e que por isso se reveste de um interesse especial.
Ajustar as castas
A Quinta das Vinhas, no Estreito da Calheta, ainda é mais antiga do que a de Santa Luzia. Está na mesma família desde 1635 e, no início, estava pensada para a exploração da cana-de-açúcar.
Só nos anos 1980 é que a área se transformou num campo experimental. Nessa época, o governo regional iniciou uns estudos da adaptação de 64 castas provenientes da Madeira, de Portugal continental, França, Itália e Alemanha para a produção de vinhos tranquilos, em três zonas da ilha (Estreito da Calheta, Preces e Arco de Jorge). Paralelamente, fez-se a seleção clonal das castas tradicionais (Sercial, Verdelho, Boal, Malvasia-Cândida, Malvasia-Cândida-Roxa, Terrantez e Bastardo).
Em 2017, a família proprietária recuperou a gestão da quinta, herdou dezenas de castas destas experiências, mas preferiu esquecer esses anos e dedicar-se à conversão para terreno biológico – em 2021, produziram o primeiro Verdelho livre de químicos. Dois anos mais tarde, saiu um blend com Boal e Verdelho. Com a uva que sai dos dois hectares de vinha engarrafam menos de dois mil litros de vinho (é tudo feito com a Justino’s Madeira Wines, fora da quinta) e ainda não conseguiram produzir um fortificado com a marca Fanal, o nome usado pelo parceiro quando está perante projetos especiais.
Atualmente, andam em ajustes das castas, tendo retirado a Tinta-Negra, apostado na Bastardo, que estava quase extinta, e aumentado a área de Malvasia-Cândida, em tempos aquela que deu mais brilho ao vinho Madeira.
Ao mesmo tempo, explica Isabel Freitas, 60 anos, trataram de enriquecer o ecossistema, aumentando a biodiversidade e atraindo novos polinizadores. “Tudo leva tempo”, lembra a gestora, enquanto explica que tradicionalmente na ilha se plantam as vinhas em latada (ou espaldeira), para se usar a sua sombra no verão e poder aproveitar o terreno para outras culturas. Além disso, com uma geografia tão acidentada, tal como a região do Douro, a solução mais óbvia foi aderir ao socalco, que por cá se chama poios.
A parte dedicada ao alojamento nestes quatro hectares na costa sul da ilha – a que goza do melhor clima – também tem vindo a crescer. Já existiam aqui duas casinhas de pedra, mas entretanto construíram, de forma ecológica, mais 14 edifícios e ainda há seis quartos na casa-mãe. Apetece mesmo aqui ficar, em qualquer das soluções, pois o sossego do ambiente conquista-nos totalmente, assim como a acalmia do oceano lá mais ao fundo.
É no cimo da quinta, no restaurante Bago, rodeado de videiras, onde a ementa condiz com o espírito sustentável da quinta, que se concentram as provas. Nesses momentos, descobre-se a simplicidade dos vinhos aqui produzidos, realçando a mineralidade saída do solo vulcânico. Primeiro, há que sentir o nariz, só depois a boca e as diferentes partes da língua.
Respeitar as tradições
Quando chegaram a este recanto da ilha, os manos Freitas só avistaram a casa-mãe, mas logo começaram a magicar em como transformá-lo no “turismo mais madeirense da Madeira”. E o resultado do que hoje é o Socalco Nature Calheta impressiona, sobretudo nos pormenores.
Há quartos incrustados na rocha, um hectare de horta, caminhos aromáticos, rega por levada e muita uva plantada em poios. As oito casas e os dois quartos estão decorados de forma minimal, com recurso a materiais muito simples e poucos ornamentos. “Não pendurámos quadros porque estamos rodeados de mar, rocha e vegetação densa. Não conseguimos competir com a natureza que nos invade”, nota Nélia, 50 anos, a diretora do agroturismo.
Apesar de as casas estarem equipadas com tudo para se cozinhar, o restaurante Razão, no topo de uma encosta, em frente à piscina, não vai deixar ninguém com vontade de o fazer. A assinatura do chefe Octávio Freitas, a mais recente Estrela Michelin da Madeira, está lá e o chefe André Gonçalves faz muito bem as suas vezes quando ele tem de estar no Desarma, no Funchal.
As refeições são sempre acompanhadas dos vinhos Cagarra e Galatrixa, 100% produzidos neste hectare de vinha, recorrendo a castas autóctones, como Verdelho, Sercial, Malvasia e Folgosão. Os lançamentos mais recentes incluem um rosé e um clarete com o nome de Maçaroco (flor roxa, típica da ilha), mas estas uvas já vêm de outros vinhedos que Octávio Freitas explora por perto.
A comida aqui servida, além de ser orgânica, respeita as tradições. No final dos deliciosos repastos, é provável que se prove um Madeira fruto de um blend de várias castas inventado pelo chefe, com dois anos de estágio em madeira e engarrafado em vime, tal como os “vinhos secos”, aqueles que todos produzem em casa, a partir da casta americana, e que se bebem nas festas.
Além das provas de vinhos, no Socalco também há workshops de cozinha, outro só para ensinar a fazer o delicioso pão de massa mãe que aqui se come e ainda um para identificar as plantas aromáticas que enchem os caminhos de prazerosas sensações.
Apostar na exclusividade
As estradas que rodeiam a ilha, num constante ziguezague, têm o condão de nos reduzir à nossa pequenez. Da janela do carro, somos engolidos pela magnitude da floresta Laurissilva, património mundial da UNESCO desde 1999. E de repente chegamos ao fim do mundo, sem que isso tenha alguma conotação negativa. Antes pelo contrário, sente-se algum conforto neste beco sem saída, ainda antes de passarmos o portão do Terrabona Nature & Vineyards – Wine Country & Wellness Retreat.
Uma vez cá dentro, as palavras tornam-se pouco expressivas para se descrever com minúcia o que se encontra nestes sete mil metros quadrados, em que se construiu discretamente um boutique hotel, onde cabem apenas dez pessoas, e se fazem aventuras de viticultura com as vinhas plantadas há 30 anos para as tais experiências do governo regional.
Marco Noronha e Maria João Veloso são o casal que abandonou os empregos de uma vida na banca para se aventurarem neste paraíso, em 2014. Três anos depois, licenciaram o terreno em produção integrada (agora já vão a caminho do 100% orgânico) e começaram logo a aparecer as primeiras borboletas e abelhas. Foi nessa altura que produziram o primeiro vinho. Como se fartaram de ganhar prémios, decidiram enveredar por esse caminho e assim nasceu a paixão por uma área que até então desconheciam quase por completo. A maior consequência disso foi a travagem nos planos para expandir o turismo para outras villas num terreno mais acima.
São eles que ostentam o primeiro vinho vegan da ilha, numa produção de 200 lindas garrafas. Como são pequeninos e meticulosos, construíram uma nanoadega dentro do Terrabona, o que lhes permite desligarem-se da de São Vicente, onde muitos outros fazem os seus vinhos. Esta produção, exclusiva, só se vende dentro de portas.
Quem aqui fica ou vem para uma prova especial, só tem a agradecer-lhes esse twist no percurso e até o desvio para os vinhos especiais. As palavras de ordem de Maria João são “privacidade, conforto e luxo”. Mas este luxo não se ostenta, é feito para se sentir enquanto se caminha absorvido pela paisagem, se nada na piscina infinita, se faz uma aula de ioga ou se relaxa na sauna virada para o oceano. Agora sim, percebe-se bem o nome na porta e no rótulo: Terrabona significa, em latim, terra de boa ventura.
Que bem se está por aqui, num confortável pufe que se molda à medida da nossa lazeira, saboreando o sol quente da ilha, o copo cheio de um vinho mineral, os olhos postos no Atlântico e a floresta, densa, a transformar-nos num mísero pontinho cá em baixo.
DEPOIS DE PROVAR, DORMIR
Quinta de Santa Luzia
Dentro desta quinta, existe o Bed & Breakfast Quinta das Malvas, que tem apenas seis quartos, todos com nomes de ervas aromáticas. R. de Levada de Santa Luzia, 124 > T. 92 443 4153 > desde €87 > provas: 4 vinhos 10 anos €37,50; prova vertical Verdelho e Boal, 5, 10 e 15 anos €60; visita, prova e almoço de seis momentos com vinhos Atlantis €195
Quinta das Vinhas
Há 14 casas de pedra construídas recentemente e a casa-mãe, com seis quartos, que manteve a traça tradicional e a decoração de outros tempos. O restaurante Bago enquadra-se muito bem a paisagem. Estrada Regional 223, Estreito da Calheta > T. 291 824 086 > desde €120 > visita e prova 3 vinhos Madeira €25, ter e qui 16h30
Socalco Nature Calheta
Daqui saem os vinhos especiais do chefe estrelado Octávio Freitas, mas também pode ficar num dos dois quartos ou oito casas, decorados com a simplicidade que a exuberância da natureza envolvente exige. No restaurante Razão, provam-se pratos de assinatura e as experiências vínicas do chefe madeirense. Caminho do Lombo do Salão, 13, Calheta > T. 291 146 910 > desde €180
Terrabona Nature & Vineyards
Trata-se de um boutique hotel em que se preza, acima de tudo, a discrição e a privacidade. A floresta Laurissilva que nos rodeia faz o favor de nos manter incógnitos. O vinhedo espalhado em socalco proporciona vinhos exclusivos de produção muito pequena. Estrada do Cardo, 117, Boaventura > terrabonawine.com > villas a partir de €370 (mínimo 3 noites) > provas 4 vinhos €35, ter qui sáb dom 12h, 16h
PROVAR BASTA
Boneca de Canudo
Pode visitar-se parte das vinhas e o pomar que se situam nesta quinta rodeada de um ambiente natural. A marca familiar Boneca de Canudo tem referências de Verdelho, Caracol (casta de Porto Santo) e também dois tintos, um deles reserva. Estrada Regional 206, Santo da Serra > T. 96 923 7520 > provas 4 vinhos e petiscos €25
H. M. Borges
Desde 1924 que a empresa está neste edifício muito perto do centro do Funchal. Hoje, é a quarta geração que toma conta do negócio, ainda com forte vertente manual. Visita-se a zona de armazenagem dos 150 mil litros anuais de Madeira que produzem com recurso a uvas de diversos produtores. R. 31 de Janeiro, 83, Funchal > T. 291 223 247 > provas €15-€34
Barbeito
Os visitantes podem chegar de autocarro e até falar búlgaro, que Leonel Gouveia tem a missa toda na ponta da língua e algumas fotos de uvas para mostrar aos turistas. Na Barbeito produzem-se 4 milhões de litros de vinho Madeira por ano. Estrada Ribeira Garcia, Parque Empresarial de Câmara de Lobos, Lote 8 > T. 291 761 829 > provas €15-€28
Quinta do Barbusano
A estrada para aqui chegar dá a conhecer as entranhas da ilha e leva-nos ao fim do mundo. O edifício envidraçado, que o carismático António, o dono, decidiu construir, recebe os visitantes com almoço típico de espetada em pau de louro. As vinhas estão todas em latada e a visita implica andar debaixo delas pelos caminhos escavados para as vindimar. São Vicente > T. 291 101 022 > Almoço de espetadas, batata cozida, salada e bolo do caco de Porto Santo, mais prova de vinhos €65
Blandy’s Wine Lodge
No centro do Funchal não se deve falhar a visita a este local onde a Madeira Wine Company faz a maturação dos seus néctares. Trata-se de uma espécie de museu do vinho da Madeira, com direito a provas comentadas por especialistas. Perfeito para ficar com um bom retrato da realidade vínica da ilha. Av. Arriaga, 28, Funchal > T. 291 228 978 > provas desde €25,50