O português que nunca visitou ou raramente se desloca a Guimarães corre o risco de ser apanhado de surpresa por um intrínseco e inabalável misticismo (no mais honesto dos sentidos) à chegada. Refugiado no interior nortenho, rodeado de bosques e vales montanhosos e unificado ao centro pela imponente fortaleza à qual dá nome, todo o lugar respira história, tradição, e uma profunda beleza que certamente inclui, mas de modo algum se limita, à ostentosa arquitetura que exibe, simpatia que oferece e tranquilidade que preserva. Nunca uma cidade rural, mas também longe de carregar o pesado ambiente urbano das grandes metrópoles, paira nela ainda uma certa harmonia poética de difícil definição.
São algumas destas qualidades que fazem com que Guimarães seja, sem surpresas, ideal para que se experiencie arte portuguesa no seu máximo expoente. Como poderão atestar os vimaranenses, desde que foi consagrada Capital Europeia da Cultura, em 2012, a cidade tem visto uma explosão de iniciativas deste género, a acrescentar ao valor histórico que merece como cidade-berço. Em 2017, solidifica ainda mais o seu papel enquanto reduto da Cultura em Portugal: Húmus – Festival Literário de Guimarães honra a memória do escritor Raul Brandão na semana em que se celebram os 150 anos do seu nascimento, com um conjunto de atividades de deixar os mais inclinados às humanidades de fome mais que saciada.
Também não atrapalha, em boa justiça, ter sido Guimarães a cidade na qual o multifacetado poeta, escritor, dramaturgo e jornalista conheceu a mulher, passou maior parte da vida, morreu e, consequentemente, deixou raízes que se estenderam muito para lá do que poderia alguma vez ter imaginado. Homem de escrita manifestamente melancólica (entendido inclusive por muitos como um precursor do existencialismo do século XX), Brandão depositou as suas angústias, esperanças e inquietações em Guimarães, e nesta data tão importante a cidade responde em igual medida. Húmus, o magnum opus do autor cuja ação lá decorre, já foi descrito como um “poema contínuo” – expressão que poderia definir também Guimarães, e que poderia ter servido de mote ao festival com o mesmo nome.
Um festival que, nas palavras da vereadora da Câmara Municipal de Guimarães, Adelina Paula Pinto, já venceu antes sequer de ter começado, congregando “escolas, bibliotecas, companhias de teatro e profissionais locais” no objetivo comum de homenagear a obra brandoniana e, no processo, “dar contemporaneidade a Raul Brandão” no primeiro festival literário da cidade. São turmas de crianças a interpretar histórias do autor, pintores a imortalizar frases de Brandão nas ruas da cidade, companhias de teatro a dar vida às suas peças. Políticos, atores, músicos, professores e jornalistas, juntos na celebração de um autor cuja obra se tornou sinónima do local onde originou.
E no primeiro dia desta iniciativa, o que viria a ter mais destaque seria exatamente a reflexão sobre o legado que deixou Raul Brandão. Não numa conversa qualquer, mas num debate deceptivamente esclarecedor entre três escritores e admiradores da obra brandoniana: o jornalista Francisco José Viegas, Abraão Vicente, ministro da Cultura de Cabo Verde, e Álvaro Laborinho Lúcio, juiz jubilado e ex-ministro da Justiça português. Uma combinação de modo algum aleatória: tal como Brandão, ambos abordam, de alguma forma, em seus trabalhos as inquietudes da existência e a relação complicada do ser humano com a sua própria consciência – quanto a vida, morte, dever ou moralidade.
E cada um, à sua maneira, trouxe à mesa perspetivas que evidenciaram o quão atual se mantém o imaginário de Raul Brandão na literatura, e as reflexões absolutamente fascinantes que colocou no papel em relação a temas milenares. Do seu país, e citando grandes nomes da literatura caboverdiana no processo (Germano Almeida, João Vário, Mário Fonseca), Abraão Vicente partilhou a “melancolia e perspetiva eminentemente fatalista no tratamento literário de temas como a saudade”, salientando a “necessidade de ultrapassar essa perspetiva e encontrar novos paradigmas de representar África” como povo e cultura de seu próprio direito.
Já Álvaro Laborinho Lúcio, cujo tom bem-humorado nunca ofuscou a pertinência da sua mensagem, utilizou-se do diálogo promovido por Raul Brandão entre homem e morte para comentar o modo como “procuramos obsessivamente esgotar a nossa compreensão da vida” e que devemos, “em vez de tentar constantemente ser mais do que podemos, ser o melhor que podemos”. Opina ainda que “se a ficção é a fantasia do real, o compromisso de quem escreve ficção com o real deve ser quase ontológico. Devemos honrar ao máximo a verdade em nossas personagens” e, por esse meio, “usar a poesia para ir mais fundo em temas fraturantes da nossa realidade. Abordá-los pelos afetos, e não só pelas racionalidades, porque somos humanos”.
O Húmus – Festival Literário de Guimarães decorre até domingo, 12, em diversas salas da cidade. A entrada é livre para todas as sessões mediante o levantamento de bilhetes.