1. Sontag, de Benjamin Moser
O que diria Susan Sontag (1933-2004) sobre a guerra na Ucrânia? Ela, que nunca se furtou a escrever sobre a revolução cubana, a queda do Muro de Berlim, a guerra no Vietname, o cerco de Sarajevo, os conflitos em Israel? O discurso seria contundente, brilhante, feito para gerar admiração. A ensaísta americana, conhecida pelos ensaios seminais sobre fotografia, doença, sida ou mitologia americana, lê-se, era “carente por aplausos” e acreditava na admiração como valor mais alto – e era implacavelmente exigente com quem captava a sua atenção. Há muitas histórias mineradas nesta biografia impressionante, último feito de Benjamin Moser depois de Porquê Este Mundo: Uma Biografia de Clarice Lispector (2009). O biógrafo apresenta Susan Sontag como “último astro literário dos EUA”, mas nunca cede à idolatria, desfiando as origens sofridas (Susan diria do pai, precocemente desaparecido, que o conhecera apenas por fotografias), a militância, as antipatias, as anfetaminas, as polémicas (como a de ter aceitado um prémio em Israel, que até Nadine Gordimer lhe pediu para recusar), as lutas com a orientação sexual. Vencedor de um Prémio Pulitzer em 2020, Sontag é o primeiro livro baseado nos arquivos privados da escritora, a que se juntam testemunhos e uma centena de imagens da mulher reconhecível pelos “traços fortes à maneira de Picasso” e pela madeixa branca, criada num cabeleireiro do Havai a que a mãe a levou, depois de os tratamentos para o cancro da mama a terem deixado grisalha aos 42 anos; Susan voltou a casa e escreveu o ensaio A Doença Como Metáfora. Objetiva, 688 págs., €28,85
2. Europeus Africanos. Uma História por Contar, de Olivette Otele
A historiadora e vice-presidente da Royal Historical Society revela aqui uma ausência nas macronarrativas: a presença e influência das comunidades negras na História europeia e ocidental, sobretudo antes das duas guerras mundiais, e sem associações à questão colonial ou a ideias de exoticismo ou excecionalismo. A expressão “europeus africanos” é, refere, “uma provocação para quem nega que uma pessoa pode possuir múltiplas identidades e, inclusivamente, cidadanias, bem como para aqueles que afirmam não ‘ver a cor’”. Este livro fluido vai da Antiguidade à atual crise de refugiados, com paragens elucidativas sobre o colonialismo do século XVIII, os descendentes de duplas heranças raciais, o pouco conhecido esclavagismo alemão, ou as questões identitárias e de afro-feminismo da contemporaneidade, juntando-lhes até Trevor Noah ou Meghan Markle. Editorial Presença, 280 págs., €19,90
3. Humor, de Terry Eagleton
Apresenta-se como um guia e é um belo tratado das muitas dimensões humorísticas, nem todas associadas ao riso: as piadas blasfemas e as anedotas redentoras, o humor ao serviço de preconceitos e nacionalismos, o morrer a rir ou a gargalhada para esconjurar a morte, o riso freudiano e o “riso satânico” de Baudelaire – “rir é viver profundamente”, escreveu Kundera em O Livro do Riso e do Esquecimento. A dada altura, por entre citações e referências, o filósofo britânico nomeia o académico Mikhail Bakhtin, autor de Rabelais and His World, obra escrita nas “profundezas da era estalinista”, que lhe valeu o exílio. Adepto do humor carnavalesco, este russo dizia que “o riso suplanta o medo, porque não conhece quaisquer inibições, quaisquer limitações; o seu idioma nunca é usado pela violência e pela autoridade”. Político até à medula, lê-se, o humor assinala “a derrota do poder, de tudo quanto oprime e restringe”. Por estes dias, seria bom acreditar que essa premissa funciona. Edições 70, 194 págs., €15,90
4. 50 Anos de Poesia, de Nuno Júdice
Como abrigar num volume exíguo tantos anos de escrita e 40 tomos poéticos? Colhendo à mão um ou dois, às vezes quatro ou cinco poemas de cada livro. Este foi o fio de Ariadne construído por Nuno Júdice, Grande Prémio de Poesia APE 2021 pelo livro Regresso a Um Cenário Campestre – de que sobrevivem aqui cinco poemas, incluindo o atualíssimo Instruções para Sobreviver a Uma Quarentena. Esta Antologia Pessoal (1972-2022) compreende a produção de Júdice desde A Noção de Poema (obra de estreia) até ao poema inédito Retrato de Memória (2021), em que, fiel ao seu lirismo sóbrio, o autor fecha um círculo elegíaco: “Ao fim de tanto tempo, ao fim do próprio/ infinito quando o contamos pelos ponteiros do relógio,/ ao fim da chávena do café que acabou por ficar frio,/ novamente vejo-te surgir, no fim da rua, no fim do caminho,/ que dividi contigo quando, um dia, me falaste dessa palavra/ que tem todos os caminhos do mundo em cada vogal (…).” D. Quixote, 224 págs., €15,90
5. A Última Curva do Caminho, de Manuel Jorge Marmelo
“Basta que um pombo da praça se assuste para que todos levantem voo. Com as memórias – próprias e alheias – sucede algo semelhante: erguem-se numa revoada confusa assim que a noite principia e me sento na mesa de mármore, diante do computador”, assume Nicolau Coelho, professor jubilado, desapontado com a opinião dos críticos sobre os seus livros, e desenganado pela bateria de exames, tomografias, ressonâncias magnéticas. Escondendo a morte anunciada à sua futura jovem viúva Alba, a quem reconhece a impaciência com a sua “fisiologia de velho”, e habitado por perdas (como a da intensa Heike, que arranhava os pulsos até fazer sangue), ele refugia-se na vila das iniciações da infância e prepara a morte nos seus termos. Um romance lúcido, virtuosamente escrito, sobre o envelhecimento, a eutanásia, a vida vivida à lenta escala humana fintada pelas inteligências artificiais do futuro. Porto Editora, 264 págs., €16,60
6. A Primavera Há-de Chegar, Bandini, de John Fante
Livro com que John Fante (1909-1983) fez a estreia literária, em 1938, e mais tarde impressionaria Charles Bukowski, esta crónica de um sonho ítalo-americano vivido durante a Grande Depressão destila, veloz e furiosamente, as questões prementes que, hoje, continuam a assolar-nos: imigrantes, castas socioeconómicas, más heranças parentais, dilemas de identidade. O Bandini do título pertence tanto ao pai Svevo como ao filho Arturo: o progenitor é um assentador de tijolos em fúria com a neve que lhe rouba trabalho, um imigrante italiano agarrado à garrafa e a mulheres, enquanto a esposa Maria reza e é alvo da vizinhança viperina. Arturo, esse, tenta salvar-se no labirinto de culpas católicas e ancestrais, e lidar com as dores do primeiro amor (trágico) por Rosa e o imaginário ianque visto no cinema. Para não perder embalo, Estrada para Los Angeles, da mesma tetralogia, já está a caminho das livrarias. Alfaguara, 248 págs., €18,85
7. Cadernos da Água, de João Reis
Poderíamos arrumar este livro como um exercício distópico, não fossem os seus cenários a ecoar nos noticiários atuais. Seca extrema? Em Cadernos da Água, os territórios ibérico, mediterrânico e magrebino passaram pelas “Guerras Meridionais da Água” e os povos têm sede (Espanha não cumpre, aqui, os acordos de fornecimento aos aquíferos…) e submetem-se a um mantra ecológico: “Salve-se: poupe água.” Pandemia? Um rex-vírus 3 acendeu tumultos mundiais. Líderes autocráticos? Um tal de F. Lourosa cunhou o conceito “Era dos Psicopatas” – em que inclui Trump e Bolsonaro. Ascensão dos populismos? Um “Partido Nacionalista Dinamarquês” subiu ao poder e um livreiro português é morto a tiro em Copenhaga nesta narrativa que usa eficazmente a simples inversão de papéis. Refugiados? O Estado português desapareceu, e portugueses e espanhóis acabam na fraca jangada dos campos de refugiados – lugar para teatros do absurdo e traições orwellianas. Invasão russa da Ucrânia? Faz parte da trama, esta ameaça que agora vemos horrivelmente cumprida. João Reis, que está nomeado para o Dublin Literary Award 2022 com o romance A Avó e a Neve Russa (2017), pontua esta parábola com artigos de jornal, documentos secretos e decretos imaginados, e usa secura narrativa para melhor colar realidade e ficção. Romance polifónico, dá voz ao mercenário Jonas Carniceiro, ou a Paulo, colaboracionista que bem corporiza os atuais discursos de ódio das redes sociais, mas a narrativa é dominada por Sara, mãe de Mariana, uma professora que teima em descrever a nova realidade nos seus cadernos, fazendo da palavra resistência. Mensagem entregue. Quetzal, 248 págs., €17,70