Mal entramos no museu, pisamos chão de mármore e pasmamos com o rinoceronte preto, naturalizado, que domina o grande átrio de receção dos visitantes. E logo nos contam uma história que parece decalcada dos livros do Tintin. Classificado como estando criticamente em perigo, este exemplar, em vez dos seus verdadeiros chifres, ostenta duas réplicas assinaladas como tal. Isto porque existe uma bem montada rede de tráfico que assalta museus para roubar os cornos destes mamíferos e fazê-los chegar à Ásia, onde são moídos e consumidos para fins medicinais. Percebe-se a ganância: cada quilo pode render, no mercado negro, cerca de 50 mil euros.
Permanecer nesta entrada é sentir as fundações da igreja do edifício que albergou a Casa do Noviciado da Cotovia, no século XVII, e o Colégio dos Nobres, 100 anos depois. Dessa época sobra apenas o bonito claustro, à volta do qual se organizam os cinco mil metros quadrados do Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC), da Universidade de Lisboa. Mas a sua essência ainda cá está.
O atual edifício, de estilo neoclássico, foi construído em 1858 e classificado como imóvel de interesse público em 2013. Em março de 1978, um violento incêndio destruiu grande parte da antiga Escola Politécnica, levando com ele as coleções de zoologia e algumas de geologia. As memórias do fogo encontram-se numa porta carbonizada ou no ambiente tosco de uma zona que nunca chegou a ser totalmente recuperada.
A exposição Memória da Politécnica: Quatro Séculos de Educação, Ciência e Cultura começa numa das quatros capelas que compõem o átrio (resquícios da tal igreja) e conta a história deste lugar. Aqui está o túmulo seiscentista de Fernão Telles de Menezes, fundador do Noviciado da Cotovia e governador da Índia, que se faz apoiar em dois enormes elefantes de mármore.
Do lado oposto ao túmulo, vislumbra-se uma das joias deste museu que deixa qualquer um boquiaberto: o Laboratorio Chimico, montado nos finais do século XIX e que, felizmente, saiu imaculado do incêndio dos anos 1970. Pode-se espreitá-lo, agora, pela porta de vidro, mas para apreciá-lo como deve ser – e reparar, por exemplo, em todos os frasquinhos de reagentes que ali estão guardados – só pagando bilhete e dando a volta até à outra porta.
Mostrar as coleções
Ainda antes de entrarmos no museu propriamente dito, vemos a mandíbula de uns mastodontes que passaram por Lisboa – ela é o objeto do mês. Os fósseis destes antepassados dos elefantes ficaram preservados em formações geológicas, datadas de há cerca de 18 a 11 milhões de anos, e constituem o chão de grande parte da cidade.Também se podem apreciar vários apontamentos dos três tipos de coleção do museu (História Natural, instrumentos científicos e coleções coloniais), preciosamente guardados em armários. “Este corredor é uma introdução ao que se vai ver lá dentro. Atualmente, fazemos por ter uma grande quantidade de objetos das coleções expostos, pois consideramos o público e achamos que a literacia deve ser para todos. Dantes, isto estava tudo guardado em armazéns e só era utilizado para investigação”, nota a técnica Diana Carvalho, que se ocupa da ligação do museu aos visitantes.
É nesta zona, junto às bilheteiras, que irá nascer a muito ansiada cafetaria. O espaço de 200 metros quadrados já está adjudicado, porém a abertura (também com porta para a rua) tarda mas faz muita falta, já que a visita a este museu e ao Jardim Botânico de Lisboa pode demorar-nos um dia e, neste momento, há apenas uma máquina de venda automática. As simpáticas mesas e cadeiras no jardim do claustro até parecem demais, se apenas servem para essa tal comida plastificada.
A loja vai separar-se das bilheteiras e passar a apostar em merchandising próprio, em parceria com diferentes artesãos. Neste momento, já se podem comprar algumas das novidades desse projeto: taças (€13-€19), canecas (€12), azulejos (€16) ou ímanes (€5-€7), com réplicas da coleção ou do edifício feitas com a Oficina do Castelo.
Um laboratório único
Dentro do museu está frio, não há como negá-lo. Os longos corredores em pedra, os pés-direitos altíssimos e a escassa luz natural fazem do edifício um paraíso nos dias mais quentes. No entanto, quando o tempo não está de feição, só se consegue percorrê-lo de casaco. Para nos abstrair da temperatura, valem-nos as exposições que aqui têm data de abertura, mas cujo dia de encerramento raramente se encontra estipulado. As mostras são quase sempre de longa duração e ficam enquanto o público – cerca de 50 mil visitantes por ano – as quiser ver. Por acaso, a primeira em que se entra, logo após a bilheteira, não cumpre esse requisito. Titicaca, no Coração dos Andes, do fotógrafo António Luís Campos, só estará ali até dia 29 deste mês.
Vamos diretos ao laboratório químico, que já avistáramos da entrada. É das salas mais emblemáticas do museu e merece que nos percamos durante o tempo que for necessário. “Esteve em funcionamento até ao final do século passado. Na faculdade, tive aqui aulas práticas de Química, mas isto não era nada assim”, conta José Pedro Sousa Dias, que atualmente dirige esta instituição. Este é, possivelmente, o único sobrevivente dos grandes laboratórios das universidades europeias.
Além desta sala muito bem preservada, feita de bancadas de trabalho e de pormenores dignos de um olhar atento, aqui também se encontra o Amphiteatro Chimico (assim mesmo, com agás) da Escola Politécnica, onde eram dadas as aulas teóricas – uma área em madeira escura, chão de mármore e teto abobadado. Ao lado, há uma reserva visitável, em que se aprecia a coleção de instrumentos usados no laboratório (atenção, trata-se de um lugar de trabalho, pelo que pode acontecer que a porta esteja fechada).
Quando subimos ao piso superior, paramos ante um enorme retrato da rainha Dona Amélia de Orleães, pelo pincel de José Maria Veloso. Diz-nos o diretor do museu que a obra só está aqui há um ano, recambiada do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, da Universidade de Lisboa. Custa-nos a crer, tão bem que fica a meio da escadaria. Espreitamos o laboratório do mezanino e ainda gostamos mais de vê-lo de cá de cima.
Aqui há rato
Neste piso, há uma sala deliciosa para quem gosta de medicina. Está repleta de instrumentos usados ao longo dos tempos nas várias especialidades: desde modelos anatómicos em cera, para as aulas de dermatologia, aos primórdios do estetoscópio, passando por uns (algo macabros) artefactos de obstetrícia.
Um dos corredores está transformado em exposição com mais de mil espécimes que fazem parte das coleções de História Natural (Specere). São 60 metros em que encontramos rochas, minerais, fósseis, aves da nossa fauna, mamíferos naturalizados, conchas, insetos, folhas e sementes. Estes objetos apresentam-se em distintas formas de conservação, uns em seco, outros em recipientes com álcool a 60% para não apodrecerem. “Quando estão em álcool, os animais perdem a cor, mas, como a sua conservação se destinava apenas ao estudo, esse aspeto era irrelevante”, explica Diana Carvalho. O corredor/exposição faz-nos parar por várias vezes, atentando, por exemplo, aos pássaros que foram preservados esticadinhos para melhor caberem nas gavetas dos laboratórios. Parecem-nos envergonhados perante os seus familiares que, ao lado, se mostram exuberantes, ostentando as penas enquanto repousam nos galhos de uma árvore. “Estes já foram tratados especificamente para a exposição”, nota a técnica que nos vai guiando pelo museu, e isso nota-se.
Mais à frente, tentamos olhar de esguelha para o armário dos ratos, mas é impossível. Há-os de todos os tamanhos, também arrumados em caixinhas. Outros mais “à solta” parecem mesmo que vão a fugir pelo buraco aqui posto para causar essa sensação. Topamos um que “fugiu” para cima do armário e ameaça gerar o pânico no museu.
É este tipo de trabalho que está nas mãos de Pedro Andrade, o único taxidermista do museu. Mas a Moa, uma ave não voadora, endémica da Nova Zelândia – antepassado gigante da avestruz, extinta há 500 anos –, é talvez a obra mais impressionante deste especialista, no alto dos seus três metros. Na exposição Reis da Europa Selvagem também se pode apreciar a arte da naturalização, que consiste basicamente em esvaziar os animais e em voltar a vestir-lhe a pele num modelo de plástico. “A única estrutura rígida que fica é o crânio”, adianta Diana. Na recriação do montado, a obra de Pedro Andrade está no seu esplendor. Detemo-nos num lince que persegue um coelho bravo (o seu único alimento), num ratinho escondido por baixo de uma pedra e noutros pormenores que devem ser descobertos in loco.
A visita continua pelas 18 salas de exposição. Espreita-se agora Entre Dinossáurios (há sempre uma área dedicada a estas criaturas pré-históricas). Aqui explica-se a formação de fósseis, apresenta-se o trabalho de escavação quando foi encontrado um Allosaurus, um dinossáurio terópode, na jazida de Andrés, em Pombal, mostra-se como era o ecossistema há 150 milhões de anos e, claro, veem-se modelos desta impressionante espécie extinta.
Cheira bem
Ainda há tempo para ver Plantas e Povos, uma exposição que se baseia no conhecimento botânico tropical, e percebemos como, ao longo dos tempos e em todas as latitudes, se fez uso da flora local para os mais diversos fins, sejam eles instrumentos musicais, armadilhas de pesca ou medicamentos. Com o mesmo tom étnico, a Moranças, no piso térreo, mostra habitats tradicionais da Guiné-Bissau, essencialmente através das fotografias de três amadores que embarcaram numa missão de estudo, entre 1959 e 1960. O resultado é um conjunto de imagens únicas e deliciosas, perpetuadas pelas câmaras Leica e Rolleiflex, e ainda uma série de cadernos de campo com desenhos ilustrativos da vida naquele território. Aqui se juntam objetos das coleções do Museu de Etnologia e do Instituto de Investigação Científica Tropical, que abrilhantam esta surpreendente mostra. Todos os fins de semana há atividades organizadas, pagas à parte, que complementam uma visita ad hoc. Isto, além das festas de aniversário ou dos programas de férias escolares.
Poderíamos ter optado por descansar ativamente na sala dos jogos de matemática, no entanto preferimos sair, apanhar ar e visitar o monumento nacional que é o Jardim Botânico de Lisboa – reaberto há um ano, depois de obras de requalificação, feitas pela Câmara Municipal de Lisboa ao abrigo do Orçamento Participativo de 2013 – e que faz parte do museu (há um bilhete conjunto). Primeira paragem: o enorme dragoeiro que oferece uma sombra impressionante. Mas nada como andar por aqui a vaguear, sem percurso previamente indicado. Sugerimos-lhe que baixe a cabeça ao passar pelos ramos mais perigosos, que afaste as folhas mais metediças, olhe para cima à procura do final das enormes palmeiras (existem 35 espécies diferentes desta árvore) e se proteja dos galhos que, às vezes, tombam de velhos. Também existem lagos, que a água tranquiliza, e ouvem-se passarinhos, como se não estivéssemos no meio da cidade. É hora de aproveitar os bancos que parecem ter sido aqui postos de propósito para estimular a contemplação.
À saída, escutamos a gritar um dos meninos que andavam por aqui a ouvir falar de magnólias e a fazer herbários artesanais: “Cheira bem!” E não é que cheira mesmo?
MORADAS
VER
Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC)
R. da Escola Politécnica, 56/58, Lisboa > T. 21 392 1800 > ter-sex 10h-17h, sáb-dom 11h-18h > €5, 6-18 anos, estudantes e seniores €3, menores 6 anos grátis > museu + jardim €6, 6-18 anos, estudantes e seniores €3,50, menores 6 anos grátis
Jardim Botânico de Lisboa
R. da Escola Politécnica, 56/58, Lisboa > T. 21 392 1800 > seg-dom 9h-20h > €3, 6-18 anos, estudantes e seniores €1,50, menores 6 anos grátis
COMER
Naked
Restaurante pequeno, que se diz flexitariano, o que significa que a comida é saudável sem se ser fundamentalista. Ideal para um almoço leve, mas saboroso. R. da Escola Politécnica, 85-87, Lisboa > T. 92 540 6880 > seg-sáb 9h-23h, dom 9h-19h
Zero Zero
À hora do almoço, as filas são menores. Aproveite, por isso, para provar as pizzas de massa fina e estaladiça, de preferência na esplanada. R. da Escola Politécnica, 32, Lisboa > T. 21 342 0091 > seg-dom 12h-24h
BouBou’s
Tem um dos pátios mais bonitos da cidade. Além disso, a ementa apresenta opções para partilhar e um menu de almoço. R. Monte Olivete, 32A, Lisboa > T. 21 347 0804 > seg-dom 12h-23h
Quiosque do Oliveira
É um clássico do Príncipe Real e pode ser difícil conseguir mesa. No entanto, não deixe de tentar, porque é um lugar central para tomar um café ou um aperitivo. Pç. do Príncipe Real, Quiosque F-36, Lisboa > T. 21 342 8334 > seg-dom 7h-21h
Clube Lisboeta
Aqui há pequenos-almoços, brunches todos os dias e jantares do mundo, atualmente com pratos de Marrocos, Peru e Japão. R. da Escola Politécnica, 90, Lisboa > T. 92 562 6105 > seg-qui 8h-1h, sex-dom 9h-2h
Café Príncipe Real
Há três coisas garantidas neste restaurante: a vista sobre a cidade, o sossego e uma viagem pelo mundo sem sair da mesa. Hotel Memmo Príncipe Real > R. D. Pedro V, 56J, Lisboa > T. 96 184 4248 > seg-dom 12h30-15h, 19h30-23h