Perderam a conta aos obituários a ditar o desaparecimento das salas de cinema. Mas sempre acreditaram na magia da exibição de (bons) filmes numa grande tela. Há casos paradigmáticos, como o do Cineclube de Guimarães (CG), fundado em 1958, aquele que tem maior número de associados (600, no pós-pandemia) e de espectadores do País. Quando passam filmes de realizadores mais populares, como Clint Eastwood ou Pedro Almodóvar, que também circulam nas salas comerciais, “há quem prefira ir às nossas sessões, porque temos o maior ecrã da cidade”, diz Paulo Cunha, um dos membros da direção. “Muitas vezes nem sequer consultam o boletim enviado para as suas casas, entram na sala e perguntam qual é o filme. É como ir à missa, há um lado social muito forte.” Ali, encontram uma família unida pela paixão pela Sétima Arte. “Mantemos uma relação muito próxima com os sócios: vemos reações e ouvimos preferências, quase como nos discos pedidos… em cada cineclubista há um programador em potência.”
Quando o Cineclube de Guimarães nasceu, a cidade vivia de uma cinefilia popular. Havia a necessidade de “exibir outro cinema, de cariz social e humanista, que refletia sobre o mundo e sobre a situação política portuguesa”, recorda Paulo Cunha. As ligações dos dirigentes à oposição democrática provocavam frequentes dissabores com a polícia política. “Santos Simões, o nosso fundador, foi preso, consultavam contas, fiscalizavam boletins, apareciam quando as sessões tinham convidados… era um jogo do gato e do rato.” No pós-25 de Abril, viveram um momento de grande efervescência cívica, cultural e revolucionária, com o projetor de 16 mm a percorrer o concelho e arredores. “Havia pessoas que viviam a dez quilómetros da cidade de Guimarães e nunca tinham ido ao cinema.” Os anos 80 foram terríveis, com o aparecimento dos videoclubes, mas a massa associativa manteve-se estável. Na década seguinte, recuperaram fulgor, com a conquista de um público universitário e o êxito de iniciativas como o Cinema em Noites de Verão, sessões ao ar livre no centro histórico, com uma oferta mais popular, que ainda se mantêm. Em 2005, são convidados a programar o cinema do Centro Cultural Vila Flor e aumentam as sessões semanais.
A oferta é muito eclética, dos filmes clássicos ao cinema de autor de diferentes origens, passando pelas sessões infantojuvenis gratuitas. Na velha sede também fazem projeções e realizam as reuniões da direção, liderada desde 1987 por Carlos Mesquita. “É ele quem nos vai recrutando. Todos os dirigentes participam no desenho da programação e asseguram as atividades do cineclube, durante os seus tempos livres. Queremos prosseguir o trabalho feito por gerações anteriores e contribuir para uma oferta cultural”, aponta Paulo Cunha. A alimentar o característico orgulho bairrista dos vimaranenses.
Passar ao lado do Colombo
É no Centro Cívico Edmundo Pedro que têm lugar, às quintas-feiras à noite, as sessões do Alvalade Cineclube, fundado há dois anos, por um grupo de jovens cinéfilos, todos com ligações ao bairro lisboeta. Programam com um olhar contemporâneo, espírito comunitário e revivalista, de um período em que Alvalade, indissociável do cinema português, tinha salas como o Quarteto, o King ou o Cinema Alvalade. “Toda esta zona teve um papel crucial, sobretudo a partir da década de 60. Aqui apareceu o Cinema Novo, viveu o realizador Fernando Lopes e filmou-se Os Verdes Anos”, lembra Bruno Castro, um dos membros do grupo. O cineclube teve uma grande adesão espontânea, sobretudo da geração dos fundadores, entre os 30 e os 40 anos, e de pessoas mais velhas que se reviram na atitude.
O primeiro filme exibido, Belarmino (1964) de Fernando Lopes, teve casa cheia, tal como a sessão dedicada a Vasco Granja, com a presença de muitas famílias. “Há um público interessado em mostrar uma alternativa aos filhos, uma experiência de cinema que não é ir ao Colombo”, aponta Bruno Castro. Entre os projetos para 2022 está o Salão Lisboa, que vai levar cinema em português “dos últimos anos, não mainstream, mas acessível – a franja onde trabalhamos”, a seis sociedades recreativas, antigas e tradicionais, dos Olivais a Alcântara. Bruno Castro indica o Nimas e o Ideal como das poucas salas de rua em Lisboa, a programarem cinema europeu, embora “num outro conceito, que nada tem que ver com os cineclubes”. “O Nimas é uma sala comercial como qualquer outra, tenta é encontrar maneira de estar ativa e, sendo uma sala única, ter diversidade”, diz Paulo Branco, da Medeia Filmes que gere o Nimas. A programação é feita de estreias, “que pensamos ser as mais interessantes, independentemente de serem filmes americanos, chineses, portugueses…”, mas também de películas que marcaram a história do cinema, em cópias restauradas, dando oportunidade de as (re)ver durante meses.
Perto do Saldanha, fica um dos mais antigos cineclubes do País, o ABC Cine-clube de Lisboa. As sessões decorrem no Auditório Camões, à segunda-feira, às 19h, e há dias para exibições dedicadas à comunidade escolar. “Tem um ecrã fabuloso com uma qualidade extraordinária”, diz Manuel Neves, 85 anos, diretor do Cine-clube de Lisboa. Nos tempos áureos, em 1958, o ABC chegou a ter 2 500 sócios, hoje, são muito menos. A gratuitidade, mesmo para quem não é sócio, reflete-se também na plateia, mas para o diretor, esse continua a ser o principal objetivo: “O associativismo é uma das bases do cineclubismo.” Manuel Neves entrou no ABC como sócio em 1955 e começou a colaborar logo no ano seguinte. Passou várias vezes pela direção, ocupando o cargo continuamente desde 1980. Tem na ponta da língua a história do movimento cineclubista e da associação que dirige, fundada em 1950. “A primeira sessão teve lugar a 14 de abril de 1951, na Casa do Algarve. É a data do Dia Nacional do Cineclube em Portugal, que corresponde à primeira sessão de cineclube realizada em 1907, em Paris, pelas mãos de Edmond Benoit-Lévy, diretor da revista Phono-Ciné-Gazette.”
O programa do ABC sempre foi variado, com ciclos e retrospetivas. A penúltima sessão deste ano será com O Mal Amado (1973), do realizador Fernando Matos Silva, “que começou, aliás, no ABC quando era miúdo”. Quem se fizer amigo do ABC, recebe os comunicados regulares, já que a programação é divulgada filme a filme e apenas no Facebook. Sempre que possível, realizam sessões noutros locais. “Debatemo-nos com o problema da falta de salas independentes. O Cinema São Jorge, que tinha a obrigação escrita de apoiar a nossa atividade, prefere os festivais, cede-nos a sala para coisas meramente pontuais. A atividade de um cineclube é essencialmente para criar raízes e, portanto, é preciso fazer sessões semanais”, reivindica.
Acrescentar camadas
Desde a sua fundação, a 6 de abril de 1956, que o Cineclube de Faro mantém, sem interrupções, a sua atividade. É Carlos Lopes, formado em Biotecnologia, que o dirige desde 2012, “um trabalho feito na cidade de Faro, mas que se estende por todo o Algarve”, sublinha, principalmente durante o verão, quando promovem cinema ao ar livre. Os filmes são exibidos no auditório do Instituto Português do Desporto e Juventude e não é preciso ser-se sócio para assistir às sessões (€4 bilhete, €3 para estudantes). “É preciso pagar os direitos de exibição e promover a associação ao cineclube. Grande parte do vínculo a estas associações passa por uma ligação sentimental e pela necessidade de contribuir para as manter ativas e vivas, esse será o principal leitmotiv dos associados”, justifica. A divulgação do cinema mais independente, e com a tónica no cinema português, faz-se também com iniciativas ao nível de outras artes, como a música ou a fotografia. Na sede, há uma filmoteca e uma biblioteca de cinema “das mais completas e de referência no panorama nacional”, diz Carlos Lopes. O cineclube mantém uma longa tradição, no que toca à formação em cinema para os mais novos. Este ano, estreiam a primeira produção cinematográfica, uma curta-metragem feita ao abrigo do programa DiVaM da Direção Regional de Cultura do Algarve.
Igualmente da segunda vaga do cineclubismo em Portugal é o Cine Clube de Viseu (CCV), fundado em 1955, mas atualmente com uma estrutura semiprofissional. “O espírito associativo está intacto, temos pessoas que acreditam que esta é uma causa válida e querem contribuir para um projeto da comunidade… mas tem de haver uma estrutura minimamente profissionalizada”, defende Rodrigo Francisco, da direção. Nas sessões semanais, às quintas, no auditório do Instituto Português do Desporto e Juventude, dão a conhecer diferentes cinematografias e autores, a partir de ciclos temáticos. “Propomos filmes que dificilmente seriam vistos noutras salas de Viseu, não é nada de exótico, pode ser cinema português, filmes recorrentemente premiados que são cada vez mais nichos e não chegam às outras salas. Não nos passa pela cabeça que uma cidade europeia, pequena ou média, não tenha esta oferta”, aponta o dirigente. A seu cargo têm também o Cinema para as Escolas, um projeto que envolve todos os níveis de escolaridade, lançado há 21 anos, decisivo para a formação de públicos e a afirmação na região. Organizam ainda um curso para adultos, Vanguardas & Estéticas no Cinema, um olhar alternativo sobre a história da Sétima Arte. Nos últimos tempos, na totalidade das suas atividades, o CCV tem conseguido ultrapassar os nove mil participantes anuais.
Em cidades do Interior é inegável a importância dos cineclubes na criação de uma oferta cultural diversificada. Já no Porto, pese embora a existência do mais antigo cineclube do País, fundado em 1945, há salas comerciais que apostaram em cinematografias menos conhecidas. É o caso do Cinema Trindade, um histórico da Baixa, reaberto em 2017. “Mudou o paradigma de exibição de cinema no Porto, com dez sessões diárias no centro da cidade, uma oferta muito alargada e invejável de cinema de autor”, sublinha Américo Santos, da Nitrato Filmes, responsável pela exploração. “O que nos distingue dos cineclubes são as estreias, extremamente importantes na nossa programação, embora tenhamos ainda ciclos e cinema clássico. Há também uma diferença substancial, de escala, porque temos uma maior abrangência programática”, aponta Américo. Não acredita, no entanto, no esvaziamento do papel daquelas estruturas associativas. “Estamos todos a trabalhar para a formação de públicos e os cineclubes podem sempre encontrar outros modelos de programação.”
É o que defende Rodrigo Francisco, do Cine Clube de Viseu: “Os cineclubes têm tido esse papel valiosíssimo de encontrar formas alternativas de existência e renovar o interesse pelo cinema. As sessões são vistas como experiências, inseridas em ciclos temáticos, com convidados ou atividades pedagógicas a aproximar a cultura visual dos mais pequenos. Há um ajustar saudável da programação, para provocar interesse, acrescentar camadas e criar um público mais atento e crítico. Os filmes têm uma dimensão única, de pôr temas em discussão e isso consegue-se quando se vê em comunidade, numa sala.”