Depois de escrever para teatro (Última Hora, sobre jornalismo), séries de televisão (Sul, Causa Própria, Matilha, entre outras) e cinema (A Herdade), e de ter publicado mais ficção, Rui Cardoso Martins regressa ao imaginário, cenário e personagens do seu poderoso romance de estreia, E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, escrito há quase 20 anos.
Cruzeta, seu alter ego, volta a ser o centro de um mundo habitado pela morte, o amor, a dor, o humor. Neste jogo literário habitamos um labirinto feito de memórias e reflexões – sem sabermos bem o que é ficção ou real. Esta Portalegre, por exemplo, a cidade onde Rui nasceu há 57 anos, e que volta a ser cenário de boa parte do romance.
Muitas das respostas que procuramos são-nos dadas no próprio livro. Aqui: “Não gosto de nostalgia, mas precisamos de memória, até porque sem ela não fica nada, nem verdade, nem ficção.” Ou quando Cruzeta responde a Zeca: “Inventar não é mentir. Só o faço, aliás, quando me dão as saudades da minha memória.” Mesmo assim, há muitas perguntas que quisemos mesmo fazer ao autor d’As Melhoras da Morte.
As Melhoras da Morte é uma tentativa de fazer uma versão (ainda) melhor do seu romance de estreia, E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, de 2006?
É. A pergunta já tem a resposta em si. Só posso dizer que sim, mas é preciso situar as coisas… Nos últimos anos, descobri que queria voltar ao mistério inicial. Esse primeiro livro terminava dizendo “não perca os próximos episódios”. E um dia descobri que esse fim aberto resultava mesmo de um desejo secreto de… contar novos episódios. Mas fui fazendo muitas outras coisas entretanto, escrever para televisão, cinema, teatro…
Nem fazia sentido escrever logo a continuação…
De maneira nenhuma. E é evidente que não houve nenhum aproveitamento do impacto do primeiro livro.
Mas essa promessa dos “próximos episódios” até parece aqueles finais em aberto dos blockbusters, a preparar terreno para uma sequela…
Pois. Era um plano extraordinário, daqui a 20 anos vou voltar ao assunto e vou apanhá-los bem… [Risos]. É interessante que, depois de ter escrito mais coisas, romances, séries, filmes, percebi que queria entender o que andava o Cruzeta a fazer… Até porque havia pessoas que me perguntavam, que queriam saber mais coisas. É um universo muito particular o destes dois livros, mas ao mesmo tempo com possibilidades universais: do amor, da morte, do humor e da tragédia. E foram acontecendo muitas coisas ao Cruzeta, que é o meu alter ego, que começaram a fazer sentido. Na verdade, já tinha este desejo há muito tempo… Estava quase como o João da Ega [personagem d’Os Maias, de Eça de Queirós] que ia escrever as Memórias de um Átomo, fazendo promessas e falhando sempre. Eu pensava que era capaz e ainda não era… O livro, de certa forma, apanhou-me de surpresa: finalmente apareceu, quando eu já estava a desesperar.
Quem leu o E Se Eu Gostasse Muito de Morrer é para lá que vai, imediatamente, a partir deste livro. Entre muitas coisas, é, mais uma vez, um romance dedicado a uma cidade, mas consegues nunca escrever a palavra “Portalegre”, que só aparece numa epígrafe de Fernando Pessoa [“Não me escrevas para Portalegre. Poderei já aqui não estar”]…
É uma Portalegre um bocadinho ao lado. Há ruas que, às vezes, têm outros nomes; as próprias personagens umas vezes coincidem, outras não… Há vários despistes pelo caminho.
Sim, mas há um lado de homenagem real à cidade onde nasceu… Fala da passagem de Régio e de Pessoa por lá, entre muitas outras referências reais.
Há. E até a palavra aparece uma vez, mas na versão japonesa: “Põtaruregure.” Este também é um livro que precisou de viagens que o Cruzeta nunca tinha feito. No primeiro livro, ele esteve sempre fechado ali; era o drama dele, não conseguir sair. Mas, primeiro, tive que descobrir se o Cruzeta tinha morrido ou não… E percebi que não. Teve direito a uma segunda oportunidade.
Que foi, também, sua, portanto.
Eu tive um grande desastre… Estou à vontade para falar, este livro é de tal modo pessoal que não tenho nada a esconder.
Esse desastre foi mesmo do Rui Cardoso Martins…
Sim. Em pequeno, chamavam-me Cruzeta; aliás, ainda hoje me chamam. Portanto, o Cruzeta existe literariamente mas… Bom, esse desastre que eu tive, gravíssimo, foi o que me levou a escrever o primeiro livro. Foi um acidente na autoestrada, por culpa minha, com os meus filhos no carro, estava a ouvir na rádio o Santana Lopes a tomar posse. Parti o carro todo. Não acredito em milagres e, a propósito, pego numa frase que o Kafka escreveu no seu diário: “Só o possível acontece.” Nessa noite, tive uma crise brutal, deitado no chão da minha sala. Percebi que se tivesse acontecido alguma coisa de grave aos meus filhos eu não podia continuar a viver. E isso pôs-me a escrever a sério o primeiro livro, sobre a hipótese da automorte. Por honra, quase… Um bocado à japonesa. Acontece.
Podemos também olhar para este romance, As Melhoras da Morte, como um livro de memórias?
O principal instrumento de qualquer escritor é a memória. Quem perde a memória não consegue escrever uma linha…
Mas não podemos dizer de todos os romances que são “livros de memórias”, com memórias da vida do seu autor, como este…
Não. Mas há sempre qualquer coisa que se vai buscar… E a memória, como ação, pode andar para trás e para a frente. É qualquer coisa que tem um movimento próprio, e levou-me, outra vez, para uma amálgama cronológica, com tudo a acontecer ao mesmo tempo.
E com muitas memórias pessoais do Rui Cardoso Martins…
Pronto, vou confessar tudo: sim! As Melhoras da Morte pode ser lido, também, como um livro de memórias minhas. A verdade é que quando o livro sai, quando é publicado, resolve-se uma parte da vida do Cruzeta e minha. Isto é um livro cheio de dores que eu tento resolver – e o Cruzeta também, à sua maneira.
Nem tenta fugir-lhes, antes pelo contrário.
Sim, claro. Confesso. Mas tenho a certeza de que do particular para o geral o caminho pode ser muito rápido. Tenho a esperança de que este livro possa dizer alguma coisa a pessoas que, à partida, não têm nada que ver comigo, que não sabem nada da minha vida. Não vou dizer que é um milagre porque, lá está, “só o possível acontece”, mas essa é uma das grandes possibilidades da literatura. E falo da literatura no seu sentido mais nobre, mais positivo. Este livro, às vezes, caminha sobre uma lâmina fina… Quando avanço para temas tão passíveis de lamechice, nunca sei se não vou cair para esse lado. É um equilíbrio que tenho tentado gerir, com o tempo. Odeio telenovelas. A telenovela pega em temas que me são caros e transforma-os em lamechice, em banalidade…, em merda! Faz-me muita confusão.
Enquanto escreve, tem esse medo de não estar a produzir literatura no sentido mais nobre?
Às vezes, abrimos um livro à sorte numa livraria, lemos qualquer coisa e pensamos “Para quê isto?!” Não quero que isso me aconteça em nenhum livro… Mas sei os riscos que corro. Porque estou a falar de sentimentos muito fortes, de memórias, de perda, de luto, de amores, de situações complicadas, amigos mortos…
A expressão “autoficção”, que esteve aí tão na moda há uns tempos, a partir dos livros da Elena Ferrante, do norueguês Knausgård e da Nobel Annie Ernaux, tem algo que ver com o que faz? Identifica-se com essa tendência?
Não, não… Até me identifico mais com a expressão “livro de memórias.” Eu não estou a contar a minha vida, de forma mais ou menos interessante. Estou a usar um alter ego… Aliás, é algo que tantos fizeram: o Kafka, o Joyce… Até parece que me estou a querer comparar. O Knausgård é bom, escreve bem, mas aquele desfilar de coisinhas e coisecas de toda a sua vida e da sua família não me interessa. O Cruzeta, no outro livro, andou com uma granada no bolso, pronto a explodir-se… Eu sei que assustei algumas pessoas, as minhas irmãs ficaram aflitas. Há essa confusão… Não tenho problema nenhum em falar de mim através de uma personagem, da literatura. Mas isso para mim não é autoficção… Também há coisas da Annie Ernaux que não aprecio, uma forma de abordar a sua sexualidade que não me interessa. Nos últimos tempos, houve, na literatura, duas mulheres que apreciei muito: a Olga Tokarczuk e a Svetlana Alexijevich, formidáveis, cada uma à sua maneira.
Na sequência do seu romance de estreia teve algumas reações de pessoas que não gostaram lá muito de verem como retratava a cidade de Portalegre e alguns dos seus habitantes, uns certamente mais reconhecíveis do que outros… Este As Melhoras da Morte é uma espécie de fuga em frente em relação a isso?
Não sei o que vai acontecer. Nessa altura, acho que também houve aquele típico preconceito: “Olha, lá vem mais um jornalista armado em escritor…” Ouvi muito isso. E é verdade que peguei em assuntos complicados da minha cidade. Algumas histórias reais, outras nem tanto. E antes de termos autoridade literária é mais difícil fazermos isso. Sei que houve pessoas a dizerem horrores de mim na internet ‒ “mas quem é que esse tipo pensa que é?” ‒ e que, agora, são capazes de apreciar o que eu escrevo. Em vários dos meus caminhos, tive de ganhar essa autoridade, faz parte deste percurso de escrita. E sinto que este livro em particular reflete uma grande convicção de que a vida triunfa, é também uma limpeza em relação a coisas terríveis que acontecem às pessoas. Gosto de pensar que este livro anda muito à volta de amor, de perda e, até, de fidelidade. A ideia de que as pessoas podem ser felizes umas com as outras, o destino é que lhes cai em cima.
O suicídio, como fenómeno particular no Alentejo, era um tema muito mais presente no primeiro livro. Na verdade, parece que as estatísticas até mudaram entretanto.
Foram dados que consegui, de um psiquiatra que tem estudado esse assunto e concluiu que os números estão a variar. No Alentejo, baixaram por causa de intervenção médica, e o mesmo não acontece mais a norte… O que leva uma personagem do livro a dizer, com muito orgulho, que estamos a exportar a nossa ideação suicida [risos], como acontece com o azeite, o vinho… Há coisas, aqui, que me dão orgulho e consternação ao mesmo tempo, ter um amigo que me diz: “Cruzeta, jura que me matas no teu livro.” E isto ter acontecido. É difícil imaginar coisa mais metaliterária…
Ter acontecido como?
Ele morreu, sim. Não fui eu que o matei no livro… O meu amigo Matcha disse-me essa frase espantosa, “jura que me matas no teu livro.” Fui ao funeral do Matcha, com que começa o livro, já com a responsabilidade de ele me ter dito isso, me ter feito esse pedido. Isto não é assim para obter um efeito, espero que as pessoas percebam bem isso. Mas a morte do Matcha é um dos motores deste livro. E ele falava mesmo nesse plano louco de se matar em palco, durante um concerto… Mas não, não foi assim que morreu. A minha mulher, a Inês, que muito me ajudou na gestão, correção e revisão do livro, chegou a dizer-me que eu só conseguia acabar este livro quando o Matcha morresse. Não tinha pensado nisso, mas talvez fosse verdade. “Jura que me matas no teu livro.”
Acaba por criar uma encenação para a sua morte…
Sim, e que era a tal ideia dele. Num concerto com esse nome operático, Os Escombros de Berlim. Aconteceu uma coisa ainda mais inacreditável: no dia em que este livro foi para a gráfica morreu uma das personagens que lá está, o Barão, o guru dos escritos sobre música, uma figura que há em todas as terras pequenas. Estava no funeral do Matcha e morreu no dia em que este livro foi para a gráfica…
Manuel António Pina falava das crónicas como “jornalismo com saudades da literatura.” Aqui não há literatura com saudades do jornalismo? De repente, estamos a ler sobre os resultados eleitorais do Chega ou a guerra na Ucrânia, num registo que podia bem ser o de uma crónica…
Há uma contaminação virtuosa… O Dostoievski e o Tolstoi também faziam isso.
Mas não tinham trabalhado em redações…
Eu dou uma disciplina na Universidade Nova que se chama A Arte da Crónica. Não fui eu que inventei esse nome, mas acho mesmo que é uma arte literária, que vai buscar coisas a todo o lado – e também pode oferecer. É um género muito elástico, acredito nestas tensões e distensões. Esses temas foram acontecimentos tão brutais que entraram na vida do Cruzeta, é natural que apareçam no livro. A personagem está a viver coisas… Espero que este livro também tenha algo de corrosivo, que mexa com as pessoas, que tenha esse lado político, no sentido mais nobre, e contemporâneo. Não posso com mentirosos fascistas, e é óbvio que o Cruzeta também não…
Desde o primeiro livro, o Cruzeta fez viagens, quis descobrir o mundo. A Rússia, o Japão…
Sim, o Cruzeta fala tanto do Dostoievski – aliás “e se eu gostasse muito de morrer” é uma fala de um personagem seu, o Raskólnikov –, do Japão dos hikikomoris… Senti que era importante ir aos sítios. Aí o Rui Cardoso Martins arruinou-se um bocadinho…
Também aí entrou o lado de jornalista…
Só descobri que era escritor escrevendo como jornalista. Houve escritores que me começaram a dizer que eu era escritor… Mas o escritor tem que fugir do jornalista, aprendi essa lição com o Hemingway. Tem que haver ali uma volta qualquer… Até na questão dos diálogos. Ao Hemingway diziam: “Os seus diálogos são fantásticos, ouvem-se mesmo as pessoas a falar!” E ele respondia: “Não, as pessoas não falam assim, não têm interesse nenhum a falar, eu é que as ponho a falar de maneira interessante, e parece que estão a falar como as pessoas falam.” Mas o jornalismo, a minha experiência de jornalismo, trouxe-me diamantes de linguagem. Como quando um homenzinho, quase analfabeto, disse num tribunal: “Eu lidero-me pelos meus próprios meios.” Mas o escritor tem de lutar por fazer um trabalho diferente do do jornalista.
Sai deste livro, que demorou tanto a escrever, com vontade de começar outro?
Por acaso já tive aí uma ideia…
Regressos
Quem leu E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, romance de estreia de Rui Cardoso Martins, publicado em 2006, sente-se imediatamente transportado para lá. Quem não leu, também não precisa necessariamente de o fazer agora. As Melhoras da Morte começa com um mecanismo que faz lembrar o popular filme de Lawrence Kasdan Os Amigos de Alex (de 1983), com amigos a reencontrarem-se no funeral de um amigo comum. Pretexto não só para Cruzeta (alter ego do autor e real alcunha por que é conhecido em Portalegre, a sua cidade) pôr a conversa em dia com esse grupo mas também consigo próprio, com os leitores, com o mundo. Revisitamos episódios dessa cidade “onde até o coveiro se mata” mas, desta vez, a narrativa abre-se mais ao mundo. A Rússia ou o Japão (onde Cruzeta caça pokémons raros que irá colocar no “ginásio” que existe na Sé de Portalegre) também são cenários. Do humor à tragédia, do amor à morte, do sublime ao escatológico são poucos passos – e o leitor não tem como lhes escapar. Tinta-da-China, 256 págs., €18,90