A primeira vez que reparei nestas pequenas cabeças, tinha acabado de descer a Avenida da Liberdade numa manifestação. Nessa tarde, fui parar à Ginjinha, no Largo de São Domingos, e de repente tudo fez sentido. De cada lado da montra da vizinha Chapelaria Azevedo Rua que está virada para o Largo de São Domingos, era como se as suas bocas diminutas continuassem a gritar palavras de ordem.
Claro que as duas cabeças foram incrustadas na cantaria com outro propósito. Num tempo em que o Rossio ainda era conhecido como a Praça dos Chapeleiros, uma herança da divisão da cidade no pós–terramoto, elas serviam para segurar os ferros dos toldos que protegiam a montra do sol. Na chapelaria fundada por Manuel Aquino Azevedo Rua, em 1886, e que vai hoje na quinta geração da mesma família, tudo era feito como deve ser.
Agora, sempre que ali passo olho aquelas cabeças como uma recordação do massacre dos judeus que teve início precisamente no Largo de São Domingos, em 1506. Mais do que a grande meia esfera inclinada, com a Estrela de David ao centro, o memorial com que se pretende lembrar as milhares de vítimas da intolerância e do fanatismo religioso, é como se estas bocas bem abertas chorassem o horror e a violência que começou num domingo de Pascoela.