O polémico Evangelho Segundo Jesus Cristo – que tanta tinta fez correr e que originara a mudança de José Saramago para Lanzarote – tinha-lhe dado o maior galardão literário do País, o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, que uns anos antes lhe havia escapado ao publicar a sua obra-prima, Memorial do Convento. Após longas décadas excluído do “sistema” (por razões literárias, mas também por razões políticas), Saramago conseguia, então, o reconhecimento dos pares e ampla projeção internacional. Ao grande público, para lá das anedotas sobre o seu estilo de escrita, em particular sobre o uso que fazia da pontuação, os livros também chegavam aos leitores com um êxito comercial assinalável.
Apesar da aceitação no (pequeno) meio literário português, as discórdias e os desaguisados ainda não tinham desaparecido – Vergílio Ferreira e Agustina Bessa-Luís, por exemplo, eram dos que não se coibiam de dizer mal de Saramago, alto e bom som, para quem os quisesse ouvir. No círculo de amigos do escritor, porém, a candidatura ao Prémio Nobel da Literatura já era falada. Na edição portuguesa da Cambio 16, o jornalista Mário Ventura Henriques dava como certa – e para breve – a atribuição do Nobel a um autor de língua portuguesa, sendo que a única fotografia que acompanhava o artigo da conhecida revista espanhola era a de Saramago. Junto deste, família e amigos mais chegados faziam muitas piadas com o assunto e, do lado de lá do Atlântico, Jorge Amado era um dos que mais insistiam no tema. Saramago e o escritor baiano tinham um pacto: o que ganhasse o Nobel convidaria o outro para a cerimónia oficial, na Suécia.
A 21 de setembro de 1994, Amado escreveu a Saramago dizendo-lhe que tem “informação fidedigna” de que António Lobo Antunes – eterno rival do autor de Levantado do Chão, no infantil Benfica-Sporting a que por vezes se reduzem as letras nacionais – receberia o Prémio Nobel da Literatura daí a dias. Saramago desvalorizou e chutou para canto. Comentou que, “em Estocolmo, tudo pode acontecer” e confessou-se aliviado de, se assim fosse, “não ter de pensar mais no Nobel até ao fim da vida”. Porém, nos Cadernos de Lanzarote, que alguns consideravam ser um exercício de umbinguismo e de pura vaidade, Saramago não perdeu a oportunidade de dar mais uma ferroada no autor de Manuais dos Inquisidores: “Quanto a mim, de Lobo Antunes só posso dizer isto: é verdade que não o aprecio como escritor, mas o pior de tudo é não poder respeitá-lo como pessoa.”
Amor com amor se paga. As trocas de galhardetes entre Lobo Antunes e Saramago eram habituais, desde que houvesse Imprensa disposta a alimentar a novela e, naturalmente, público interessado. Num mundo pré-internet massificada e redes sociais, elas também constituíam, para os leitores-adeptos de cada um dos lados da barricada, um bom motivo de gargalhada. Regressando a 1994, a boataria continuou, Saramago foi informado de que Lobo Antunes até já se encontraria na Suécia, mas não perdeu a compostura e a boa-disposição: “Tenho de começar a pedir desculpa aos meus amigos por não ganhar o Nobel…” Do resto, reza a história: afinal, o Prémio Nobel da Literatura desse ano haveria de ser atribuído ao escritor japonês Kenzaburo Oe; Saramago venceria daí a quatro anos, em 1998, e Lobo Antunes, como se sabe, até hoje, não foi um dos eleitos da Academia Sueca. De então para cá, os escândalos que envolveram os próprios membros da Academia também deram que falar, originando até, duas décadas após a vitória de Saramago, alterações no processo de escolha dos eleitos.
O episódio é contado em As 7 Vidas de José Saramago, a mais recente biografia do Nobel português, da autoria de Miguel Real e Filomena Oliveira, já nas livrarias, com a chancela da Companhia das Letras, ainda com as comemorações do centenário do nascimento a decorrer. E serve para ilustrar uma das ideias principais da nova biografia, a que a VISÃO teve acesso em primeira mão: ao tornar-se escritor profissional, ao conquistar o Prémio Nobel e converter-se numa estrela mundial, Saramago conseguiu escapar ao seu destino e, assim, fintar o futuro – mais do que certo – que as suas raízes humildes lhe haviam reservado. Há quem julgue tratar-se de uma história contada à maneira neorrealista, mas existem evidências que a sustentam.
Para escrever As 7 Vidas de José Saramago (Companhia das Letras, 748 págs., €24,95), Filomena Oliveira e Miguel Real apoiaram-se nos romances e nos diários e também tiveram acesso aos arquivos da Fundação José Saramago, que integram muitos jornais e a correspondência do escritor
Em entrevista à VISÃO, Miguel Real chama a atenção para o facto de, durante muitos anos, Saramago ter sido visto como um “parvenue”. “Só a partir dos anos 80 é que Saramago tem uma vida normal como escritor. A maior parte da sua vida é feita a resistir contra as adversidades”, nota o escritor, ensaísta e antigo professor de Filosofia. Hoje, porém, considera o biógrafo, Saramago transformou-se numa figura consensual: “Polémica, mas consensual.”
Mitos e narrativas
Também é verdade que não é possível ler As 7 Vidas de José Saramago sem pensar na biografia lançada recentemente, em 2018, por Joaquim Vieira, jornalista e também autor de numerosas biografias (de Mário Soares a Francisco Pinto Balsemão, passando por Álvaro Cunhal). Em José Saramago: Rota de Vida (Livros Horizonte), o escritor aparecia como sendo “uma personagem literária”. Vieira realçava ainda o comunista que deu dores de cabeça ao partido ao assinar editorais inflamados no Diário de Notícias e, sobretudo, acentuava as aventuras amorosas e os casos extraconjugais. No que à vida sentimental diz respeito, Vieira chegou mesmo a retratá-lo como “doido por mulheres”, o que não terá caído bem junto dos familiares e amigos chegados do escritor.
Agora, Miguel Real e Filomena Oliveira também não deixam de falar das mulheres de Saramago, com destaque para as relações que este manteve com Ilda Reis, Isabel da Nóbrega e Pilar del Río, mas o registo é muito diferente do de Joaquim Vieira. Os autores explicam-no bem, logo a abrir e, por isso, ninguém pode dizer que vai ao engano: “As 7 Vidas de José Saramago não biografa um homem ‘famoso’ (personagens irrisórias, bolinhas de sabão, que ora enchem páginas de jornais, ora desaparecem como se nunca tivessem existido), não se trata de uma biografia recheada de pretensos escândalos e bisbilhotices, fruto de pequeninas intrigas políticas e de imensa coscuvilhice.”
Às origens rurais, Saramago retratou-as em As Pequenas Memórias, livro que de resto é muito citado por Miguel Real e Filomena Oliveira. “Nada há a disfarçar, nenhum aspeto a engrandecer – menino pobre filho de famílias pobres, Saramago escreve sobre a sua origem com o à-vontade de quem nada tem a esconder, mas também sem glorificações heroicas, apenas a verdade dos factos segundo a sua interpretação”, escrevem. Saramago tanto era tratado como um outsider que, nos mentideros da elite intelectual lisboeta, muito antes dos prémios e das polémicas políticas, já proliferavam as maledicências, sempre com o intuito de o menorizar e ridicularizar. Quando começou a dar-se com algumas das figuras do meio e sobretudo a estar nos sítios certos, o crítico literário João Gaspar Simões, de quem Isabel da Nóbrega também foi companheira, pôs-lhe a alcunha de “Saragago”, por causa de uma ligeira gaguez que o escritor então revelava. O mito de que terá sido Isabel da Nóbrega “a educá-lo, a ensiná-lo a comer à mesa”, também é reproduzido até hoje. “Não é verdade”, nota Miguel Real, lembrando que, quando trabalhava na Estúdios Cor, Saramago tinha almoços de trabalho com outros escritores. Cabe a Filomena Oliveira, dramaturga e diretora artística da companhia de teatro Éter, que também já fez uma adaptação de Memorial do Convento, pôr um ponto final no assunto: “Além do mais, isso é o que menos importa, o importante são os livros que ele escreveu.”
Josephville, a cidade do José
Biografia ambiciosa, As 7 Vidas de Saramago é um trabalho de fôlego, realizado nos últimos dois anos. Os autores fizeram uma pesquisa exaustiva de todo o material escrito e, inclusivamente, tiveram acesso ao Arquivo da Fundação José Saramago (FJS). Ao longo de mais de 700 páginas, Miguel Real e Filomena Oliveira apoiam-se, quase em exclusivo, nos romances, nos diários e na documentação do arquivo da fundação, que inclui correspondência e muitas entrevistas. “Ao contrário do que acontece com outros escritores, Saramago deixou tudo escrito e, por isso, o trabalho do biógrafo está muito facilitado”, diz a propósito Miguel Real. Recolheram ainda dois testemunhos escritos, da filha e da neta do escritor, Violante e Ana, respetivamente. Violante Saramago Matos – que este ano também publicou um livro de recordações, intitulado De Memórias Nos Fazemos (Edições Esgotadas) – ainda não leu a nova biografia. À VISÃO, explica que precisará de sossego para o fazer, comentando apenas: “Há biografias e pseudobiografias.” Já Pilar del Río pôde ler uma versão inicial e faz questão de dizer que os autores tiveram liberdade total no acesso aos arquivos. “Está garantida a visão de um homem que trabalhou de forma honesta e generosa. É que, às vezes, os leitores precisam de se encontrar com a bondade”, afirma à VISÃO a viúva do escritor, que também preside à FJS.
As 7 Vidas de José Saramago segue um fio cronológico – do nascimento do rapaz de origens humildes à morte do escritor com projeção mundial. Os capítulos correspondem, cada um deles, às “sete vidas” a que o título faz referência. Miguel Real e Filomena Oliveira inspiraram-se numa crónica que Saramago escreveu para A Capital e que, mais tarde, viria a abrir o livro Deste Mundo e do Outro. Em A Cidade, o escritor confronta a cidade real com aquela que ele próprio ambiciona e apelida de “a cidade do José” de Josephville, a qual, sabemos nós agora, demorará longas décadas a ser conquistada. “É uma metáfora, na cidade ideal ele nunca se sentiria repudiado”, explica Miguel Real. Desprezado pelos pares, rejeitado pelos editores, despedido da Estúdios Cor e, depois do PREC, do Diário de Notícias, Saramago levou muitos anos a derrubar as “muralhas” de Josephville. “O mais estranho dos escritores”, chama-lhe Miguel. “Saramago é um escritor clássico porque, naquela altura, já praticamente nenhum escritor se apresentava daquela maneira: como um sismógrafo da sociedade, um líder ético, com uma visão geral sobre a sociedade. Todos os seus livros revelam o desejo de uma sociedade mais igualitária. A partir do momento em que se torna conhecido, é rara a entrevista que não tenha um cunho político. Saramago pretende mudar o mundo”, argumenta o biógrafo.
Como diria Saramago, aqui chegados, resta-nos acrescentar que, em grande medida, é o lado ativista do escritor que determina o modo como, até agora, se tem descrito a vida e a obra do único autor de língua portuguesa que venceu o Nobel da Literatura. Carlos Reis, professor de Literatura da Universidade de Coimbra e comissário das comemorações do centenário do nascimento do escritor, lembra que decorreu pouco tempo desde a morte de Saramago, em 2010, aos 87 anos. E, sobre isto, salienta à VISÃO: “Todas as biografias que até agora foram feitas dão conta de testemunhos vivos, de gente que o conheceu, mas também de atitudes pouco desapaixonadas que, muitas vezes, estão relacionadas com o caráter interventivo e polémico do escritor. Outras biografias hão de aparecer, sendo possível que, passado mais tempo sobre o seu desaparecimento, venha a ser feita uma biografia tão extensa quanto aquela que Richard Zenith escreveu sobre Fernando Pessoa.” E, nem por acaso, é também por causa do poeta dos heterónimos que a ideia de labirinto vai bem com a vida de Saramago.
Páginas tantas
Além de reedições especiais das suas obras, nos últimos meses têm saído vários volumes, de diversos géneros, sobre José Saramago
1. Viagem a Portugal, de José Saramago
Reedição do livro lançado em 1981 (no Círculo de Leitores), com o relato das viagens do escritor em todo o País. Esta edição especial inclui fotografias de Duarte Belo e as que José Saramago fez nesses percursos (quase todas inéditas). Porto Editora, 768 págs., €40
2. A Intuição da Ilha, de Pilar del Río
Durante 18 anos Pilar viveu com o seu marido, José Saramago, na ilha de Lanzarote. Aqui, em capítulos breves que se leem de um fôlego, partilha muitas histórias, quotidianos e memórias desses dias do escritor. Porto Editora, 376 págs., €19,90
3. Saramago, os Seus Nomes, de Ricardo Viel e Alejandro García Schnetzer
Os lugares, as pessoas e os principais acontecimentos da vida do escritor num “álbum biográfico” com muitas fotografias. Porto Editora, 352 págs., €40
4. De Memórias nos Fazemos, de Violante Saramago Matos
Um livro muito especial, escrito pela filha única de José Saramago. Violante evoca as suas memórias e os afetos mas também distâncias, dúvidas e desencontros. Edições Esgotadas, 132 págs., €15
5. José Saramago: a Literatura e o Mal, de Carlos Nogueira
Vencedor do Prémio Vergílio Ferreira 2022, este ensaio põe em perspetiva uma certa visão saramaguiana do mundo. A crença num mundo melhor e na nossa capacidade para nele intervirmos. Qual é, aí, o lugar do “mal”? Tcharan, 40 págs., €14,90
6. Jerónimo e Josefa, de José Saramago e João Fazenda (ilustrações)
José Saramago/Ilustrações de João Fazenda Na cerimónia de entrega do Nobel, José Saramago falou dos seus avós maternos, Jerónimo e Josefa. Parte desse discurso está neste livro, com ilustrações de João Fazenda. Para todas as idades. Tcharan, 40 págs., €14,90