Chegar ao Grupo Desportivo da Mouraria não é fácil. Temos que subir as ruas íngremes do bairro lisboeta, para alcançar o antigo Palácio dos Távora na Travessa da Nazaré, onde o clube se instalou em 1972. Desde essa altura que aqui se realizam os ensaios da Marcha da Mouraria, num lugar por onde parece que o tempo não passou. Este ano, já se ouvem por ali todas as noites os ritmos de Mouraria engalanada de azulejo e filigrana.
Carla Correia, a atual responsável da Marcha da Mouraria, marchou de 1980 até 2002, parou por uns anos para cuidar do filho pequeno, mas nunca se afastou muito. Ia com o grupo para todo o lado e não faltava aos ensaios mesmo que não participasse neles. Voltou em 2010, com a tarefa de arranjar ensaiadores e também o cavalinho (grupo de músicos) e a costureira. A ela cabe-lhe ainda angariar os marchantes, incumbência cada vez mais difícil, diz. “Antigamente havia marchantes para duas marchas da Mouraria”, exclama. “São outros tempos, agora há playstations e eles já têm onde se entreter. Antes, as marchas eram um escape para sair à noite, falo por mim, que também me aconteceu isso quando era nova”, observa Carla. Normalmente, continua, são as mulheres que procuram mais a marcha, mas este ano a adesão dos homens foi “surpreendente”.
A verdade é que participar na marcha é uma tradição de quem vive nas zonas mais antigas de Lisboa e acabam sempre por aparecer interessados. Os pais marcharam, os tios e avós também e, apesar dos tempos terem mudado, ainda há quem queira defender o seu bairro e insista em não deixar morrer o “espírito bairrista”. Um dos marchantes mais novos é Fábio Estevão, 15 anos, que já marcha desde pequeno (começou na marcha infantil da Voz do Operário). “Sigo os passos da minha avó e da minha irmã. E continuarei aqui enquanto der”, afirma, acrescentando não ser difícil conciliar os estudos com a marcha.
O concurso das Marchas Populares das Festas de Lisboa exige que cada bairro participante apresente 24 pares de marchantes, um par de suplentes, um par de mascotes (crianças), quatro aguadeiros, que dão apoio durante a marcha, e ainda um cavalinho, grupo de oito elementos de músicos que têm como instrumentos obrigatórios um clarinete, um saxofone alto, dois trompetes, um trombone, um bombardino, um contrabaixo ou tuba e uma caixa. Na Marcha da Mouraria, o grupo de músicos já é o mesmo há quatro anos e, para esta edição, a música foi composta por Carlos Dionísio, tendo letra de Flávio Gil.
Em preparativos desde setembro e em ensaios desde março, há cerca de um mês que a Marcha da Mouraria se reúne todas as noites para que tudo esteja certo quando descerem a Avenida da Liberdade já na próxima segunda-feira, 12. Já passaram 36 anos desde que ganharam o concurso pela última vez, mas Carla Correia admite que todos os anos acredita que “este ano é que é!”. Mas sublinha: “O que conta é estarmos aqui, participarmos, não deixarmos morrer estas coisas. Se isto um dia morre, quem gosta dos bairros também morre. Isto de ano para ano está a mudar totalmente, com turistas e isso. Mas ainda há muito espírito bairrista que está nesta miudagem nova.”
Uma noite de arrepios
A rivalidade entre bairros, concordam, já não é o que era. “Tenho amigos de Alfama, do Alto do Pina, de todos os lados. Falamos sobre a marcha, mas claro que tem que haver segredos”, afirma Fábio Estevão. E Alfama continuará a ser a maior rival da Mouraria? “Nem a levo por rival, tenho olhos na cara, vejo Alfama e sei que tem marchas boas para ganhar, tem, sim senhor… Mas é um exagero, são muitos anos seguidos, há outras marchas muito boas também”, responde Carla Correia.
Ana Raquel, 16 anos, marcha há três. Confessa que não é fácil conciliar escola e marcha, mas, acrescenta, já não consegue viver sem esta família da Mouraria. “O que gosto mais é a união que temos aqui, principalmente quando nos ajudamos uns aos outros” afirma. Sobre a noite do dia 12, em que todos descem a Avenida, diz não ter sequer palavras para a descrever: “Só me arrepio e só me dá vontade de ir para o ano e para o ano e para o ano. É o melhor dia do ano mesmo.” Talvez por isso haja quem faça sacrifícios para aqui estar todas as noites a ensaiar. “Eu moro a cinco minutos daqui e a maior parte das pessoas são do bairro, mas há quem venha de fora, como um casal que foi viver para Almada e vem todos os dias, ou uns que vêm de Caneças e dividem a gasolina. Abdicam da família para vir para aqui”, conta Carla Correia.
Este ano, os padrinhos da marcha da Mouraria são os cantores Vanessa Silva e Fernando Fernandes (FF). “É sempre um prazer enorme sentir-me acarinhado nesta família e neste espírito bairrista. É uma coisa que me deixa particularmente sensibilizado porque nunca cresci propriamente num bairro, por ter vivido no Alentejo”, elogia FF. E agora braços ao alto que é hora de marchar – e a Mouraria já lá vai engalanada de azulejo e filigrana.